Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 1

Capítulo 127: Abusado

O confronto entre os três Espirituosos e o valente intruso do Reino do Despertar seguia feroz, trazendo grandes reverberações para as áreas circundantes. Alguns dos golpes trocados desapareciam sem causar maiores estragos, como era o caso dos socos e pontapés, mas outros faziam a casa tremer e lançavam vibrações angustiantes pelo ar.

Embora o seu cultivo fosse o menor de todos e estivesse em desvantagem ao enfrentar dois praticantes mais poderosos em Energia Espiritual, o tio Chang estava conseguindo resistir muito bem aos impetuosos ataques que eram disparados sem qualquer senso de dignidade, pois muitas vezes miravam os mais fracos que se acobertavam em suas costas.

Mesmo precisando defender a si mesmo e aos jovens que não possuíam a força necessária para salvar a própria vida, o grandioso 9º Ancião continuava opondo-se aos seus inimigos e quando falhava em se defender, seu filho mais velho aparecia para socorrê-lo.

A despeito de seu comportamento impulsivo num primeiro momento, Chan havia decidido escutar o conselho do amigo. Ele sabia que seu cultivo não era o bastante para causar uma mudança significativa nos eventos ou sequer provocar ferimentos profundos em seus antagonistas. Por esse motivo, decidiu ficar com a tarefa de atrapalhar o adversário enquanto tomava cuidado para não se tornar um estorvo para o seu pai.

À medida que seu pai se deslocava de um lado para o outro, correndo e voando, contra-atacando e se defendendo, Xiao Chan tentava o seu melhor para acompanhá-lo, sempre ficando alguns passos para trás ou de cabeça erguida. Quando o 4º Ancião e o sujeito manco ― que era bastante ágil apesar da condição ― fazia uma aproximação perigosa, ele lançava um ataque interceptador usando as duas espadas que empunhava, forçando assim uma quebra no ritmo do confronto e permitindo ao tio Chang uma chance de respirar.

O embate entres aquelas forças monstruosas estava escalando de uma maneira assustadora. Em certo ponto, o conflito aumentou de tal maneira que a troca de golpes provocou estampidos sufocantes, como se a ira divina estivesse sendo despertada.

Ali perto, Xiao Shui ficou angustiada vendo tudo aquilo acontecer tão rápido. A sensação que experimentava por assistir seu pai e seu irmão lutarem usando todas as forças, como se suas vidas dependessem disso ― e de fato dependiam ―, era horrível. No entanto, igualmente tormentoso e lamentável era perceber que a hostilidade se espalhava por todo o território de sua Família. Gritos de dor e fúria se erguiam de diversos cantos, barulhos pavorosos ganhavam forma e um desejo ominoso encobria a noite, antes calma e serena.

A expressão de melancolia no rosto de Shui ficava cada vez mais evidente. Seus olhos mostravam uma tristeza amarga, carregada de aflição e incerteza. Ela olhou para o seu pai, o irmão e depois se virou para encarar os conflitos que aconteciam ao longe. Por um instante, se permitiu ser tomada pela lamentação e se esqueceu que também estava no meio de uma batalha.

― Abaixe-se!

Enquanto a Recém-Despertada estava distraída, sem saber para qual lado deveria olhar, Xiao Ning de repente pulou sobre ela, jogando-a no chão de qualquer maneira. E no mesmo instante em que a desatenta caiu, rajadas de vento cortante passaram no lugar que antes ocupava.

― Você está bem? ― perguntou Ning, sem olhá-la diretamente. Seus olhos estavam focados no sujeito magricelo localizado logo à frente e que nesse momento se posicionava como um inimigo.

Apesar do tombo desajeitado, Xiao Shui não demorou para se levantar e, parecendo um tanto sem graça pelo ocorrido, apenas murmurou em agradecimento.

― Não abaixe sua guarda! ― alertou Ning. ― O tio Chang pode estar cuidando dos mais problemáticos, mas nós também estamos em desvantagem.

