Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 1

Capítulo 128: Orgulho ferido

A humilhação que sentiu foi enorme. Tu jamais imaginou que seria colocado em uma situação complicada numa luta contra um garoto, ainda mais levando em consideração que o primeiro ataque foi dele próprio. Mas o inegável cheiro de tecido queimado incomodando o seu nariz era uma prova indiscutível de ter sido mais lento, mais descuidado e o único a ser atingido.

No entanto, o pior de toda a situação não era o fato de uma labareda ter acertado seu corpo, pois apesar da alta temperatura e da violência expressada pelo fogo, a única coisa que sentia era uma maior sensibilidade na região atingida. O pior de toda aquela situação era perceber que o seu alvo, o garoto que estava encarregado de sequestrar, olhava em sua direção com um sorriso triunfante, escancarado de deboche e repleto de confiança.

Aquela expressão no rosto de um Mundano, um ninguém que teve seu nome conhecido apenas há pouco tempo, o deixava irado, uma ira responsável por fazer seu sangue ferver ainda mais do que o fogo culpado por abrir um buraco chamuscado em sua camisa.

Sentindo e permitindo a fúria se apoderar de seu corpo, Tu bufou duas vezes antes de cerrar os punhos e estreitar os olhos, compondo uma cara feia e pouco amigável. Bastante discreto, ele olhou para as garotas localizadas a poucos metros de distância e reparou que a de cabelo amarelo se mantinha focada, atenta e em posição. Entretanto, a outra se mostrava distraída, dividida entre essa e a outra batalha.

Apesar de uma delas já ter alcançado o Reino do Despertar, o praticante a um passo de se tornar um Virtuoso não acreditava que as duas representavam algum perigo. Mas ainda assim, suas tentativas de intervir em cumprir sua tarefa poderia ser um incômodo e por isso estava prestando atenção nelas.

Porém, o seu alvo continuava sendo o garoto atrevido em sua frente.

Tu encarou Ning com um olhar fulminante, do tipo capaz de fazer uma alma frágil regelar de medo. De suas mãos fechadas, uma brisa suave e úmida, mas carregada de indícios tempestuosos, se desprendeu e caiu sobre a vegetação ao seu redor à medida que gotas inundavam a ponta do gramado.

― Me disseram para tentar capturá-lo sem machucá-lo enquanto os outros estão ocupados ― o invasor zangado começou a falar. E embora sua voz tenha saído baixa e áspera, feito o rosnado de um animal doméstico cujos blefes são o maior trunfo, o tom usado se manteve intimidador. ― Mas sabe de uma coisa... Eu vou...

― Até agora eu estou esperando aquele seu amigo sair de algum buraco e saltar no meu pescoço! ― De repente Xiao Ning abriu a boca, interrompendo o inimigo. Em seu rosto havia um sorriso descontraído, que em nada parecia ter sido abalado pela delicadeza da situação. ― Mas acho que isso não vai acontecer. Depois de terem sido esmagados iguais moscas pela minha querida Ah-kum, já estou bastante surpreso de você ter aparecido aqui. E então? Ele está debaixo da terra ou babando numa cama? Você ajudou ele a trocar as fraldas?! ― deixou escapar uma breve gargalhada desdenhosa.

E ouvindo tudo isso, Tu não se aguentou e deixou seu rosto ser tomado por uma expressão cada vez mais ominosa. Embora não fosse uma pessoa de aparência avançada, a testa franzida, o olhar semicerrado e os lábios apertados o deixavam com um aspecto envelhecido, repleto de marcas de desgaste.

― Você gosta mesmo de usar essa boca, ahn?! ― grunhiu ele, revelando uma frustração crescente. ― Eu arrancaria sua língua, mas não adiantaria muito. Antes de suas pernas e seus braços, eu vou quebrar sua mandíbula, assim...

― Para um cara que não pode sair de casa em dias de vento forte, você gosta de fazer muitas ameaças. ― Xiao Ning mais uma vez voltou a interrompê-lo. ― Sorte a minha que você não é de fazer muita coisa, senão eu estaria preocupado. He! He! ― expressou uma gargalhada debochada enquanto olhava de lado para as garotas.

