Trono de Cinzas Brasileira

Autor(a): Amaral Marcos


Volume 1

Capítulo 6: Ponta da adaga

Com os primeiros raios de sol, o mormaço começou a se esvair, levando com si os céus avermelhados da madrugada.

 

Intercalando entre alongamentos e bocejos, os alunos se preparavam para mais uma manhã de treinamento pesado.

 

— É um milagre, o senhor está acordado! — diz Hikari alongando seu ombro esquerdo.

 

— Fala comigo não bicho, respeita meu silêncio matinal — rebateu Senshi sonolento.

 

A quadra de corrida tinha um formato circular com cerca de 2km,onde os alunos eram obrigados a dar 5 voltas completas todas as manhãs. Com o comando do general, os alunos tratavam pela pista até finalizarem a primeira volta, aumentando o ritmo a partir dali.

 

Tomando a dianteira, Kaminari disputava as primeiras colocações ferozmente com Ichi, correndo lado a lado até serem ultrapassados por Hideki, um controlador de raio que tinha se especializado em usar seu elemento como um impulsionador de seus atributos físicos, lhe dando uma velocidade muito acima da média.

 

— Tentem não levar uma volta de diferença hoje! — gritou Hideki ultrapassando os dois correndo de costas.

 

— Sorte dele que não me deixam parar o tempo — murmurou Ichi.

 

— Eu não vou ficar para trás de novo nem ferrado — exclamou Kaminari, aumentando seu ritmo.

 

— Idem — assentiu Ichi o acompanhando.

 

Um pouco atrás, no meio da fila, Vulpe corria com seus longos cachos presos para trás, quando sentiu um leve empurrão de corpo vindo do seu lado direito.

 

— Desencosta! — bradou se virando para ver Vivian, que sorria a acompanhando.

 

Vivian era bem alta para uma garota de 16 anos. Exibindo um físico definido  que realçava sua pele clara repleta de cicatrizes, ostenta um cabelo preto como noite raspado na nuca.

 

— Que isso fofa, não precisa ficar irritada — rebateu Vivian forçando a voz como se estivesse falando com uma criança.

 

— Qual é o seu problema? — bufou Vulpe.

 

— Tenta me acompanhar — Aumentando seu ritmo, abriu uma distância considerável entre as duas — quem sabe assim você descobre!

 

Compondo o final da fila, Denki se esforçava ao máximo para não ficar para trás, mas nunca era o suficiente. 

 

Ele odiava com todas as suas forças as corridas, salvo a oportunidade que tinha de ver Yuki, que estava a meia pista de distância dele. Por algum motivo, ela era assustadoramente rápida e não se cansava facilmente, o que sempre lhe rendia uma boa colocação na chegada. 

 

Olhando por cima dos ombros viu Shimo, que estava um pouco atrás correndo de uma forma tão desengonçada que chegava a ser engraçado.

 

"Aparentemente suas pernas compridas não são lá muito úteis para corrida”, pensou se esforçando para não ceder ao cansaço.

 

Ofegante, pensava em como as corridas matinais seriam uma ótima oportunidade de falar com ela caso conseguisse acompanhar seu ritmo, porém era quase impossível alcançá-la daquele jeito.

 

"Se ao menos eu fosse mais rápido..."

 

Alguns poucos minutos após o início da corrida, Hideki terminou todo o percurso liderando com uma diferença avassaladora, como sempre.

 

— Hideki, 10 pontos! — bradou um inspetor.

 

Indo contra a maioria, Hideki adorava o novo sistema de pontuação implantado no CTC, já que sempre conseguia uma boa colocação na classificação mensal.

Ele se sentia feliz por não sofrer nenhuma punição de fim de tabela, já que alguns alunos já tiveram fins horríveis por conta do baixo desempenho.

 

— Kaminari, 7 pontos! — gritou outro inspetor.

 

— Ichi, 6 pontos!

 

Com quase uma volta de distância, Hikari se perguntava como os outros conseguiam fazer 10km se tornar uma simples caminhada no parque, enquanto ele mal conseguia respirar após a terceira volta.

