Trovão Infinito Brasileira

Autor(a): Halk


Volume 1

Capítulo 9: Confiança É Uma Coisa Muito Cara

Acordo com a sirene que toca toda manhã. Já é a segunda vez que a ouço e ainda não consegui me acostumar a ela. Todos se levantam cheios de energia para irem fazer suas tarefas, mas eu me sinto uma gelatina. Dolorido, com olheiras e fraco.

Antes de descer da cama de cima verifico se meu bastão continua no lugar. É a única coisa que tenho que me lembra de casa, não posso deixar que ele se afaste de mim. É ele que vai me dar forças para continuar seguindo essa jornada que os outros prepararam para mim… Não vou pensar sobre isso agora.

Calço meus sapatos, visto uma camiseta de manga comprida, preta como todos os outros, óbvio, e sigo o Ash, direto para o refeitório. Me seguro nas costas deles todos os dias, porque sempre estou tão cansado que tenho de ser guiado.

Não sei o motivo disso, nunca fui tão preguiçoso assim. Talvez seja algum tipo de efeito colateral ao se ganhar os poderes elétricos. 

Ou será que é o Remi, grudado no meu braço o tempo inteiro, que está me deixando fraco de propósito? Não duvido nada.

Pelo menos depois da refeição eu vou recuperar um pouco de energia. Isso seria muito mais fácil se eu não tivesse que ficar ouvindo as histórias estranhas do Ash.

Depois de pegar o café da manhã, que não passa de um bloco de pedra, sento ao lado do meu colega de beliche.

Gostaria que o Ônix se sentasse comigo, mas ele parece ter os próprios amigos. Ao menos sei que nossos problemas foram resolvidos.

Ash me conta, pela milésima vez, como acha todas as meninas daqui bonitas, mas que tem uma em específico do qual seus olhos não conseguem desgrudar.

É uma garota mais baixa que eu, de pele pálida e cabelo rosa. O curioso é que Ash nem sabe o nome dela. Seria isso amor à primeira vista ou apenas um fetiche bizarro?

Após comer mais um pouco do terrível bolo endurecido, recupero minhas forças o suficiente para retrucar:

— Se gosta tanto assim dela, por que não vai lá falar com ela?

Ash tem a mesma reação de quando se sonha estar caindo de um prédio. Quase que derrama o suco; que mais parece água suja.

— Eu? Ir falar com ela? Ficou maluco? — Ele fica ajeitando os óculos diversas vezes e come mais rápido.

— É, você. — A cada mordida que sou no bolo sinto minha energia voltando. — Meu pai dizia que o primeiro passo para conhecer alguém é com um “oi”. Então, vai lá e se apresenta.

— Você tá maluco — diz com um sorriso frouxo, ajeitando os óculos e depois volta a comer sua comida. Um segundo depois ele olha para o lado, em direção a garota. — Não tem a menor chance de falar com ela.

— Por acaso você acha que ela não vai gostar de você? — pergunta Remi.

Tomo um susto. Nem me lembrava da presença de Remi direito. Ash também se assusta, mesmo sabendo que esse relógio falante é meu vigia..

— Não é nada disso, Remi! — afirma Ashm — É porque… Ela tá do lado da amiga dela. Sempre. Não tem como chegar.

— Mas você falaria com ela se tivesse uma oportunidade? — pergunto com um sorriso imenso no rosto.

Passo a mão na minha boca e limpo na camisa preta. É preta, ninguém vai notar os farelos. Depois tomo o suco de gosto estranho com um único gole e já me sinto novinho em folha novamente.

— Sim. — A resposta é muito breve. — Se tivesse oportunidade. Até esse dia chegar… Ei, espera aí! Aonde você vai?

— Criar uma oportunidade. — Vou em direção a garota.

— Que excitante! — comenta Remi.

Ash fica implorando de longe para eu não ir. Diz que vai ameaçar ir embora, mas ele não vai. Se vira de costas para mim e continua encarando a bandeja, encolhido.

Se ele ficar com raiva de mim por isso já sei que é um moleque. Mas agora eu estou me sentindo uma criança.

Era muito divertido chegar nas meninas que os garotos da minha escola gostavam e contar para elas isso. Eu me divertia. 

Lembro que quando fui visitar a escola do meu irmão, ele falou sobre uma garota linda. Eu contei para ela sobre isso. Infelizmente ela não reagiu muito bem e meu irmão acabou virando motivo de chacota por um tempo.

Mas, ei, eu era criança. Não é como se eu fosse prejudicar o Ash. Se tentarem transformar ele em uma piada, vou garantir que a pessoa pague.

