Volume 1
Capítulo 34: O Pior Fardo De Carregar É Aquele Que Não É Seu
Amor desencosta seu ombro do meu e acaricia ele com uma cara de quem sentiu algo estranho. Dou um sorriso. Vai ver ela percebeu o que estava acontecendo.
Finalmente decidi contar para ela tudo que aconteceu. Não é como se ela fosse sair por aí contando para todo mundo. Posso confiar nela. Tive essa impressão assim que senti a sua energia.
Enquanto falo a minha jornada ela vai fazendo várias caras e bocas, além de fazer exclamações altas demais, talvez até incomodando os outros pacientes.
Quando finalmente acabo de falar sobre o que aconteceu no Porão e de que aquilo é o teste final, ela se levanta da cama com um salto, bate nas minhas duas pernas e diz com fibra:
— Então você vai ter que ajudar a gente!
— Na sua Revolução dos Recrutas Rebeldes? — brinco.
— Estou falando sério, Kaike. Se esse é realmente o último teste, significa que nunca vamos passar e um monte de gente vai morrer. Você não vê que o treinamento que estão fazendo atualmente com a gente é horrível? Gente que não tem muita habilidade de combate igual a Vida vão acabar morrendo, Kaike.
Reflito por um segundo. Pelo visto todos, independente de passarem ou não no torneio, vão passar por esse teste final. Os que tiverem melhor pontos vão estar mais bem armados e os com menos vão estar apenas com armas básicas.
Isso me irrita. No fim o problema mesmo não está no treinamento e sim na escolha de teste dos classe S. Essa classe é a que está fazendo os seus estudantes morrerem e não o treinamento da Sol e os auxiliares dela.
Entretanto, eu não tenho forças para mudar isso. Tenho que fazer o que estiver ao meu alcance para acabar com isso.
— Então você sugere que eu entre para o grupo de vocês e ajude vocês?
— Isso!
— E como vai ser essa ajuda?
— Você vai nos treinar no lugar dos auxiliares.
Se eu estivesse comendo algo eu teria cuspido para longe essa coisa após essa afirmação.
— Como é que é? Eu não posso treinar vocês, eu não sou auxiliar. Isso vai de encontro com as regras.
— Vai nada — fala com simplicidade. — A Solares é que pode designar os Auxiliares, mas não tem nenhuma regra que proíbe você de fazer o que quiser. E os pontos que se ganham em treinamento, se ganham pelo treinamento e não por treinar especificamente com um Auxiliar.
— Isso não me parece certo. Você quer que eu desafie a autoridade da Chefe dos Recrutas.
— Ela não tem autoridade nenhuma. Ela ia perdendo para você naquele dia em que te encontrou no dormitório. Você se lembra? Todo mundo ficou comentando depois que ela não era capaz de fazer nada contra um Condutor. Isso abaixou demais o moral dela.
Fico em choque. Não sabia que uma briga como aquela poderia fazer tão mal a reputação de alguém. No fim ela deve ter razão. Tenho que tomar cuidado com isso.
— Isso não é verdade. A primeira vez que ela me encontrou ela tinha conseguido me atordoar.
— Tanto faz, Kaike. O ponto é: Você vai nos ajudar a melhorar o nosso treinamento? Eu sei que você pode nos ajudar. Você me contou toda essa história do Porão e como você salvou um Soldado de duas estrelas!
— É, Amor, mas eu sou um Condutor.
— Um Condutor do D2, que antes era um Classe E, não é?
— Como você…?
— Kaike. — Ela segura as minhas mãos. — Você vai nos ajudar. Ou então muita gente vai morrer. Está disposto a deixar isso acontecer?
Argh! Falando assim até parece que tenho opção.
— THOMAS —
— FALTAM 4 MESES PARA A EXPLOSÃO —
Thomas chega em seu quarto após ter de se reportar para os superiores. Teve tempo suficiente para pensar em diversas desculpas, o que acabou resultando em mais uma impunidade.
Seu maior problema até ali, desde que saiu do Porão, fora aquela garota, a nova Recruta. Ela era extremamente irritante e ficou no seu pé praticamente todo o período em que estava na curandeira, acompanhando Kaike.
De tão implicante que era a garota, querendo saber sobre detalhes do que os dois andavam fazendo, acabou por deixar o seu salvador sozinho com ela. Isso ele se arrependia um pouco. Na realidade, estava começando a se arrepender de muitas coisas.
Thomas se sentou em sua cadeira e ficou observando o seu computador por um tempo. Logo seria chamado, sabia disso. Sempre sabiam, sempre o vigiavam e ele nunca soube como faziam isso.