 

"Como esses caras correm tanto sem desmaiar de falta de ar? Eu quase morro toda manhã!" 

 

De olhos fechados e respiração ofegante, reuniu suas forças para terminar a última volta.

 

— Yuki, 3 pontos!

 

"Até a Yuki terminou e eu não?", pensou Incrédulo enquanto concluía a antepenúltima curva da pista.

 

Com a conclusão do aquecimento, os alunos foram levados para as quadras de treinamento de combate, começando com o teste de armas.

 

A área de combate era composta por seis quadras retangulares com cerca de 100 metros de comprimento feitas de chão batido, que gerava uma boa aderência aos coturnos militares que usavam. 

 

Adentrando a quadra, era possível ver as marcações gastas feitas de tinta preta que indicavam seus limites.

 

Mesmo sendo uma atividade rotineira, a tensão eletrificava o ar numa mistura de euforia e medo.

Cada passo dado em direção às suas fronteiras tingidas de sangue seco, aumentava ainda mais a sensação sufocante que banhava a arena.

 

Crateras e rachaduras serviam como um lembrete feroz deixado pelos combatentes anteriores.

 

Ao leste de cada quadra havia dezenas de suportes de armas dos mais diversos tipos e tamanhos, indo de adagas até machados de duas pontas feitos de madeira ou bambu, todas sem fio. 

A escolha das armas era livre para os alunos.

 

Ao subir as escadas, Yuki decidiu que naquele dia iria testar um novo tipo de arma. 

Passando os olhos lentamente sob a infinidade de tipos e tamanhos, uma em específico chama sua atenção, uma peça fina e comprida de madeira com uma guarda circular que antecede um cabo gasto. 

 

“Parece um florete”, pensou.

 

— O que você acha de treinarmos juntos hoje? — perguntou Shimo enquanto pegava uma haste comprida de bambu com uma ponta triangular.

 

— Só se você me prometer que não vai pegar leve comigo — rebateu Yuki apontando sua arma para ele.

 

— Nunca foi minha intenção mesmo.

 

Assim que todas as duplas tinham se formado, Sora deu o sinal para que começassem o treino de combate.

 

— E como tá o seu tornozelo? Ainda dolorido? — perguntou Shimo contornando suavemente os limites da quadra, sem tirar os olhos de sua oponente.

 

— Ainda ruim — respondeu Yuki, espelhando seus passos.

 

— Voc…

 

Tomando a iniciativa, Yuki lançou uma investida ao flanco esquerdo de Shimo, desferindo um golpe que, por muito pouco, não acertou a lateral do seu torso.

 

Quando percebeu o que estava acontecendo, Shimo já estava com sua lança na vertical bloqueando o golpe. Aproveitando o apoio, impulsionou a haste com força para cima, passando a poucos centímetros de acertar o rosto de Yuki.

 

— Você não deveria abrir sua guarda assim — gritou Yuki direcionando outro golpe diagonal.

 

Num reflexo instintivo, Shimo se jogou para trás, sentido a espada passar de raspão em sua camisa.

 

— Para alguém com o tornozelo machucado, você é bem rápida!

 

Julgando pelo movimento de seu antebraço esquerdo, Shimo deduziu que Yuki estava se preparando para um golpe pela direita.

 

Firmando sua base, segurou sua lança com as duas mãos na horizontal, deixando a ponta para direita.

 

— Você ainda não viu nada — disse Yuki levando a ponta de sua lâmina ao seu ombro direito.

 

— Me mostre então! — bradou Shimo segurando sua lança com mais força.

 

— Você que pediu!

 

Concentrando suas forças nas pernas, Yuki avançou a toda velocidade, abaixando para não ser acertada na cabeça pela longa haste de Shimo. O movimento foi sutil e preciso, criando uma abertura entre seu oponente e sua arma. Era impossível desviar agora.