Me aproximo da garota. Ela nota e olha para mim. Não é muito alta, bate no meu ombro, o que é quase o tamanho do Ash. A coisa que mais chama a atenção é o seu cabelo rosa e os olhos esverdeados.

— E aí, tudo bem?

— Oi — diz com uma voz um pouco fina.

— Olá! — fala o Remi, sem ser convidado. Eu dou um tapa na pulseira como se isso fosse discipliná-lo.

— Ah! isso aí é uma inteligência artificial? — pergunta a garota apontando para a pulseira.

— É, por aí. Eles me colocaram isso para me vigiar, para que eu não saísse da linha, eu acho. 

— Na verdade, não sou vigia, e sim o melhor amigo do Kaike — afirma Remi.

— Melhor amigo coisa nenhuma! De onde tirou isso?

— Por definição, os melhores amigos são aqueles que nunca saem do lado do outro, mesmo em situações dificeis. E nós dois nos encaixamos nessa caracteristica.

A garota de cabelo rosa solta um:

— Woont, que fofo ~.

E eu fico com vontade de dar um tiro nessa pulseira.

— Não leva em consideração o que ele tá falando, ele precisa de umas manutenções. — Mudo o rumo da conversa. — Enfim, eu não tô atrapalhando nenhuma conversa importante, nem nada do tipo, né?

— Ah, não. A gente só tava conversando sobre a comida daqui.

Ela aponta para a amiga dela, uma garota de cabelos verdes escuros. Não sei se é impressão, mas essa outra garota parece ter no máximo 16 anos. Os classe S aceitam pessoas tão novas assim?

Tudo que ela faz é um sinal positivo com a mão e um balançar de cabeça. Eu repito o movimento. 

— Sim, a comida daqui é muito estranha, não é? — digo, na intenção de puxar assunto. — Mas eu até gosto. Toda vez que eu como sinto minha energia voltando.

— Pois é! — Os olhos esverdeados dela parecem brilhar. — Todo mundo diz que as refeições são ruins, mas a gente nota que elas têm muitos nutrientes. Eu acho que são cheias de caloria e proteínas, em específico. E eu acho que ainda adicionam algum suplemento estimulante…

— Calma aí, “suplemento estimulante”? Tá dizendo que eles colocam droga dentro da comida?

— Não — ri. — por estimulante eu quis falar de suplemento mesmo. Tipo C-1. Mas eu não sei ao certo se é isso mesmo. Tomara que não seja T-1.

— Qual o problema se for T-1? 

A minha pergunta é muito mais para puxar assunto do que real interesse, mas o olhar que ela me faz quando eu a pergunto é de quem esperava por aquele momento a tempos.

A sua amiga de cabelos verdes revira os olhos e apoia o rosto no punho fechado, me encarando com irritação, como se tivesse acabado de nos submeter a uma aula muito chata.

— A C-1 é produzido pelo nosso próprio corpo — diz a garota de cabelo rosa. — E ela é que nos dá relaxamento muscular e disposição energética, o que melhora o desempenho físico e mental. Já a T-1 é artificial e serve quase para a mesma coisa, só que é mais agressiva. Ao longo do tempo, conforme se ingere muito T-1, a pessoa pode ter depressão, ansiedade e fadiga. Ou acabar morrendo.

— Uou! — digo. — Você deve gostar mesmo desse assunto.

Mas o que realmente queria dizer era: “Uou! Você é mesmo um glossário ambulante.”

A amiga dela balança a cabeça positivamente e faz sinais esquisitos com a mão. Parece que a menina de cabelo rosa entende, porque dá uma risada e responde:

— E você também não ia querer? Dizem que o laboratório daqui é enorme! E dá para fazer um monte de experimentos lá. Imagina poder analisar essa comida?

Ela ganha mais um revirar de olhos como respostas.

— Desculpa, meninas — eu interrompo a conversa paralela por meio de sinais estranhos. — Eu esqueci de me apresentar. Eu sou o Kaike, sou do Distrito 2.

— E eu sou o Remi, Robô Ecologicamente Móvel e Inteligente. Prazer. — Ninguém perguntou e parece que ninguém se importou muito.

— Ah, nós conhecemos você — fala a garota para mim.

Sua amiga faz mais sinais estranhos. Não entendo absolutamente nada.

— O quê? — pergunto.

— Ah! Desculpe. É que ela é muda — diz a garota. — Ela disse que todo mundo conhece você. E se apresentou, o nome dela é Bia e é do D3.

