Alma Imaculada
Capítulo 77: Somos Todos Escória
[Incis]
Os ventos foram perfurados em minha direção diversas vezes consecutivas.
Em um reflexo inconsciente dei meio passo para a direita afastando-me da lâmina que deveria ter rasgado minha garganta. Não se movia como uma Katana, era mais semelhante a uma Rapieira estocando contra mim.
Ventania!
Grim puxou sua longa espada em minha direção, um rastro metálico rasgou o vazio fazendo um arco reluzente pelo ar.
Meus longos cabelos negros ondularam com o movimento brusco que executei, pulando para trás enquanto tentava não desmaiar de dor.
O sangue respingou das minhas narinas e por um segundo pensei ter visto a lâmina mortal partindo as gotas carmesins no ar.
Com a espada brandindo Grim estreitou seu olhar sob mim e disse: — Parece que ainda pode se mover, nem que seja um pouco.
A voz frívola dele quase era abafada pelos golpes precisos e ágeis, seu sobretudo negro ondulando entre cada ataque.
Com a sola das minhas botas pousando o solo, desespero aflorou ainda mais, não tinha aberturas, não tinha forças e talvez nem mesmo esperanças.
“Droga, não sinto meus braços.”, minha mente tentava não se esvair enquanto meus ombros subiam e desciam com a respiração pesada tentando levar oxigênio ao meu cérebro.
Passo!
Grim deu um passo firme adiante e puxou sua espada para trás.
— Incis Katulis, sua vida não vale nada uma vez que tenha sua própria humanidade roubada pelo império.
Disparou como uma bala.
O espadachim de cabelo longo e pupilas verdes como musgo se tornou um mero borrão negro com uma capa dançante aos ventos, suas pernas se movendo em alta velocidade cortando toda a distância entre nós.
“Então ele sempre soube disso... que eu não sou humana de verdade.”, minha visão oscilou enquanto esse vago pensamento fluiu.
Um veículo de grande porte semelhante com uma vã parou em um pequeno estacionamento repleto de arranha-céus e letreiros reluzentes ao seu redor.
As portas de trás no compartimento de passageiros se abriram.
— Finalmente chegamos. — Foi possível escutar um resmungo de um dos soldados a bordo.
Osmoldt e Zakio foram os primeiros a saírem, seus olhos de diferentes cores brilharam diante do vislumbre.
— Então esse é famoso setor 1 do reino de Zykron, Asterias. — Murmurou Zakio com uma face tensa.
As pupilas carmesins de Osmoldt se estreitaram diante dos letreiros brilhantes e os carros passando em alta velocidade na rua ao lado. — É maior do que eu pensava e também tem muitas máquinas pelo jeito.
— Só não é mais brilhante que a sua careca, Osmoldt.
O recruta olhou para trás enraivecido pelo comentário da garota de cabelos azulados e olhos prateados, ela sorriu maliciosamente antes de sair de dentro do compartimento dando um longo suspiro.
— Iku, quem é você pra falar da minha careca? Isso é um símbolo claro de lealdade a minha raça.
— Tá bom, tá bom, eu só tava zoando contigo.
Passos. Passos. Passos.
— Estão todos bem? — Uma entonação grave e confiante caiu sob todos.
O piloto que coordenou toda essa viagem, Kaylleon.
Ele vestia armaduras negras acompanhadas de luzes Neon bizarras, seus olhos viajaram sob cada um dos soldados.
Kaylleon franziu as sobrancelhas. — Incis? Onde está minha garota? Zakio! Onde está ela?
O soldado ruivo levou a mão a nuca em uma timidez rebelde. — Não tem como eu saber, não sou o pai dela.
— E-Eu estou aqui pai.
Do escuro no compartimento de passageiros a pequena garota de olhos dourados saiu, sua face insegura transmitia bem a sensação de estar nesse lugar tão barulhento e repleto de luzes.
