Volume 1
Capítulo 11: Nem Todo Dia É Dia De Felicidade (2)
Estou em um ambiente completamente plano e parece infinito. O céu azulado é quase da mesma cor do chão, com uma ligeira tonalidade mais escura.
A sensação de se estar aqui é parecida com a de se estar flutuando, mesmo sabendo que meu corpo está firme em um chão.
É esquisito, não sinto vento nenhum passando pelo meu corpo, não ouço sons e de repente até o cheiro mais sútil de mofo do almoxarifado começou a fazer falta.
Confuso, ando para frente e tenho a sensação de estar parado, porque nada, absolutamente nada, parece mudar. Só sei que estou andando por conta do esforço que faço para me mover.
Fico preocupado. É assustador não conseguir ouvir nada além dos seus próprios passos e do seu coração bombeando.
— Remi! Onde é que eu tô? — Minha voz não ecoa.
A voz de Remi vem do céu e até me assustou de início:
— Você está em um ambiente virtual projetado apenas para você. Aqui é onde irá ter treinos particulares para dominar melhor os seus poderes.
Treinos particulares? Dominação do meu poder? Do que esse cara tá falando? Nunca pensei que esse povo esquisito da Classe S fosse querer eu, um Condutor, aperfeiçoando seus poderes.
— Por que será que esse lugar está me lembrando muito mais uma prisão sem saída do que um ambiente de treinamento? — pergunto com ironia.
— Esse é o ambiente padrão. Para mudar de ambiente basta me dizer.
— Ah, é? — Levanto uma sobrancelha. — Quero ir para meu quarto.
Imediatamente o ambiente muda. Paredes saem do chão e se unem com outros pedaços de paredes, formando corredores. O céu sem cor é coberto pelo teto branco, o mesmo da instalação secreta que eu fui forçado a ficar. Vários beliches também aparecem do nada, todos sendo expelidos pelo chão.
É uma cópia perfeita do dormitório.
— Onde estão as pessoas?
Não demora para as figuras humanas piscarem e aparecerem de uma vez. Alguns estão andando de um lado para o outro, outros conversando.
Ando até onde fica o meu beliche e acho Ash, ainda com um inchaço no rosto, sendo cuidado por Vida. Tento cumprimentá-lo, mas ele não parece prestar atenção em mim.
— É apenas uma simulação — explica Remi. — Essa simulação é baseada no que analisei dos ambientes e das pessoas. Estou tentando simular conversas e comportamentos com base no que vi, mas isso não significa que estarão 100% de acordo com a realidade.
Isso é assustador. Significa que ele está gravando conversas e aprendendo como uma pessoa se comporta. Fico imaginando os dados que essa inteligência artificial já tem de mim.
— E quais outros lugares você pode ir? — pergunto para satisfazer a minha curiosidade. Preciso saber até onde ele é capaz de ir.
Não me preocupo com perguntas indiscretas, se tem uma coisa que esse robô não entende, é sarcasmo e ironia. Logo, não preciso me preocupar com ele entendendo o duplo sentido por trás das minhas perguntas.
— Qualquer lugar que esteja na minha memória — responde. — Também posso projetar lugares novos baseados no seu pedido, porém nunca locais que ainda não descobri.
— Entendo.
Pondero por um momento. Isso calharia bastante em determinadas situações. Imagine que estivesse em uma cena de crime, mas não me lembrasse de tudo. Apenas pediria para gravar o cenário para tentar reproduzir a cena, todo esse poder armazenado no meu pulso.
Engulo em seco imaginando o tipo de tecnologia que a classe S tem em mãos. Passei a vida inteira na classe E, tendo de trabalhar muito para conseguir as coisas. Aqui eu consigo uma simulação praticamente perfeita se eu apenas desejar ter isso.
Minha casa passa pela minha cabeça e por um momento desejo estar lá, junto dos meus amigos. Se pudesse abandonar isso aqui e ir correndo para lá, eu faria. Embora Negra tenha prometido que iria ajudar com uma verba caso ficasse, não é como se eu acreditasse muito nela. E nem como se me importasse com essa verba.
Se eu conseguisse voltar, daria um jeito de ajeitar as coisas. Do meu jeito, como eu sempre fiz. Se eu tivesse a oportunidade de voltar para a minha cidade, voltaria sem pensar duas vezes.
Com saudades de caso, peço para Remi:
— Consegue me levar para o Distrito 2, em cima da usina hidrelétrica?
Nada acontece por um tempo. Até que de repente as paredes brancas somem. Meus colegas recrutas desaparecem. Uma luz à frente quase me cega e um vento forte me empurra alguns passos para trás.
Quando pisco, vejo que estou olhando para um céu azul e cheio de nuvens. O piso agora não é sem cor, é concreto. E na minha frente tem a paisagem mais bonita que já vi: O mar.
Vou o mais próximo até a beirada da barragem e vejo a água sendo devolvida para o seu lugar de origem através de passagens enormes.
Não faço ideia de como a pressão até hoje nunca arrebentou esse troço, meu pai uma vez explicou, mas para ser sincero nunca prestei atenção. Também não sei como conseguem tirar energia do mar, mas tem algo a ver com os geradores e a força da água.
Transformar um tipo de energia em outro tipo de energia. Um processo tão complicado que preferia apenas aceitar que era daquele jeito e ponto final.
Se eu soubesse que no futuro eu viraria um Condutor de eletricidade, teria prestado mais atenção nas aulas do meu pai. Afinal de contas, agora eu também tenho que produzir a minha própria energia.