― Eu só quero ver até quando manterá esse sorrisinho... ― A voz de Tu soou ainda mais estridente e instável do que a um instante atrás. A brisa se desprendendo de seu punho se transformou em rajadas cortantes que dilaceraram a grama ao redor de seus pés e sua postura mudou, ficando mais ativo. ― Desgraçado!

O magricelo, que possuía um olhar de fúria crescente, inclinou-se para frente e disparou numa investida perversa contra o alvo. A região ao redor de seu braço esquerdo foi envolvida por um objeto de forma irregular, mas que parecia possuir bordas cortantes e era formado por camadas de ar e gotículas quase invisíveis, intrincadas através de um complexo conjunto de fios tempestuosos.

Do outro lado, Xiao Ning girou a lança uma vez e das extremidades anéis de fogo se desprenderam feito bolhas viscosas saindo da ponta de um canudo. O agrupamento ardente logo tratou de envolver o usuário, compondo um singular perímetro protetor responsável por vigiar todas as regiões vulneráveis.

O Alquimista observou com atenção a investida de seu adversário e não demonstrou a menor preocupação quando o viu se aproximar ― diferente de Xiao Jiao, que pensou em avançar para ajudar, mas foi impedida por um gesto de mão.

No instante em que Tu chegou perto o bastante, Ning, demonstrando certa astúcia, disparou todos os anéis de uma só vez, cada um mirando um ponto diferente do oponente. E sentindo que isso não era o bastante, ele balançou a lança na horizontal e atirou uma poderosa labareda.

Sem nenhuma surpresa, o praticante invasor respondeu a tentativa contra sua vida usando sua força superior. Antes que fosse atingido, ele disparou a forma irregular que envolvia o seu braço esquerdo.

O contra-ataque, que apesar do poder destrutivo se mostrava uma defesa eficiente, se chocou contra os anéis de fogo e uma intensa onda de calor, repleta de perigo e instabilidade, foi desprendida, liberando inofensivas linhas de fogo em todas as direções. O confronto inicial foi intenso, mas ainda assim, inofensivo para o sujeito descarnado.

No entanto, algo peculiar aconteceu.

A despeito da agressividade demonstrada pelos aros ardentes, o segundo ataque disparado por Ning cobria uma ampla área, porém era lento demais. A labareda só se juntou ao embate quando os anéis foram destruídos e mesmo assim ela terminou sendo atingida por uma implacável rajada que a obrigou a se dispersar.

Entretanto, de tão abrangente que era o ataque, a área que separava os dois inimigos foi envolvida por faíscas vermelhas, as quais levantaram uma densa cortina flamejante, obstruindo a visão dos envolvidos.

Quando percebeu que uma parede estava se formando em sua frente, atrapalhando seu campo de visão, Tu mudou de postura e passou a olhar para os dois lados, como se estivesse procurando por algo. Já tinha visto aquele mesmo movimento algumas vezes, a mesma distração infantil, e não se deixaria ser surpreendido de novo.

A confusão durou por breves segundos, mas a todo o momento ele se manteve alerta, pronto para reagir. Seus olhos esquadrinharam as laterais, preparando-se para usar uma técnica no intuito de defender os flancos, e enquanto passava de um lado ao outro, espiadelas eram lançadas sobre os ombros.

― Ingênuo!

Antes que a parede de fogo fosse dispersada ou perdesse impetuosidade e brilho, Xiao Ning se atirou em meio a cortina ardente de frente, com o corpo inclinado, quase agachado, e a arma em punhos. Suas pernas estavam envolvidas por fios de eletricidade e o mesmo podia ser notado na ponta penetrante do objeto letal que carregava.

Aproveitando-se de sua velocidade explosiva, o abusado sujeito de rosto jovem, mas alma velha, atravessou as chamas, fugindo do calor, e perfurou com sua lança que carregava altos níveis de eletricidade.

― Impulso Elétrico!