Com seu corpo inclinado para frente, Yuki segurou sua espada firmemente, fazendo um golpe horizontal começando de seu ombro direito até as costelas dele, fazendo-o se encurvar com a pancada.

 

— Ai! — gritou Shimo junto do som abafado de suas costelas. 

 

— Eu te avisei — rebateu Yuki se endireitando.

 

— Mas precisava bater tão forte?

 

— Vitória! — gritou Yuki acenando para um dos inspetores — Se eu não batesse forte, você nunca iria aprender a fechar sua guarda.

 

— Tem razão — Shimo acena para outro inspetor — Derrota.

 

Abrindo um sorriso meigo, Yuki se despediu indo em busca da sua próxima dupla para continuar pontuando. Quanto mais se afastava, mais esforço Shimo fazia para a acompanhar com os olhos, sumindo gradativamente no mar de espadas e gritos.

 

“Maldita miopia”, pensava.

 

No momento em que saiu do seu campo de visão, ele se abaixou levando sua mão às costelas que haviam sofrido o golpe.

“Ela não tinha como ter pego um pouco mais leve comigo?” 

 

O treino continuou por cerca de duas horas até que Sora sinalizou uma pausa. 

 

— Seloko hoje a firma tá lucrando! Foram 35 pontos só nesse meio tempo! — disse Senshi sentando no gramado. 

 

— Cara, eu não entendo como você consegue pontuar tanto no treino de armas! — Hikari jogou seu corpo para trás deitando ao seu lado.

 

— Simples, ninguém consegue me acertar.

 

— Aposto que você não dura 15 segundos contra mim! — bradou Kaminari se aproximando dos demais. 

 

— Aposto que você não dura 10 segundos — rebateu Senshi.

 

Kaminari apontou sua wakizashi de madeira na direção de seu rosto: — Desafio aceito!

 

— Ei, calma aí filhão, não seja precoce! Eu quero tirar uns pontinhos de você também!  — debochou Senshi deitando de barriga para cima, usando os braços como apoio para sua cabeça — Assim que acabar o intervalo a gente resolve isso.

 

Sentindo seu ego borbulhando como Mentos em Coca-Cola, Kaminari respirou fundo para manter sua postura, acenando a cabeça como resposta.

 

Com o fim do intervalo, Sora sinalizou para que os alunos voltassem para as quadras de treinamento.

 

— Está pronta para tomar uma surra, madame? — debochou Kaminari subindo as escadas da quadra.

 

— Se a donzela estiver, eu também estou! — rebateu Senshi caminhando ao seu lado.

 

A rivalidade entre os dois era tão palpável quanto suas armas de madeira,  chamando a atenção dos alunos que estavam próximos. Largando suas armas, se amontoaram em volta da quadra para verem o combate.

 

— Podemos começar? — perguntou Senshi fazendo acrobacias com suas adagas.

 

— Só se… 

 

Mechas de cabelo voam com o vento gerado pela adaga que caiu na diagonal a alguns metros de seus pés, quase acertando seu rosto. 

“Se não fossem meus reflexos, ele teria acertado meu rosto com toda certeza”, pensou Kaminari. 

 

 — Você vai precisar de muito mais que isso para me derrotar, Senshi!

 

— Eu não teria tanta certeza.

 

Senshi segurou a adaga com sua mão esquerda, apontando a lâmina para baixo, correndo em direção de Kaminari, que segurava sua espada na altura de sua cabeça com as duas mãos.

 

“Com essa base eu só preciso desviar enquanto ataco por cima, não tem como perder”.

 

Se jogando no chão da quadra, Senshi defendeu o golpe enquanto deslizava, pegando a adaga que havia jogado no início do combate e a lançando em Kaminari. Mal se virou quando sentiu um objeto pontudo pressionando suas costas.

“Nem ferrando!”

 

Senshi aproveitou seu movimento para se sentar de pernas cruzadas, rodando a adaga num movimento circular.

— Eu te falei, nem 10 segundos!

 

— Não fique se achando, foi pura sorte! — Irritado, Kaminari saiu a passos fortes da quadra.