— A última vez que vim aqui já faz muito tempo. — Fico observando a linda paisagem enquanto a leve brisa passa pelo meu rosto. Até a intensidade do sol na minha pele é igual.
Prefiro não dizer, mas gostaria de dar os parabéns ao Remi por fazer uma cópia tão verdadeira desse lugar.
Mas seja como for, isso aqui é falso.
Me viro e corro até o outro lado da barragem. Daqui dá para ver ao longe uma cidade. Aquela é Hidro City, local onde cresci. Depois da barragem ter explodido alguns anos atrás, decidiram instalar uma nova um pouco mais distante.
Isso levaria décadas para acontecer se não fosse a tecnologia do Distrito 6, que nos ajudou a melhorar ainda mais a segurança, dificultando para os antigos traficantes da cidade fazerem negócio.
Foi graças a mim que o Octávio, o traficante do Distrito 4, o mesmo do de Vida, conseguiu estabelecer seu poder na cidade. Eu mostrava para ele como passar por certas medidas de segurança, ele me emprestava mais dinheiro.
Obviamente, depois da grande obra e do investimento em segurança, a nossa cidade ganhou uma dívida absurda, deixando muitas pessoas desempregadas graças aos impostos abusivos que começaram a pedir.
Sinceramente, a coisa mais difícil para mim até hoje foi entender o imposto de renda; mas não era como se eu pagasse ele.
— Está pronto para o treinamento? — pergunta Remi.
Ah! Sim, quase ia me esquecendo desse detalhe. Estou aqui para treinar e não para ficar pensando.
Paro de contemplar tudo ao meu redor e dou atenção ao que ele está dizendo.
— É verdade… Que treinamento é esse que você está me dizendo? Você disse que é algo especial para mim, mas não sei se entendi muito bem.
— Vamos para a prática então. Procure uma fonte de alimentação mais próxima.
Eu de início não entendo, mas dou de ombro e vou perambulando pelo lugar.
Preciso de pouco tempo para achar um grande cilindro de concreto, semelhante a um poste, com exceção de ser mais largo e alto. Nele há um registro de energia, ou algo parecido, anexado a ele. Na porta do registro tem uma placa dizendo de “PERIGO, ALTA VOLTAGEM”.
— Agora drene a energia aí de dentro.
— Drenar a energia? Como assim?
— Você é um Condutor de eletricidade, o que significa que toda vez que recebe uma descarga elétrica pelo corpo suas funções cognitivas e motoras melhoram.
— Pode falar a minha linguá? — cruzo os braços enquanto continuo encarando o registro de energia.
— Basicamente, você recupera parte da saúde e força quando drena eletricidade.
Tenho uma lembrança na minha mente, de quando aqueles soldados me atingiram com balas elétricas. Lembro de estar com a saúde em laranja e depois ela voltou para verde.
— Então quer dizer que é só drenar energia que recupero minha saúde?
— Parte dela. Depende do tanto de energia que consegue drenar.
Saquei. Ok, preciso drenar isso aqui, mas… Como eu vou fazer isso? O registro está fechado por um cadeado e não tenho nenhuma ferramenta capaz de abri-la.
— Ei, tem como me dar um alicate? Ou até o meu bastão para eu abrir essa coisa.
— Infelizmente não será possível. Você tem que aprender a usar suas próprias habilidades.
— E como eu vou abrir esse troço com eletricidade?
O robô fica em silêncio por um tempo.
— Você tem razão — diz finalmente. — Talvez seja necessário estimular os seus poderes através de uma situação de estresse.
Franzo o cenho.
— Como assim “situação de estresse”?
Letras aparecem na minha frente:
ϟ [NOVO OBJETIVO: DERROTE OS 3 OPONENTES USANDO SEUS PODERES] ϟ
ϟ [DICA: DRENE ELETRICIDADE PARA SE RECUPERAR DO DANO] ϟ
Espera aí, “dano”?
Imediatamente ouço algo atrás de mim. Viro-me e logo entendo o que vai acontecer.
São três pessoas idênticas, vestidas com roupas brancas e óculos escuros. Elas têm cara de mal, o que me faz lembrar de filmes que assistia quando era garoto.
Eles apontam o dedo para mim, como se não fosse óbvio que eu estava na frente deles e partem em minha direção, todos os três.
Bom, é só uma simulação. Não é como se fossem capazes de me machucar pra valer…
Levo um soco tão forte no rosto que minha cabeça é projetada para trás e minha nuca bate no poste de concreto. Sinto um gosto ferroso na boca e uma sensação desagradável nas minhas narinas.
Como esses caras conseguem ser tão fortes? Não, deixa isso para lá. Como essa dor consegue ser tão real?
Um deles me levanta do chão me puxando pela camisa e depois me joga para longe, para perto da beirada da usina.
Consigo me apoiar nos joelhos e depois usar essa força para ficar de pé. É dureza fazer isso quando se está com as costas doloridas e com a sensação de que sua nuca está prestes a explodir de dor.
— Merda, qual o problema desses caras?
— Faz parte do treinamento. São inteligências artificiais que tem como o objetivo te matar.
— Que tipo de treinamento é esse? — grito.
— Quando alguém é testado nos seus limites seu potencial aumenta e ela faz coisas que nem sabia que era possível fazer…
— Quem meteu essa pra ti? Um técnico de futebol?
Depois de gritar, rolo para o lado, desviando de algo que passou rasgando o ar ao meu lado. Olho para frente e vejo que os três estão jogando objetos que encontram no chão em mim, a maioria são barras de ferros.
Fico em posição de luta e nesse segundo os três disparam em minha direção. Droga, desse jeito vou acabar morrendo.