Volume 1
Capítulo 8: Desavenças São Formadas Por Mal-Entendidos... Ou Fofocas
As paredes tremem toda vez que mais dejetos passam pelos canos. É como se esse lugar inteiro tivesse sido remendado.
Depois de passar um tempo tentando consertar o vazamento entre uma ligação e outra, e me sujar todo por conta disso, decidi dar uma pausa e ir descansar. No canto da sala há um computador empoeirado, é ali que estão as nossas tarefas.
— Ei, você não terminou de limpar aquela parte! — diz o meu precioso companheiro.
E para piorar, estou preso aqui dentro com o cara que me agrediu por nenhuma razão aparente e um relógio irritante que fala.
— Eu sei, mas já cansei.
Sento na cadeira do computador e começo a fuçar. Será que tem algum joguinho para matar o tédio aqui? Mas só consigo achar mais planilhas, droga.
— Se você tá achando que eu vou fazer a sua parte, pode tirar a ideia da cabeça! — fala o meu colega.
— Vem cá, grandão. — Me levanto de uma vez, estalo o pescoço e ando como se desafiasse ele. — Qual o teu problema comigo? Nunca te fiz nada.
— Você é um condutor! E meu nome não é grandão!
— É grandinho, então?
— Ah! Seu… — Ele pega o cabo da vassoura para me ameaçar.
— Amigos! — diz a voz que vem do meu pulso. — Não briguem. Ou do contrário vocês serão submetidos a fazer tarefas mais desagradáveis.
Que merda. Não podemos nem mesmo sair no soco para distrair. Eu daria qualquer coisa por alguma distração. Já estamos a tanto tempo aqui que o cheiro ruim e a ardência nos olhos nem me incomodam mais.
Continuamos nossas tarefas, separando o lixo em sacolas e depois despejando elas em lixeiras específicas. Consertamos alguns canos que estavam vazando, a maioria eu só coloco uma fita, outros tem que trocar toda a tubulação.
Para onde todo esse lixo vai é um mistério, espero que para algum lugar bem longe daqui.
Mais algumas horas se passam e dessa vez até meu colega de confinamento parece cansado. O pior de estar no calor, é que aqui só se usa preto. Eu tiro a camisa, não vou aguentar mais.
— Tô para pegar fogo — digo enquanto enxugo o suor da minha testa com a camisa.
O meu colega não parece confiar muito em mim, sempre mantém distância e quando digo para fazer algo, sempre se afasta ou me olha com raiva.
— Qual foi, eu não vou fazer nada com você. Sejá lá o que você pensa sobre mim, saiba que está errado. Eu sou gente boa, pow.
— Você matou metade da sua cidade — responde, frustrado. — E só para ganhar esses poderes. Não sei o que a comandante está pensando em deixar você aqui, mas não aceito isso.
— Pera aí, aquela velha disse que eu matei metade da cidade? — Agora quem está frustrado sou eu.
— É o que me disseram.
Eu me aproximo dele.
— Escuta aqui, eu não diz isso. O que aconteceu foi um acidente e eu por acaso me envolvi no meio disso tudo. Só estava no lugar errado, na hora errada.
O grandalhão não parece acreditar muito em mim, mas sinto que ganhei um pouco do interesse dele. Esse cara é muito ingênuo. O olhar dele me diz isso.
Nós dois conversamos. De início ele resiste, mas logo ouve. Na parte que falo sobre como consegui aquela estranha esfera de raios, ele me fuzila de perguntas. Sinto que ganhei um pouco de sua confiança, o que só me dá ainda mais certezas que esse cara encara qualquer palavra do que você diz como verdade.
Isso é bom para mim, pois significa que não haverá dúvidas entre nós dois, porém também significa que qualquer pessoa pode inventar uma mentira e ele aceitar.
Depois de responder a maioria e finalizar a minha história, ele começa a me contar o motivo de ter me bateu. Pelo visto, algum outro recruta engraçadinho, chamado Ermo, decidiu que era uma boa ideia me sacanear.
Enganou o grandalhão com mentiras a meu respeito. Segundo meu novo colega, que acabo de descobrir que se chama Ônix, o tal Ermo é do Distrito 5. Isso explica muita coisa.