― Sinto muito. Eu vou... prestar atenção ― respondeu ela, exprimindo uma voz baixa, contida e pouco confiável, muito diferente de sua notável disposição habitual.

Xiao Ning não se convenceu com a resposta e abriu a boca para falar algo, mas nesse momento tinha outras coisas para se preocupar. Seu semblante estava marcado por uma seriedade nunca vista desde o seu retorno e isso acontecia pois entendia a gravidade da situação. Apesar de estar em vantagem numérica e poder contar com sua experiência de outra vida, Tu ainda era um adversário formidável para ser enfrentado por apenas dois Mundanos e uma Recém-Despertada distraída. Por esse motivo ele mantinha os olhos atentos a qualquer mudança, o Sentido Espiritual “afiado” e o corpo pronto para reagir.

― O que devemos fazer? ― Xiao Jiao, que mantinha os braços erguidos na altura do rosto, aproximou-se da dupla e se posicionou um passo à frente do Alquimista, quase como se estivesse protegendo-o. ― Atacar juntos?

― Não! Agir sem pensar só irá servir para dar a ele o que quer ― respondeu Ning, cujo tom de voz firme e calmo contribuiu para passar uma sensação reconfortante de confiança.

― Então... ― Jiao hesitou por um segundo. Ela não era uma tola de pensar que poderia vencer o praticante da 7ª Camada do Reino do Despertar, pois não fazia muito tempo que tinha sido derrotado por um cultivador do mesmo Reino, porém mais fraco. De seu ponto de vista, a vitória era o cenário mais improvável e a única escolha restante era... ― Eu irei ficar para atrasá-lo. Vocês dois, fujam!

Deixando seus fios ondulados e dourados escorregarem para trás das orelhas, expondo por completo seu rosto dotado de uma pele clara e olhos destemidos, a preciosa discípula da 2ª Anciã mudou de postura, preparando-se para o difícil embate que travaria em instantes. Ela estava determinada a assumir a responsabilidade de dar alguma vantagem a um dos sujeitos mais importantes de toda a Família.

― O que eu falei sobre “agir sem pensar”!? ― No entanto, antes que Jiao fizesse algo imprudente, Ning a deteve. ― Se você atacar sozinha só irá conseguir se matar. Além do mais, eu tenho um plano para derrotá-lo!

A declaração repentina chamou a atenção das garotas, que se viraram para encará-lo. Mesmo Shui, que não conseguia se manter focada, o olhou com curiosidade.

― Na verdade, é algo bem simples ― Xiao Ning continuou falando. ― Aquele garoto não irá me matar, pois se fizer isso será morto pelo líder dele. Tenho certeza que ele recebeu uma ordem ou instrução do tipo. Então, eu irei enfrentá-lo de frente. Sou o único capaz de fazê-lo se segurar.

― Você tem certeza?! ― indagou Jiao, preocupada. ― Se você chegar muito perto, ele irá te capturar. Não seria melhor deixar uma de nós duas ir na frente?

― De fato, o melhor seria deixar isso com a pequena Shui, mas... ― Xiao Ning olhou para o lado e notou que mais uma vez a amiga havia se perdido em pensamentos. Talvez tenha sido por estar em uma situação crítica, com seu pai e irmão correndo perigo, porém a expressão em seu rosto estava mais aflita e melancólica do que antes. ― Eu tenho mais experiência e pode acreditar em mim quando digo: Aquele pirralho não seria capaz de me pegar nem mesmo em um milhão de anos.

Deixando transparecer uma confiança invejável, o Alquimista girou a lança entre os dedos e avançou alguns passos, tomando a frente do grupo.

― Escutem ― ele continuou, encarando a todo momento o adversário. ― Eu irei enfrentá-lo e vocês irão me ajudar de longe, atrapalhando ele. Quando eu conseguir derrubá-lo, esmague sua cabeça antes que escape ― instruiu, mirando Xiao Jiao. ― E se isso não bastar, pequena Shui, tente cortá-lo usando sua técnica. Entenderam?

As duas assentiram, confirmando que estavam prontas para agir, e Ning mudou de postura, preparando-se para lançar o primeiro assalto.