— Não se preocupe Incis, não vou lhe pedir pra fazer nada até porque eu tenho Zakio comigo, ele é o cara mais forte que você vai conhecer.
Kaylleon começou a acariciar o cabelo de Incis como se ela fosse um gato bobinho enquanto Zakio rangeu os dentes querendo desmentir o que o homem dizia.
Após se organizarem todos saíram do estacionamento e seguiram por uma rua extensa repleta de pessoas, carros e prédios.
O cheiro das ruas sujas, os faróis com um rastro e luz sendo deixado pelo ar e as pessoas bem vestidas andando de um lado pro outro. A noite parecia melancólica dentro desse lugar.
Isso não era nada parecido com o que nenhum deles havia visto até agora, não era uma vila ou até mesmo um reino, era... uma metrópole. Uma cidade com um sistema social igualitário, um organismo se movendo com apenas um objetivo, prosperar.
“Que merda de lugar é esse?”, Zakio se perguntava internamente enquanto os passos de todos os seus companheiros eram abafados pelo som barulhento das vozes e máquinas de transporte.
Todos olhavam torto para o grupo de Kaylleon, mas o homem mal dava atenção, ele andava relaxado com as mãos nos bolsos e uma face frívola.
Passo.
Kaylleon sessou seus passos de frente a um pequeno prédio com um letreiro reluzente em azul.
A palavra ‘Hotel’ era quase ilegível, mas Kaylleon que já vinha estudando o idioma Zykronian nos livros que a guilda contrabandeava conseguiu entender.
A recruta brincalhona do grupo, Iku, levantou sua voz em desconfiança: — C-Capitão Kaylleon, que lugar é esse?
De costas para os seus companheiros o capitão retirou as mãos dos bolsos antes de responder com uma voz calma.
— Isso vai se expandir cada vez mais, acho que todos aqui nem sequer compreende porque isso é ruim. Aparentemente parece bom, porém esse não é o futuro que prezo, não pra nós que vivemos em situações precárias. Esse sistema vai se alastrar como as novas doenças pútridas e só vai priorizar as pessoas de vida próspera que já nasceram em berços de ouro ou que tiveram a sorte grande de cultivarem suas próprias riquezas.
O silêncio pairou por alguns segundos e então quem se manifestou foi o capitão misterioso com um capuz negro e sua longa espada embainhada.
— Seremos apagados do mundo, esquecidos como um conto antigo. Essa sociedade será a única que prevalecerá.
Suor desceu pela testa de todos presentes.
As palavras efêmeras de Grim apenas receberam um olhar confiante de Kaylleon por cima do ombro.
— Exato, é por isso que só temos uma chance, eu reuni garotos, garotas e mulheres aqui hoje com esse propósito. Nós seremos uma guilda, uma frente de batalha libertadora de cavaleiros da justiça em um mundo que está sempre se importando com Status, gastos e ganhos.
Encerrando seu discurso Kaylleon passou pela porta giratória do edifício com a placa de Hotel.
Seus soldados fizeram o mesmo, todos com faces desconfiadas.
“Não posso desistir agora, não quando finalmente me tornei apto pra ir à primeira missão como também pra ser um capitão.”, Zakio ponderava relutante.
O ar dentro do hotel era quente e reconfortante, as luzes não eram tão gritantes quanto do lado de fora, eram amareladas e fracas dando um alívio nos olhos.
“A recepção está muito vazia se comparada ao lado de fora.”, Osmoldt disse internamente enquanto viajou seus olhos carmesins pela extensa sala de espera com cadeiras e mesas.
As paredes da cor de uma madeira escura e velha, o chão cor de creme.
Um pouco mais adiante tinha uma grande escadaria que se estendia para o segundo andar e logo ao lado dela estava o balcão do recepcionista.
— Boa noite, são novos na cidade? — Indagou o homem no balcão que tinha um cabelo negro penteado para trás, seu terno estava desbotado, porém ainda em bom estado.
As roupas usadas fora de Zykron não eram nada se comparadas ao tecido desse simples terno.
