Volume 1
Capítulo 16: Quando A Vida Dá Leite Coalhado, Paciência, Você Consegue Queijo Muito Bom
Enquanto ando para um lado e outro consertando a bagunça desse maldito lugar, Remi não para de fazer diagnósticos a respeito do meu estresse.
Isso é irônico, porque quanto mais tempo ele passa sem calar a boca, mais estressado fico.
Perguntei para ele se podia voltar à realidade virtual e treinar lá, mas ele me impediu dizendo que eu deveria passar pelos meus castigos primeiro.
Que sujeito irritante. Quando quer, fica falando sem parar e quando realmente preciso de um favor me vira as costas. Não passa de uma máquina idiota.
Desde a última vez que vim aqui parece que essa sala virou um chiqueiro ainda pior. Por acaso os outros recrutas que vieram passar por esse inferno não limparam a sala? Se o fizeram, parece que só pioraram ainda mais a situação.
Pego meu rodo, ponho um pano encharcado de água com produtos de limpeza, que fica em um balde do meu lado, e vou limpando o esgoto do chão. Isso é mais desagradável do que difícil.
Passo horas sendo obrigado a sentir o cheiro horrível daquele líquido estranho. Depois ainda concerto alguns canos e por fim vou até à pilha de lixo que é despejada ali, pego e levo até uma comporta que despeja as sacolas fora.
Eu não tenho a menor intenção de descobrir o que tem dentro desses sacos de lixo. Alguns vem molhados e isso já torna tudo incrivelmente repulsivo.
Continuo meus trabalhos, cheio de raiva, pensando no que vão fazer com meu bastão. Aquele bastão…
— Detecto uma mudança de humor — fala Remi. — O que está pensando?
De início penso em não responder. Fico mais aborrecido só com o fato de ter essa inteligência artificial no meu pulso falando comigo. Mas de algum jeito essa frustração vai se acumulando no peito e preciso desabafar .
— Pensando: por qual idiotice esses idiotas pegaram meu taco!
Entorto o rodo que eu estava usando e jogo para longe o mais forte que posso. Sou forte o suficiente para fazer o alumínio entortado bater em um canto da sala e quicar até a outra parede.
— Bando de idiotas? — pergunta Remi. — Não foi apenas a Chefe Solares que pegou o seu bastão?
— Tô falando desse lugar inteiro! Como que a Comandante deixa isso acontecer? Ela autorizou que ficasse comigo. Droga! Se eles fizerem alguma coisa com o meu taco…
— Pretende destruir tudo?
Ele questiona com um tom de curiosidade inocente.
Eu paro de andar de um lado a outro. A pergunta de Remi me deixa pensativo. Não é como se eu quisesse provar que as alegações do Ermo estão certas, de que eu sou digno da dúvida e desconfiança. Mas ao mesmo tempo, eu preciso daquele taco.
Solto um suspiro.
— Não. Não, eu não pretendo destruir tudo. Eu não sou assim.
Me sento em um dos cantos da sala. Olho fixamente para a tubulação e percebo quando se mexem, o que significa que uma corrente de dejetos estão passando por ali.
— Aquele taco era assim tão importante? — pergunta novamente.
Lembro que Remi é uma I.A que está a serviço da Comandante. O que significa que qualquer coisa que eu disser pode e provavelmente será usada contra mim. Melhor deixar tudo esclarecido.
— Claro que sim. Era presente do meu pai. A última coisa que ele deixou antes de morrer. Não quero perder isso.
— Detecto sinais de melancolia em você. O que me leva a crer que tem muita sensibilidade com o assunto.
Eu dou uma leve risada. Esse robô é uma piada mesmo. Não conseguiram implantar nele uma caixa de carisma?
— Não estou melancólico por conta do taco. Só pensei no meu pai.
— Como é ter um pai?
Parando um segundo para pensar, não tem como você instalar uma programação que diz o que é ter uma família. Acho que essas experiências devem ser sentidas e vividas. Estou começando a sentir pena de todas as I.A do mundo.
— Eu não sei como é ter pai, eu sei como é ter o meu pai. E eu vou te dizer, ele era incrível. Sério mesmo, talvez vocês dois se dessem bem. — Dou novamente outra leve risada. — Na verdade, tenho certeza que ele se daria bem com todo mundo aqui. E no fim ainda conseguiria fazer o que é certo. Ele costumava dizer: Não há um mal que não traga um bem.
— O que ele queria dizer com isso?
— Ah… É que teve uma vez…
E então começo a contar uma história antiga a respeito do meu pai. Essa eu participei bem de perto, então tinha muitos detalhes. Isso não me cansou, porque, pelo incrível que pareça, falar sobre o velho Wattson é algo que eu gosto bastante.
Foi um dia engraçado, não para mim na época, hoje em dia ao menos eu acho motivo de risada.
Eu e meu pai tínhamos que sair da cidade. Na verdade, apenas meu pai, eu fui junto porque queria faltar aula e acompanhar ele, como sempre fiz. Nossa missão era simples: Encontrar uma malhada para pegar leite.
Foi uma das vezes em que vi meu pai desenrolando com um guarda da cidade. Óbvio que aprendi muito com aquilo, de como as pessoas são tão necessitadas de dinheiro e favores que acabam por deixar passar por cima de suas próprias normas apenas para conseguir um pouco de ajuda.
Meu pai costumava dizer que as pessoas que pediam favores apenas precisavam de ajuda e ele estaria lá para ajudá-las custe o que custar. Na época eu não achava que qualquer pessoa precisaria de ajuda, vide as pessoas de classe A, mas nunca discuti com meu pai sobre isso.