 

— Vitória! — gritou Senshi para os inspetores que estavam ao lado — Vamos lá Kaminari, eu quero ouvir você gritando derrota! — debochou.

 

O treino continuou até o intervalo de almoço, o que fez os alunos se amontoarem no refeitório.

 

— Tudo bem se eu me sentar aqui hoje? — perguntou Shimo ao se aproximar da mesa em que Yuki estava.

 

— De jeito nenhum — rebateu Yuki balançando o dedo negativamente.

 

— Ah…

 

— Brincadeira, é claro que pode! — Com um sorriso meigo, Yuki se afastou abrindo espaço para se sentar ao seu lado.

 

Algumas mesas adiante, Denki os olhou de longe pensando como gostaria de conseguir falar com ela, porém já deveria ser tarde demais.

Cortando caminho entre os alunos, chegou na mesa que sempre se sentava com os outros.

 

Assim que se sentou, passou um longo tempo encarando sua comida num ar pensativo. Mal piscava.

 

— Aconteceu alguma coisa? Você parece meio distante — perguntou Dakota tentando o fazer piscar.

 

Dakota Lee estava no segundo ano do CTC, mas gostava de conversar com os alunos do primeiro. Seu cabelo escuro, levemente ondulado, destacava seus olhos cinza-azulados cercados de sardas, que cobriam todo o seu rosto.

 

— Não, só tô meio cansado — respondeu.                                                                      

 

— Sei não, você quieto é um tanto quanto estranho — Dakota se inclinou levemente para frente, apontando seu garfo na direção dele.

 

— Mas eu sempre tô quieto.

 

— É um quieto diferente.

 

— E agora existe grau de quietude é? — exclamou Vulpe cortando um pedaço de carne com força.

 

— Pra mim existe — rebateu Dakota.

 

— Vocês são tudo estranho, isso sim — falou Senshi misturando sua comida.

 

Surgindo do absoluto nada, Sora sentou ao lado de Senshi segurando uma xícara de café preto.

— Assim que o treino de controle começar, venha falar comigo.

 

— Qu-de onde você veio?? — falou Senshi quase engasgando com a comida.

 

— Apenas venha falar comigo.

 

Dando um gole do café, Sora desaparece do refeitório.

 

— Que merda você fez dessa vez mano? — perguntou Denki com um sorriso malicioso.

 

— Dessa vez eu juro que não fiz nada! — Fez uma pausa olhando para o nada — eu acho…

 

Ao final do horário de almoço, os alunos retornaram para as quadras para o treino de controle e, como pedido, Senshi foi falar com o professor.

 

— Vendo seu treino de armas, notei que você tem um grande potencial para combates de pequena/média distância a campo aberto, com objetos lançáveis-perfurantes de uma mão. Em distâncias regulares a campo aberto, você pode construir uma vantagem muito boa em relação aos seus oponentes. — explicou Sora.

 

— Ok, agora traduz — exclamou Senshi com um ar tedioso.

 

— Você manja das adagas — respondeu Sora, sorrindo de leve.

 

— Ah, tô ligado — assentiu.

 

— Bom, o que você acha de direcionar suas próximas semanas de treino nesse esquema? — falou Sora ao entregar uma folha a ele.

 

Analisando a folha, viu que se tratava de uma lista de técnicas genéricas de elementos avulsos com algumas ilustrações detalhadas sobre empunhaduras de adagas. 

Esquemas para cálculo de trajetórias de corpos, treinos de mira, ginástica, tabelas aerodinâmicas de facas e um planejamento de adaptação de suas técnicas. “Um planejamento esquematizado de técnica”, pensou ele.

 

— Você realmente acha que daria certo fazer adagas de vidro? — perguntou apontando para as imagens das facas.

 

— Se você as fizer com a mesma resistência da sua armadura de reflexos — parou como se estivesse lembrando de algo — vão funcionar.

 

— Tá, mas como eu faço isso?

 

— Sei lá, se vira ué!





Comentários