Caso você não saiba, e todas as crianças do meu distrito sabem disso, por algum motivo que até hoje ninguém entende muito bem, as pessoas do Distrito 5 odeiam os do Distrito 2. E quando digo ódio, não me refiro a uma rivalidade saúdavel.
Meu pai falava que o motivo era inveja relacionada a uma antiga história do Rei ao separar as tarefas de cada distrito. Eu também ficaria muito furioso se nosso distrito fosse apenas um grande deserto cheio de areia. O Distrito 2 pode ter seus defeitos, assim como qualquer outro distrito, mas não podemos reclamar da nossa variedade de biomas.
Seja como for, esse ódio da parte deles existe até hoje e vou ter que tomar cuidado a partir de agora. Ser um Condutor só vai ser mais um motivo de ódio para esses caras.
Eu também descubro um pouco do passado do meu novo colega. Ele já era filho de um Classe A, aqui do Distrito 1, e conseguiu virar um S. Agora só falta terminar o treinamento como recruta para ser oficialmente contratado.
Ônix me explica que vão haver alguns testes antes da formatura, lógico. Só que eu não fazia ideia de que esses testes eram práticos. O grandalhão ainda não sabe como vão ser, mas pelo visto vão nos pressionar fisicamente e psicologicamente. Compreendo, só passa quem for a elite da elite.
Depois voltamos a falar sobre a vida. A vida dele foi mais tranquila que a minha, ainda bem, o que explica um pouco a sua ingenuidade. Ele está ansioso para ir visitar os pais novamente, mas isso só vai acontecer quando já estiver formado. Até lá, tem de permanecer aqui, assim como eu e os outros.
Bem que eu queria sair daqui também. Mas tenho que permanecer e assim ajudar as pessoas que amo.
— Ai, que tédio! — Me espreguiço. — Agora a gente só tem que esperar, eu acho. Já fizemos tudo.
— Sim. Essa vai ser a parte difícil.
— Pode crer. Se ao menos o computador tivesse um joguinho de cartas, até que não seria ruim…
— Olá! — O meu relógio fala e eu tomo um susto. — Acho que posso ajudar. Basta me plugar ao CPU.
Não confio muito nesse troço, mas não custa nada tentar. Afinal de contas eu já estou no inferno. Aproximo meu pulso do computador e um pequeno cabo que sai do relógio se conecta a ele. Após um tempo, um jogo.
— Um jogo de corrida?
— Sim! E dá para nós três jogarmos.
— Ahm… Tá bom então. A propósito, você pode sair do meu pulso?
— Não. Mas posso mudar de forma — diz animado.
— Urgh. Tá, muda para algo menos chamativo. Tipo uma pulseira.
E é exatamente isso que ele faz.
Depois eu e o meu colega jogamos o joguinho para matar tempo. E acho que acabamos matando tempo demais. Na verdade, passamos o resto do nosso castigo jogando.
Após muito tempo a Solares chega e nos pega jogando. Ela fica um pouco brava, mas está melhor do que antes. Mais calma, centrada, mais séria, com certeza.
— A Comandante Negra fará um pronunciamento e exige que todos ouçam — diz ela. — Então venham logo.
A cara de decepção que ela faz quando saio fazendo piada com o Ônix é interessante. O que ela esperava? Que Ônix ficasse preso comigo por horas e não gostasse de mim? Puff! Conta outra.
ϟ DORMITÓRIO ϟ
No dormitório as coisas permaneciam quietas graças ao grande discurso que a Comandante Negra estava fazendo para seus novos Recrutas no refeitório.
Porém, havia um grupo de três jovens reunidos, falando as maiores depravações humanas. De certo, não havia uma única opinião negativa que tais jovens não possuíssem. Podiam ser declarados como irmãos, já que possuiam o mesmo rosto triangular, nariz adunco, pele morena e cabelos marrons.
Um deles, o mais bem apessoado, estava sentado no beliche, na parte de baixo. Havia outro garoto, muito alto e magro, apoiado na cama logo a frente, encarando seu colega de baixo para cima. Ao lado dele, a terceira integrante: Uma garota de cabelo seco e com algumas espinhas no rosto.