Nesse dia, o dia da missão do leite, nós fomos para um lugar bem distante, próximo ao Distrito 4, nosso distrito vizinho. Lá existe muito pasto e locais mais abertos, perfeitos para encontrar as malhadas.
Chegar lá foi fácil graças a um contrabandista. Na época Octávio ainda não era dono do pedaço. Esse contrabandista era tão bom, que se precisássemos de qualquer transporte ele estava lá para ajudar. Como ele era do D4 as coisas se tornaram ainda mais fáceis.
Conseguimos uma viagem de ida e volta pelo mar, andando pelas margens dos distritos. A viagem, que era para ser de um dia, acabou durando dois dias por conta de uma forte chuva com relâmpagos.
Na época eu tinha medo. Meu pai tentava me confortar, dizendo para não ter medo da tempestade, nem dos raios e nem dos trovões. Mas quando ele falava que devíamos respeitá-los, isso não ajudava nem um pouco.
Ao chegar em terra firme e andarmos um pouco pela planície que é aquele distrito, não demorou muito para achar uma malhada. Lá no D4 está infestada delas e de outros animais também. Eu aprendi a ordenhar e nós voltamos para casa por outro caminho, por terra dessa vez.
Pegamos carona contrabandeada que ia passando. Ela carregava vários animais, lá para o D4. Era uma carona providenciada por esse antigo contato do meu pai. Eu e ele ficamos com muita pena dos animais sendo levados para o nosso distrito. Aquilo não era vida, nem mesmo para um animal.
Infelizmente não fizemos nada, pois era lógico que se voltássemos os animais isso resultaria em um grande problema. O que não era um grande consolo. Pensar assim só me deixou ainda mais frustrado com aquele contrabandista.
De qualquer forma, aproveitamos para pegar um pouco mais de leite daquelas malhadas que estavam com a gente. Não podiamos livra-las como pagamento, mas ao menos podiamos fazer um cafuné nelas.
Quando chegamos em casa e fomos entregar os baldes de leite que conseguimos, a mulher que havia contrato a gente não quis. Ela primeiro reclamou da demora e depois falou que o leite estava ruim.
De algum jeito, nesse meio tempo entre pegar o leite e chegar em casa, o leite acabou estragando. Não sei se azedou, o leite parecia bom o suficiente para mim.
Agora a gente tinha um monte de leite. Eu pensava que toda a nossa missão tinha sido um fracasso, até porque, se o leite estivesse mesmo estragado, não dava nem para vender. Mas meu pai parecia confiante.
Quando chegamos em casa ele e minha mãe começaram a mexer no leite de um jeito que eu nunca tinha visto antes. Usaram várias ferramentas, colocaram coalho e depois tudo virou uma mistureba.
Eu não entendia como aquilo ia ajudar, porque, pelo que podia perceber, o leite estava ficando duro e com um aspecto horroroso. Parecia doença, sei lá. Vômito branco.
Pensei que meu pai tinha enlouquecido junto da minha mãe. Agora era um leite pastoso e meio consistente, quase sólido. Era algo bizarro. Eu questionei meu pai sobre o assunto e ele respondeu:
— Kaike, meu filho, quando a vida te der leite coalhado, tenha paciência, você consegue queijo muito bom.
E então depois de algumas horas a minha mãe veio com vários e vários pedaços de queijos. E eram muito bons, até porque minha mãe era uma cozinheira de mão cheia.
Vendemos alguns, ficamos com outros. E a partir dali eu aprendi que até nas situações mais complicadas a gente consegue tirar algum proveito. Daí a frase: Não há um mal que não traga um bem, faz todo sentido para mim.
— Recruta Kaike — fala Sol, chegando na sala.
Eu quase dou um salto com o susto. O que ela veio fazer aqui? Ela está vestida com aquelas roupas pretas novamente. Eu preferia ela de branco, mas essa roupa justa ao corpo até que não é tão ruim.
Me levanto um pouco impressionado com a rapidez que ela mudou de roupa só para vir aqui. Será se vai devolver meu taco? Vamos lá, o conselho do meu pai tem de valer alguma coisa nessa situação.
— O que foi? — pergunto.
Vejo uma pequena veia em sua testa pulsar.
— É Chefe Solares, Recruta.
— Mas gosto de te chamar de Sol. Combina bem com você.
Ela vira de costas, parecendo aborrecida.
— Vamos, você tem que se trocar para participar do treino.
— Treino? Que treino?
— O treino físico, das provas físicas. — Ela se vira para mim novamente. — Esqueceu das provas físicas?
— Ah, não, mas elas não eram, tipo, só depois de um tempo?
— O tempo já passou, Recruta. Você ficou um dia inteiro dentro desta sala.
Eu fico pasmo. Fiquei tão entretido em contar a história para o Remi que nem vi o tempo passar tão depressa. Na verdade nem senti sono.
Será se quando dreno energia o meu cansaço também vai embora junto com fadiga? Isso é um poder maneiro para madrugar.
— Vamos logo, Recruta Kaike!
E ela sai da sala bufando. Ainda não consigo entender direito ela, mas isso não impede de eu achá-la interessante. Ainda vou descobrir mais sobre ela, porque sei que ela está me escondendo alguma coisa.
Vou saindo da sala, pronto para enfrentar essa prova física. Tomara que não seja tão complicada assim.
— Essa prova é de teste físico? — pergunto para o Remi.
— Exatamente! Um teste excelente se quer saber. É bastante difícil.
— A é? Por que?
— Basta analisar os dados. Só ano passado pelo menos um sexto dos recrutas morreram.
Sinto um arrepio na espinha. Estou quase começando a implorar para que a vida pare de me dar leite coalhado.