Nesse meio tempo, do outro lado, Tu observou o grupo discutindo, sem tentar qualquer tipo de interferência, e quando eles terminaram, abriu um meio sorriso e debochou:

― Se pretendem planejar algo, deveriam fazer isso em segredo. Escutei tudo o que disseram. ― Existia certo ar de superioridade em sua declaração. Embora ainda estivesse zangado com o modo que as coisas terminaram na Floresta de Bambu, era difícil não rir da estupidez daquelas crianças.

― Não faz diferença se conseguiu me escutar ― disse Ning, fingindo estar ainda mais confiante do que de fato estava. ― Um fedelho miserável igual a você não conseguirá fazer nada contra nós! ― Seus lábios se curvaram em um sorriso malicioso, dando a ele uma aparência confiante.

Por outro lado, o rosto de Tu se contorceu numa carranca feia, deixando sua cabeça magricela com um formato repugnante.

― Você tem uma língua afiada e é muito irritante, garoto. Percebi isso no nosso último encontro. ― De tão zangado que estava, sua voz saiu quase como um rosnado, baixa e intimidante. ― É verdade que eu não posso te matar, mas ficarei feliz em lhe dar uma surra!

― Se acha que consegue, vem pra cima! ― desafiou Xiao Ning, girando a lança entre os dedos. ― Eu já conheço seus truques.

― Quem deveria dizer isso, sou eu! ― replicou Tu, mudando a postura do corpo. ― Desta vez, você não poderá usar a vegetação para se esconder.

Enquanto Shui e Jiao permaneciam alguns passos afastadas, aguardando pela chance de agir, os dois se encararam por alguns segundos. Um lado estava tenso e atento a cada movimento do inimigo, com sua lança posicionada próxima ao corpo, de modo que pudesse ser usada a qualquer instante; o outro se mostrava aberto e seguro das próprias habilidades, livre de qualquer sinal de apreensão ou cautela.

― Muito bem... ― com os punhos fechados e um semblante afiado, Tu se adiantou, pisando forte no chão. ― Vamos ver do que o Alquimista é... ― de repente uma camada de ar que lançava lufadas violentas envolveu seu braço direito ― capaz!

Tu balançou o braço e disparou um vórtice que girava em sentido horário enquanto emitia um zumbido alto e agudo contra o grupo rival. Julgando apenas pela aparência, ficava difícil julgar o tamanho do poder da investida, mas as lufadas que se desprendiam traziam consigo certo presságio perverso.

No entanto, a despeito do perigo, Ning ainda se manteve, de certa forma, centrado no que precisava fazer. E quando a espiral tempestuosa se aproximou, ele girou a lança entre os dedos à medida que dois pontos vermelhos e repletos  de calor se desprenderam das extremidades do objeto.

A acrobacia elaborada deu origem a um espetáculo magnífico, que em uma ocasião diferente poderia ter encantado a quem assistia. Conforme o bastão girava e girava mais rápido numa espécie de dança eufórica, os dois pontos brilhantes se juntaram, formando um círculo incandescente.

― Anel de brasa! ― rugiu, lançando seu contra-ataque.

Um único aro de tamanho considerável foi disparado de sua lança em movimento, liberando ondas de calor instáveis que vieram acompanhadas de um chiado baixo e preocupante, como se o objeto incandescente estivesse para explodir.

No entanto, antes que a Técnica de Combate entrasse em colapso devido a deficiência do praticante, as duas habilidades se chocaram em uma colisão violenta que foi responsável por liberar fagulhas perigosas por todas as direções. Rajadas cortantes foram dispersadas sem um destino certo a seguir, resultando em rasgos superficiais no solo gramado e até mesmo provocando arranhões nas paredes da casa do tio Chang.

O primeiro confronto foi brutal e impactante, apesar de um dos lados ter sido bastante “casual” em sua tentativa. Igualmente feroz a destruição que se espalhou pela área próxima do ponto de colisão, foi o zunido crepitante e perturbador que fez o ar vibrar, levando Shui e Jiao a desviarem os rostos numa tentativa boba de proteger os tímpanos.