Como alguém pode dizer tanta coisa em alguns gestos eu não faço ideia, só sei que achei muito foda o fato dela ter virado uma classe S sem nem falar. 

Gostaria de perguntar como funcionaria a comunicação dela em combate, porém não quero ser invasivo. Fora que, tecnicamente, uma pessoa que fala naturalmente por sinais é muito mais útil do que alguém que tem de usar a voz para se comunicar, podendo alertar armadilhas.

— Ah! Tudo bem. Prazer, Bia. Aliás, só queria deixar para vocês que sou gente boa, tá? Sabe aquela briga que eu tive com o Ônix? Então, aquilo foi um mal entendido. Pelo visto alguém andou espalhando mentiras a meu respeito e ele acreditou.

É melhor esclarecer isso antes de ter possíveis complicações.

— Sério? — A garota de cabelo rosa parece genuinamente horrorizada. — Que horrível. Quem faria uma coisa dessas?

— Não sei. Por acaso não foi você, foi? — brinco.

— Eu? Claro que não! — Ela parece realmente determinada a provar que não teve nada a ver com isso. — Pode confiar em mim, nunca iria querer o mal para ninguém.

— Hm. Não sei, não. Até agora não me disse seu nome.

— S-Sim! — Ela fica mais atrapalhada que antes. — Desculpa, eu me chamo Vida, sou do Distrito 4. E estou treinando para ser médica.

Ah. Isso explica tudo. Não sei se é o momento ideal para aprofundar nossa amizade aqui, mas queria que ela soubesse que eu conheço um cara do D4, o Octávio. 

Ele é um criminoso conhecido e seria interessante saber mais sobre o cara. Como ela mora no distrito dele, pode ser que conheça mais sobre os seus esquemas. 

Devo muito aquele agiota-traficante de merda, com certeza, mas não faria mal nenhum ver ele atrás das grades.

Quem sabe eu não comente a respeito em outra oportunidade, por enquanto tenho de manter o foco: Apresentar a Vida para o Ash. É uma garota legal. Gostei dela. Aprovo. Só espero que ele não estrague tudo.

Interrompo a conversa.

— Ei, vocês estão sozinhas ou fazem parte de alguma panelinha por aqui? 

Bia dá um leve sorriso e faz alguns outros gestos. Deve ter sido algo muito engraçado, porque a garota de cabelos rosa cai na risada. Eu apenas dou um sorriso e balanço a cabeça, absolutamente desconfortável por não saber o que estão falando.

— Não, nenhuma panelinha — responde Vida.

— Enfim — suspiro. —  Acontece que eu e meu colega de beliche também não fazemos parte de nenhuma panelinha. Então pensei: Ei! Bem que a gente podia formar o nosso próprio grupo exclusivo! O que acham?

— Seria legal. Mas quem é o seu amigo?

Eu me viro e olho para o canto onde estava sentado. Pego em flagrante Ash nos vigiando de longe. Assim que me vê se vira rapidamente e volta para a bandeja. Aponto para ele e digo:

— Aquele se escondendo ali. Ei! Ash! Vem cá.

Ele se vira para mim, incrédulo. Aponta para si mesmo, meio confuso.

— É, tu mesmo. Vem cá.

De um jeito menos tímido, porém não menos confuso, Ash se aproxima com sua bandeja. Ele olha de um lado a outro diversas vezes, como se procurasse a verdadeira pessoa que eu estaria chamando. 

O jeito dele andar é meio estranho. É como se uma maré ficasse jogando ele de um lado a outro o tempo todo. 

Acho que isso tenha muito a ver com o Distrito 7, que é literalmente uma ilha. Ash é um pouco bronzeado e com toda certeza vivia nas praias surfando, como dizem que faz os que moram nesse lugar. 

Então vejo alguém colocar um pé no seu caminho para que ele caia.

— Cuidado…! — exclamo.

Ele tropeça na perna, dá um leve solavanco para frente, porém não cai e nem derruba a bandeja. Isso foi inesperado.

— Meu Deus, ele quase caiu — fala Vida.

É, mas isso não foi acidente.

Eu vou em direção ao Ash. Enquanto estou no caminho, vejo três pessoas se levantando. Um alto e comprido, um de estatura normal e uma garota. O alto dá um tapão na bandeja que Ash segura e o outro o empurra, mas ele não cai.

— Ei! Para com isso! — Chego nos três, empurrando o peito do grandalhão, que vai alguns metros para trás.

— Calma, colega, foi sem querer — diz o garoto normal. 

— O seu amigo aí derrubou a bandeja dele e você empurrou ele. Isso foi sem querer? 