O ambiente ao redor da arma perfurante foi tomado por um azul perigoso que carregava em sua tonalidade um fascínio hipnotizante e traiçoeiro. E embora o espetáculo tenha sido um tanto chamativo, mais brilhante e intenso do que qualquer outra tentativa por parte do lado mais fraco, a surpresa foi a verdadeira responsável por abalar os pensamentos de Tu, deixando suas pernas incapazes de agir a tempo.

Quando notou a indesejável ponta hostil avançando em direção ao seu rosto, como se estivesse mirando no ponto localizado entre seus olhos, o praticante do Reino do Despertar precisou confiar em seus instintos para tentar fugir da violenta tentativa inimiga.

Demonstrando o reflexo esperado de um homem magro e acostumado a situações de risco, Tu inclinou a cabeça para o lado a tempo de evitar perder um olho ou descobrir como uma lula se sente ao ser empalada num espeto. Ele pôde sentir o vento funesto bater contra sua pele e ouvir o silvo agudo da perversidade soprar em seu ouvido, mas no fim conseguiu evitar o toque nefasto do objeto penetrante.

No entanto, incentivada pela falha da lança, a luz azul se tornou ainda mais intensa, liberando feixes ameaçadores que se espalharam por uma ampla área. Ruídos eletrizantes ganharam forma e antes que outra reação instintiva fosse feita, uma descarga elétrica foi disparada, atingindo tudo ao redor.

A cabeça de Tu foi envolvida por diversos fios inconsistentes que se mostraram bastante atraídos pelos fios coroando sua cabeça. E apesar de ter sido algo passageiro, por um instante o corpo do imponente praticante foi tomado por uma rigidez anormal, responsável por fazer veias aparecerem ao longo de todo o seu pescoço e testa. Logo depois, um clarão ganhou forma, seguido de um estampido carregado de eletricidade.

Tu foi arremessado para longe e rolou pelo gramado de uma forma descontrolada, antes de enfim parar de barriga para baixo, com a cara enfiada na terra e a boca cheia de mato.

Ali perto, Xiao Shui estava muito distraída assistindo o desenrolar da luta do pai e do irmão para reparar no acontecimento, mas Jiao se mostrou muito surpresa quando viu o lado mais forte ser atingido. Seus olhos se abriram demonstrando certo espanto e seus lábios se curvaram em um singelo sorriso de admiração.

Mas apesar do sentimento triunfante borbulhando em seu coração, ela logo se forçou a conter a vontade de comemorar e fechou o cenho, conforme se preparava para atacar; tirar proveito da oportunidade. Porém a entusiasmada discípula da 2ª Anciã foi detida por um gesto sutil de mão feito por Ning, pedindo-a para esperar. O que se provou uma decisão correta, pois Tu se ergueu logo em seguida, intacto, sem um único arranhão.

Mais zangado do que jamais esteve, o praticante magricela se ergueu em um salto, bufando pelo nariz feito um touro valente. Seu rosto estava marcado por uma expressão feia, com os lábios franzidos e a testa enrugada. A raiva era tanta que sua pele havia sido tomada por uma cor escarlate que veio acompanhada pelo latejar da veia da têmpora. Mesmo assim, nada disso diminuiu a vergonha que sentiu quando precisou cuspir um bocado de grama.

Ha! Isso foi mais fácil do que eu pensei! ― Xiao Ning soltou um meio sorriso desdenhoso e encarou o oponente com um ar presunçoso enquanto passava os olhos sobre suas roupas sujas. ― Eu estava preocupado, mas agora percebo que cometi um grande erro em nosso último encontro. Foi um tremendo engano te confundir com alguém perigoso. Apesar de sua Energia, você é tão fraco quanto um pirralho que começou a cultivar ontem mesmo.

Tu ouviu cada insulto sem apresentar uma única palavra para se justificar. Era como se ele entendesse que, depois da vergonha que acabou de passar, tivesse perdido toda sua reputação e o direito de se opor. Porém seu rosto ainda se contorceu em uma genuína fúria abrasadora, deixando-o com um aspecto repugnante.