Enquanto nada acontecia, o soldado se pôs a pensar no que havia acontecido nas últimas horas. Ora, era óbvio: Kaike lhe salvou diversas vezes. A última vez em que fez isso, Thomas podia ter lhe abandonado e ter dado fim aquele Condutor, completando, de certa forma, a sua missão.
Mesmo assim, alguma coisa dentro de Thomas fez com que ele fosse incapaz de cometer tamanha atrocidade. Como poderia ele, um homem de bem que apenas estaria defendendo a sua família, matar um garoto tão bom quanto Kaike? Aquele que havia lhe salvado da morte certa.
Havia levado Kaike naquele lugar para que pudesse dar fim a ele sem que ninguém suspeitasse. Nenhuma pessoa jamais acharia seu cadáver, talvez apenas pedaços que logo, logo seriam engolidos pela praga dos Estertores ou outros mutantes que viviam nas profundezas do Porão.
Estava verdadeiramente envergonhado por tudo que tinha feito até ali. No fim, bastava ter deixado que a última criatura tivesse matado o rapaz e agora a sua família estaria solta e vivendo feliz com ele. Ele até mesmo poderia arriscar tentar denunciar a religião dos 4 Ventos, dizendo estar sob ordens dele.
Talvez as pessoas da classe S o poupassem de um fim terrível e fossem compreensíveis com ele. Mas no fundo Thomas sabia que isso não era verdade. Por mais que estivesse sob controle de terceiros, o errado era ele por colocar a segurança nacional em risco por conta de sua família.
A família não vale um continente inteiro. Ou será que valeria? Thomas estava contando que a resposta fosse positiva. No fim é a nova geração que vai ficar para construir um mundo melhor. Mas de que adianta um mundo onde ninguém vive?
A tela do computador exibiu uma notificação. Era uma chamada desconhecida. Thomas sabia muito bem quem era. O aplicativo tocou algumas vezes, tempo suficiente para que o soldado de duas estrelas respirasse fundo e criasse coragem para atender. Estava preparado para qualquer punição que fosse receber.
Ele clicou no botão para atender, já imaginando qual desculpa daria. Qual desculpa poderia ser boa o suficiente para comprar ainda mais tempo?
— Alô — disse ele enquanto se ajeitava na cadeira. — A missão foi um fracasso. Acabou acontecendo um acidente e eu…
— Sua missão foi bem sucedida — falou a voz distorcida digitalmente.
Thomas se espantou e encarou a tela do computador. Ali estava uma pessoa com uma máscara branca com algumas marcas que formavam desenhos de nuvens. O fundo da sala era completamente branco. Não havia nenhuma característica para definir onde estava aquela pessoa do outro lado da tela.
— Ahm… Bem sucedida? Como… Como assim?
Sabia que Os 4 Ventos eram capazes de muita coisa, porém até mesmo eles tinham acesso a câmeras no Porão? Como isso era possível? E se tinham tanto poder dentro da instalação, porque eles mesmo não davam cabo de eliminar o jovem Kaike?
— Sua hesitação em matar o Condutor de raios acabou nos dando uma excelente oportunidade para o futuro. Uma nova missão será dada a você. Dessa vez, não há como a sua consciência falhar.
Eles sabiam até disso. Isso deixou Thomas perplexo. No fim, conseguiu uma segunda chance, a chance de provar o seu valor e com certeza salvar a sua família. Porém a garantia de que ele não iria falhar estava começando a lhe preocupar.
— Q-Que missão seria essa?
— Estou enviando a missão e o arquivo criptografados dos planos.
— C-certo… E o que você quis dizer com “Dessa vez não há como a sua consciência falhar”?
A pessoa de máscara branca inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse confusa.
— Achei que você fosse mais esperto, soldado de duas estrelas. Quis dizer que se falhar dessa vez, pode dar adeus a sua família.
Um vídeo mostrando a mulher e o filho de Thomas apareceu na tela. Thomas engoliu em seco. Ficou tão branco quanto papel na hora.
— Estamos vigiando — falou a voz robotizada. — Salve os 4 ventos.
— Salve os 4 ventos — murmurou Thomas em uma voz fraca. Quase não teve forças para fazer a saudação, que consistia em apenas levantar os 4 dedos para cima.
A transmissão foi encerrada e a missão apareceu completamente criptografada para Thomas. Ele teve algum trabalho para decifrar a mensagem, porém assim que conseguiu fazer ela ser legível, seu estômago embrulhou e Thomas sentiu vontade de vomitar só pela ideia de fazer isso.
[N0V4 M1SSÃ0]:
[El1m1n3 t0d0s 0s R3crut4s.]