O mais bonito dos três, e que se encarava o líder daquele grupo, se chamava Ermo. Ele ria e contava piadas sem graça enquanto ouviam ao longe o discurso da comandante.
— Pelo amor do Rei, já é a milésima vez que essa velha fala qual o nosso objetivo aqui — diz Ermo. — “Blá, blá, blá. Vocês precisam matar os Condutores. Blá, blá blá.”
Eles riram da imitação, que envolvia uma voz envelhecida e uma pose exageradamente séria. Qualquer outra pessoa no mundo acharia aquilo a piada mais sem graça já existente, porém como eram aquele grupo, era óbvio que achariam engraçado.
— Para com isso — falou a menina, cujo nome era Parca, enxugando as lágrimas. — Ela não vai falar que os Condutores devem ser mortos, afinal ela trouxe um para cá, não foi?
— Ah! É verdade! Ela trouxe aquele cara! — disse ele batendo na testa. — Vocês viram como aquele carvão só aceitou o que eu disse como verdade e foi para cima do outro?
Houve gargalhadas. Mas apenas deles. Chamar alguém do Distrito 1 de carvão não era considerado ofensivo, no máximo você poderia estar trocando o nome da pessoa. Era como confundir José com Paulo, ou semelhantes. Entretanto, para o Distrito 5, chamar as pessoas do Distrito 1 de carvão era a maior ofensa que você poderia dar aquela pessoa.
— Eu vi — disse Parca, cruzando os braços, depois de quase explodir em risadas. — Ainda bem que aquele Condutor sabe lutar, porque se não teria virado pó de carvão. — Mais risadas.
— Hurum — murmurou o garoto alto chamado Saibro, que não falava nada exceto “Hurum”. Saibro sabia falar, só não era de falar nada.
— Ah! Uma pena que aquele Condutor não tenha usado seus poderes — fala Ermo. — Eu devia ter dito que para o carvão que aquele cara tinha matado alguma velha, ou sei lá. Não sabia que ia levar o que eu falei tão a sério. Só lembrar da cara patética dele me dá vontade de rir.
— Ei. — Ela bateu em seu ombro de leve. — Não vai rir na frente dele, Ermo. Vai acabar arranjando confusão para o teu lado.
— Parca, aquele garoto não me dá medo — respondeu cinicamente. — O que ele vai fazer comigo se o Saibro estiver perto?
Saibro deu uma risada com a garganta.
Um pequeno silêncio se fez entre eles, o suficiente para ouvirem o discurso da comandante mais uma vez. Ela começou a falar a respeito de como os novos tempos estavam chegando, tempos de mudanças e, consequentemente, de paz.
Falou que novos talentos estavam presentes no meio deles, não quem eram, mas não precisou dizer. Todos sabiam que ela estava se referindo a Chefe dos Recrutas Solares, a garota que foi criada por Negra desde que seus pais morreram em um ataque, o ataque de um Condutor.
Entretanto, algumas pessoas, e aqueles três no dormitório eram essas pessoas, sabiam que ela estava se referindo ao novo Condutor, o novo brinquedinho da Classe S.
— E quanto ao Condutor? — perguntou Parca, se aproximando do rapaz. — O que quer fazer com ele?
Ermo olhou para o beliche da frente e por alguns segundos pareceu entrar em uma bolha onde só existia ele e seus pensamentos. Sua visão ficou turva, pois não via o que estava na sua frente. Viu o que sua imaginação produziu e ouviu o que o seu coração desejou.
Imaginou seu lar. Uma grande e tortuoso mar de areia sem fim, que considerava o maior inferno possível. Estudou a vida inteira para aquele momento, para ter uma vida melhor e sair do inferno. Viver naquele lugar não era fácil, nem para os mais poderosos. O deserto era o seu inferno.
Então um sorriso lento, frio e maquiavélico surgiu em seu rosto.
— Vou mostrar para ele… — E sem ainda olhar para a sua colega, ele respondeu a pergunta com voz arrastada: — Vou mostrar como é viver no deserto.
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