Por um instante, a impressão que se teve foi a de um possível empate; parecia existir certa semelhança entre as forças. Mas isso mudou quando o anel de fogo foi quebrado e a espiral varreu os vestígios de calor para longe. No final, a diferença entre as forças dos dois era devastadora e evidente.

Pouco surpreso com o resultado do confronto, o invasor que detinha uma força espantosa ― a despeito da falta de músculos ―, encarou o lugar em que seu rival e alvo estava a um segundo atrás, mas as rajadas secundárias liberadas pela colisão de técnicas o atrapalhou de ter uma visão clara. Mesmo assim, ele foi capaz de perceber que Ning não se encontrava mais na mesma posição.

Embora as garotas continuassem em prontidão, apenas aguardando sua vez de atacar, o Alquimista, que havia se voluntariado para assumir a frente de batalha, tinha desaparecido. Naquele breve segundo de caos e rivalidade, o preguiçoso aproveitou para fugir da visão predatória que o mirava.

Ainda assim, quando notou que seu alvo não se achava mais no lugar de antes, Tu não se apavorou. O medo de que poderia ser vítima de uma emboscada sequer passou por sua cabeça, algo que ficava perceptível pelo sorriso desdenhoso em seu rosto.

― Eu já vi essa técnica antes! ― disse ele, olhando sobre o ombro.

E neste instante, logo atrás de Tu, Xiao Ning surgiu de repente, com a lança empunhada e pronta para ser usada. Suas pernas estavam envolvidas por fios de eletricidade que aos poucos perdiam vigor, sua respiração se mostrava um tanto alterada e no punho esquerdo podia ser notado um pequeno lume se preparando para crescer.

Era evidente que ele tinha preparado um ataque sorrateiro e pretendia usá-lo quando alcançasse uma posição vantajosa, mas sua estratégia precisou mudar no último segundo, pois seu oponente tinha acompanhado seus movimentos com perfeição.

Percebendo que fora flagrado, Xiao Ning cobriu o punho esquerdo com um marcante fogo vermelho, girou a lança usando a mão direita e chutou o chão, partindo para outra ofensiva. De seu corpo, fios de eletricidade se desprenderam, preparando-se para usar o passo relâmpago.

Porém, antes que ele tivesse a oportunidade de fazer um grande avanço, Tu, exibindo um discreto sorriso triunfante, girou o corpo e declarou:

― Obrigado por facilitar as coisas! ― De repente, da palma de sua mão esquerda, um jato de água contendo uma enorme pressão foi disparado, mirando o peito desprotegido do garoto.

Ning assistiu a mudança com certa preocupação e sua resposta ao contra-ataque inimigo veio de uma maneira automática. Deixando seus instintos agirem por conta própria, ele se jogou no chão, desviando do ataque e passando ao lado de Tu, que o assistiu fugir com o canto dos olhos.

Mas experiente como era, o Alquimista não se contentou em apenas escapar do perigo.

Quando se jogou e passou pelo flanco desprotegido de seu antagonista, Ning lançou uma poderosa labareda vermelha que atingiu as costelas do sequestrador e envolveu parte do seu tronco.

Quando foi atingido, Tu recuou apressado, batendo as mãos no corpo e na roupa enquanto virava a cabeça para o outro lado, fugindo do calor. A dor não foi tanta, pois o contato foi breve e, acima de tudo, seu cultivo era de um Despertado no auge, mas o medo de ser queimado fez seu coração disparar.

O sujeito magricela levou alguns segundos para conseguir acalmar o coração, porém antes que conseguisse voltar ao estado normal, algo fez seu sangue ferver.

― Se facilitar desse jeito, não vai ter graça! ― A voz zombeteira de Ning soou expressando as notas mais provocativas que aquele sujeito de alma velha poderia expressar.

Mesmo seu inimigo sendo notoriamente mais forte, o atrevido preguiçoso fez questão de exibir um sorriso desdenhoso e repleto de confiança.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 


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