O simples fato de ter sido feito de tolo duas vezes seguidas por uma criança cujo cultivo se encontrava em uma escala significativamente menor já poderia ser considerado uma desgraça vergonhosa para alguém em sua posição, mas aquelas palavras tornavam a humilhação dezenas de vezes pior. Ele quase podia sentir o gosto amargo da degradação sendo empurrada para dentro de sua garganta em uma manta repulsiva de espinhos embebidos em desonra.

As narinas de Tu se dilataram e mais veias surgiram ao longo de seu pescoço, testa e braços. Sua estrutura fina e descarnada expôs uma miserável visão de tubos azuis que pulsava de uma maneira alucinada, incentivando seu coração a ser tomado pela raiva.

― Agora eu entendo por que seu parceiro não veio ― continuou Ning, exibindo um tom cada vez mais desdenhoso. ― Pensei que ele estava ferido demais depois de levar aquela surra, mas a verdade é que ele não queria passar por essa vergonha de novo.

― Não abuse muito da sorte! ― Depois de algum tempo calado, Tu enfim decidiu se pronunciar. ― Minhas ordens podem ser para capturá-lo vivo, mas eu posso acabar me excedendo. ― Sua voz saiu baixa e áspera, feito o rosnado de um animal perto da loucura. Era perceptível que ele estava tentando se controlar, embora sem sucesso.

No entanto, a despeito da ameaça feita pelo inimigo, Xiao Ning não se abalou e continuou exibindo um meio sorriso provocativo.

― Seu pirralho ranhento! ― grunhiu, assumindo uma nota julgadora e envelhecida. ― Você deveria ter seguido o exemplo de seu companheiro e voltado pra casa. O que está acontecendo aqui é uma coisa séria. Esse não é um lugar para fedelhos que sequer aprenderam a limpar a própria bunda.

Os ataques verbais de Ning não estavam sendo recebidos com espanto apenas pelo inimigo. Ali perto, Xiao Jiao tinha os olhos arregalados enquanto encarava o colega que sempre tentava encontrar um jeito de conquistar sua mestra. Ela parecia um tanto espantada, como se estivesse olhando para alguém totalmente desconhecido.

O Ning que conhecia sempre se mostrou muito abusado, folgado e não tinha a menor vergonha de expor seus pensamentos libidinosos em público. Mas aquele parado a poucos metros de distância era também um sujeitinho arrogante, do tipo que faz questão de se vangloriar mesmo sem ter motivo para tal.

― Ele sempre provoca os inimigos assim? ― disse Jiao, olhando de lado, mas mantendo o foco na batalha.

Porém a resposta demorou um pouco para chegar, pois Shui estava dividida entre a luta de seu pai, os pensamentos inseguros e o confronto do Alquimista.

― Eu... eu não sei. ― Quando enfim falou, sua voz saiu acompanhada por uma grande hesitação, como se não tivesse certeza do que tinha acabado de ouvir. ― Eu nunca vi ele falar assim.

Do outro lado, a fúria de Tu crescia a cada instante. Seus punhos estavam fechados com tanta força que suas mãos começaram a tremer à medida que seu rosto foi tomado por um vermelho discreto. O que mais o enfurecia não era o fato de estar sendo insultado por um garoto medíocre e sim não poder fazer nada para mudar isso. Por mais que ameaçasse, entendia bem sua posição e as consequências de ser imprudente. Ainda assim, para tudo existe limite e o mesmo se aplica a sua paciência.

― Eu vou acabar com você! ― praguejou, expondo um desejo íntimo.

E foi nesse ponto que Xiao Ning tomou sua atitude mais ousada.

Percebendo o crescente desagrado de seu rival, o Alquimista estufou o peito, ergueu a cabeça e assumiu uma postura anormalmente boa. E então, contrariando a atitude de alguém que está enfrentando uma disputa difícil, ele girou a lança entre os dedos, exibindo as próprias habilidades, e fincou a ponta no chão, abandonando a única arma que possuía.

― Quer acabar comigo? ― abriu um sorriso valente e desafiador. ― Então pode vir. Meus punhos são o suficiente pra te dar a surra que seus pais não tiveram coragem de dar.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 



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