— Sim, viemos de muito longe pra começar um novo negócio aqui em Asterias, então acho que passaremos um tempo hospedados aqui. — Kaylleon caminhou com uma voz amigável até o recepcionista.
Os olhos escuros do homem no balcão serpentearam Kaylleon antes de levantar as sobrancelhas em surpresa.
— Q-Que belas armaduras, senhor. São mercenários? Se estão em busca de clientes infelizmente esse setor ainda está carente disso, talvez encontrem algo no setor 3.
“Então já há 3 setores, esse lugar é maior do que eu pensei.”, Zakio comprimiu os lábios em meio ao pensamento.
Enquanto o capitão resolvia as coisas no balcão Zakio observou os arredores silenciosos que mais se pareciam com uma pequena taberna da sua cidade natal.
O jovem se encontrara longe de casa, dos amigos e principalmente da família, diferente de Incis que tinha seu pai ao lado dela nessa viagem.
— Que seja. — Suspirou Zakio passando os dedos entre o cabelo ruivo de forma relutante.
— Z-Zakio.
Uma voz fina e irritante chamou atenção do jovem que apenas se virou para Incis que lhe observava timidamente.
— Sim, estou ouvido. — Tentou responder de forma educada.
A garotinha simplesmente apontou para uma das mesas.
— Leu meus pensamentos, eu também estava indo me sentar um pouco. — Expulsando sua raiva pelo comportamento de Incis, Zakio a acompanhou até uma das mesas no canto e ao se sentar teve uma sensação familiar.
“No fim eu sou apenas mais um seguindo ordens, Kaylleon pode nos tratar como amigos próximos, mas eu sei que ele apenas se importa com sua filha. Talvez seja por isso que ele cria uma imagem tão mentirosa sobre mim pra ela.”
A mente de Zakio se afundava em pensamentos enquanto o mesmo observava Incis inquieta sentada do outro lado da mesa.
— S-Senhor Zakio. Você é realmente forte como meu pai diz?
Os olhos de Zakio se arregalaram levemente.
— Bem... depende da situação eu acho.
— Depende? Mas e essa cicatriz no meio do seu rosto? Ganhou em uma luta?
Os punhos do jovem se selaram firmemente diante dessa pergunta, as unhas quase afundando no couro rígido de suas luvas.
— Mhph. — Zakio desviou o olhar tentando se acalmar. — Sim, foi em uma ‘luta’, a mais difícil que já tive.
A garotinha ficou estranhamente quieta com essa única resposta, sem um olhar curioso ou uma dúvida infantil, apenas observou a feição pálida de Zakio.
“Essa menina é estranha demais pra mim, não sei lidar com crianças.”, suspirou ele preso em sua mente.
As pupilas douradas de Incis se estreitaram quando ela disse: — Sabe, você parece solitário senhor Zakio, me lembra o meu pai quando a mamãe morreu.
Tum!
O coração do jovem ruivo acelerou por um segundo, seu sangue esquentou um pouco enquanto um Flash rápido de memórias fragmentadas se reuniu nas lacunas de sua mente.
Medo, repulsa, ódio.
Ele queria ter feito algo a respeito de sua mãe, queria ter enfrentado seu pai, entretanto tudo o que ganhou foi uma maldição.
A marca que o recordava da ruína em seu passado.
Assim como a garota de cabelos escuros e uma face distraída diante dele, seu passado era trágico e talvez fosse por isso que ele era quem era nesse momento.
Zakio Sperr e Incis Katulis, essas duas figuras compartilhariam das mesmas angústias por mais que ambas tivessem vivido épocas diferentes, em momentos difíceis a coisa mais forte são os laços que se formam entre as pessoas.
Zakio observou de canto friamente o seu capitão.
O jovem fechou os olhos imerso em um mar de pensamentos.
“Justiça, esse papo é muito furado, talvez Kaylleon só queira se vingar assim como eu. No fim somos todos escória.”