— Você não sabe se tinha uma mosca no prato dele que foi parar no peito, sabe?— ri o garoto como se isso fosse a piada mais engraçada do mundo. Os olhos deles são castanhos, mas são frios. Sem brilho. — Até que ele é bom de se manter em pé, ainda bem. 

— Fiquem longe dele! Ou vai ter que se ver comigo — ameaço, começando a sentir nojo por estar perto desse cara.

— Por mim tudo bem, Condutor — sussurra ele. — Mas quando quero uma coisa, eu consigo. E se eu quiser que o seu amigo caia, ele cai.

Ouço o som de uma batida e algo caindo no chão. Quando olho para o lado, vejo Ash deitado caído, desacordado. 

— Ash! Ei, Ash! — Olho para seu lado e vejo a garota que fazia parte do grupo, a terceira integrante. — Você fez isso!

— Ops, foi sem querer — responde com um sorriso.

Esses caras estão me aborrecendo. Sinto meu corpo formigar e ouço barulhos de raios. Sinto que alguns raios estão viajando pelo meu corpo, soltos. Estou perdendo o controle, isso pode ser ruim, mas não seria nada mal fritar a cara de um deles. 

— Kaike, seus níveis de estresse estão se elevando — fala Remi. — Lembre-se que partir para agressão não vai ajudar. 

— Cala a boca!

— É melhor seguir o conselho do seu amigo — diz o garoto à minha frente.

Na hora em que ele fala, minha raiva dispara. Seguro ele pela gola da camisa e levanto meu punho, pronto para lhe dar um soco direto na fuça.

— O que está acontecendo aqui? — pergunta uma voz alta e autoritária. Quando me viro, solto o garoto que estava segurando.

Porcaria, é a Solares.

 

ϟ QUARTO DO SOLDADO TOMAS ϟ

 

Tomas estava tenso em sua cadeira, esperando aquela ligação. Ele era um soldado classe S de duas estrelas e mantinha contato com a organização terrorista chamada Quatro Ventos, da qual a classe fazia de tudo para destruir.

Seu medo era que descobrissem sua farsa como soldado, que descobrisse que ele era um informante. Estava conectado à rede da instalação secreta, monitorada vinte e quatro horas por dia e mesmo assim estava prestes a receber uma ligação de um dos representantes do grupo. 

Estava imaginando o que falaria caso o pegassem. Diria a verdade? Que ameaçaram ele e a sua família e por isso estava fazendo aquilo? Será que essa desculpa seria convincente? 

Finalmente a tela de seu computador acendeu, notificando uma chamada. Tomas atendeu imediatamente, trêmulo. Era uma vídeo-transmissão, onde a pessoa do outro lado da linha estava vestida completamente de branco, um contraste do uniforme preto dos Classe S. 

— Informações — pediu a figura com voz robotizada. 

— Espera aí, eu tenho que ter certeza que isso não vai ficar gravado no banco de dados… 

— Não se preocupe — disse a voz. — Eles não irão interceptar essa ligação. Agora, me dê as informações.

Tomas exitou por um momento, mas resolveu confiar. O que tinha a perder? Ele tinha a própria família e a sua vida e o Quatro Ventos perderia um informante. Mesmo que tivesse motivos para desconfiar, e Tomas tinha, não faria, pois sabia que se desagradasse ao menos um pouco, ele perderia o que era mais valioso para ele. 

Por fim, o soldado relatou todos os boatos e alguns relatórios. Ele falou detalhes sobre o novo condutor que mantinha agora como recruta. O homem de branco não pareceu demonstrar nenhuma reação. 

— Suas informações se demonstram úteis — disse a voz. — Haverá uma mudança de planos em sua missão.

— E-espera! — gaguejou Tomas. — Mudança de planos? Você não falou nada sobre isso! Você disse que era apenas para eu lhe enviar informações importantes. Isso não fazia parte do nosso acordo.

— Você não está em posição de negociar — afirmou o homem de branco. — Agora prossiga com sua nova missão. 

E a chamada foi encerrada. Tomas deu um soco na mesa e soltou um palavrão. No instante seguinte um arquivo compactado chegou ao seu computador. Depois de muita relutância e pensamentos conflitantes, o soldado abriu. 

Era um arquivo executável que infectou o seu computador com um vírus. Para desfazer aquilo, Tomas teve de usar seus conhecimentos em criptografia para acessar os códigos. 

Depois de meia-hora batalhando para não perder o seu computador e sai no prejuízo, ele descobriu uma mensagem por trás do vírus. 

 

[N0V4 M1SS40: M4T3 0 C0NDU70R]


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