Trono de Cinzas Brasileira

Autor(a): Amaral Marcos


Volume 1

Capítulo 7: Motivos

Senshi segurava o papel que havia recebido enquanto manipulava uma massa amorfa de vidro em sua mão direita. O suor em sua testa, a respiração ofegante e olhos caídos revelavam árduas horas de treinamento sem descanso. Estava exausto.

 

“Como que eu vou criar uma adaga de vidro que não se quebre com qualquer coisinha?” 

 

Aproximando o polegar do indicador, a massa se comprimiu num formato fino e pontiagudo, semelhante a uma adaga, jogando-a de forma desleixada em um dos alvos à sua frente.

 

O som do vidro se quebrando formava uma sinfonia audível por todas as quadras, desconcentrando alguns dos alunos.

 

— Como esse cara ainda tem elemento depois de todo esse tempo criando aquelas coisas? — indagou Kaminari atacando um alvo com uma espada de pura eletricidade. 

 

Essa parte da quadra era cercada por bonecos de madeira, espalhados com posições e tamanhos diferentes. Cada golpe estalava nos bonecos de madeira, queimando suas pontas.

 

— Só porque você tem uma reserva elemental curta não significa que todo mundo tem! — rebateu Vulpe controlando meia dúzia de rochas.

 

— É foda, a minha deve ter o tamanho de um amendoim! — resmungou lançando uma corrente elétrica num boneco mais distante.

 

— É pra combinar com seu cérebro kkkkkk.

 

— Falou a guria que fica em todas as provas teóricas — debochou Kaminari.

 

— Pra que eu preciso saber calcular a trajetória de um projétil se num combate real é só jogar o trem com muita força?

 

— Olha… — franziu a testa olhando para lugar nenhum — Ok, você até tem razão.

 

— Eu sempre tenho.

 

Como um trovão, Sora passa entre os dois em direção a uma explosão na quadra B.

VAZIO!!!

 

Instantaneamente, a explosão sumiu sem deixar rastros. 

 

O treino de controle é o momento do dia em que mais trabalhava, enviando técnicas para o vazio a fim de que nada seja destruído e ninguém morra. 

 

Não era nada fácil, afinal a maioria dos alunos do primeiro ano ainda estavam aprendendo a controlar suas marcas, o que sempre gerava situações desesperadoras.

 

Escutando um grito vindo do outro lado das quadras, se teletransportou a tempo de enviar uma enorme parede de gelo para o vazio. Por sorte ninguém se machucou.

“Eu mereço um aumento!” — pensou.

 

No caos da quadra D, Hikari estava cercado por um grupo de inspetores que o confundia com ordens e correções desordenadas.

— Pelos deuses, calem a boca e me deixem em paz! — berrou Hikari.

 

— Só queremos garantir que você tenha um desempenho satisfatório — falou um dos inspetores tentando acalmá-lo.

 

— Como um controlador da luz, temos que garantir que você se desenvolva como o esperado — completou outro. 

 

Abrindo os braços e estufando o peito, Hikari os encarou de cima com um ar de superioridade em seus olhos: — E vocês acham mesmo que vou fazer isso cercado por meia dúzia de soldados falidos? 

 

Para sua infelicidade, os inspetores apenas camuflaram a raiva e seguiram com a seção de treino particular.

 

De longe, Denki analisava atentamente os outros alunos ostentando e aprimorando suas técnicas, as tornando mais complexas e mortais a cada dia. Porém, ele mal conseguia controlar suas marcas ainda.

 

“Porque eu não consigo controlá-las como todo mundo? O que eu tô fazendo de errado?”

 

Ele já havia tentado de tudo. Respirar fundo, meditação, foco, mentalização… nada funcionou com ele.

 

Fisicamente e mentalmente exausto, só conseguia pensar em como tudo aquilo era perda de tempo, afinal não importava o quanto treinasse, nunca conseguiria uma vaga numa boa divisão. 

 

Certamente iria morrer numa linha de frente esquecida. A mera imaginação de estar em uma das linhas revirava o estômago.  

 

Sentando no chão, contemplava as nuvens imaginando um futuro diferente, um futuro em que sua infeliz mãe viveria em paz num bairro seguro, um futuro em que seus irmãos não precisassem morrer de trabalhar nas minas, um futuro em que o reino fosse governado com justiça… um futuro de paz.

 

Um futuro utópico.

 

“Se ao menos eu tivesse talento pra isso, eu poderia garantir alguma segurança para eles…”

 

Virando o corpo de lado, viu o grande quadro de madeira e aço que ficava no centro da área externa. O chamado “quadro de pontuação” categorizava os alunos baseados nos resultados dos treinamentos diários, onde as primeiras colocações sempre eram ocupadas por alunos fora de série. Ichi, por exemplo, sempre terminava na frente no fim de cada ciclo. 

 

Os piores números sempre recebiam uma punição, que nos primeiros ciclos iam desde reduções dos dias de folga até prisões temporárias, porém isso mudou graças às novas ordens do conselho real. 

Os piores alunos de cada ciclo deveriam ser enviados para um exílio em uma das linhas de frente até receberem absolvição do CTC. 

 

“Os últimos que foram exilados ou ficaram malucos, ou nunca mais voltaram pra cá.” — pensou.

 

Forçando a vista, buscou seu nome no sombrio quadro, esvaindo suas esperanças a cada linha que percorria os olhos sem encontrar o consolo de seu nome.

 

Quando finalmente o encontrou, sentiu sua coluna enrijecer e seu coração gelar. Seus músculos tensionados travaram sua mandíbula e traqueia, dificultando a passagem do ar para seus pulmões. 

 

Por um instante, o mundo parecia se mover mais devagar. As densas nuvens escuras pararam de correr os céus, as folhas das árvores congelaram ao vento e as pessoas pareciam estátuas de mármore esculpido. 

 

Seu nome estava abaixo da linha de reprovação.

 

O som arranhado das sirenes indicava o fim do treinamento, levando os alunos das quadras aos dormitórios.

 

Roupas usadas espalhadas pelo chão, itens de higiene derramados pelos cantos, vapor quente dos chuveiros, sons de batidas e gritos transformavam os dormitórios numa verdadeira zona de guerra. 

 

Desviando de chicotes de toalhas úmidas e sabonetes voadores, Kaminari atravessou o campo de batalha até algo o fazer parar. Chutando um frasco de xampu vazio para o canto, parou do lado de Denki, que estava visivelmente perdido em seus pensamentos.

 

— Ta tranquilo mano? — perguntou Kaminari estalando os dedos na frente de seu rosto.

 

Despertando com o som, Denki o encarou até voltar a realidade:

— Ah, tô.

 

— Sei não em, você tá viajando mais que burguês de férias!

 

— Só to meio pensativo — desdenhou.

 

Apoiando o cotovelo em seu ombro, Kaminari levantou a sobrancelha abrindo um sorriso malicioso:

— Tá pensando nela né safado? 

 

— Né isso não doido — rebateu escondendo o sorriso bobo.

 

— Sei… é o que então?

 

— Err… — Como uma densa neblina, seus olhos se apagam à medida que buscava uma resposta — Sabe o quadro de pontuação?

 

— Sei.

 

— Meu nome… meu nome tá abaixo da linha de reprovação — balbuciou.

 

Desfalecendo seu sorriso, Kaminari recuou seu corpo para trás, travado e sem reação.

 

— Eu vou pra linha de frente Kaminari — completou Denki melancolicamente.

 

O pensamento de perder seu amigo cobriu sua feição de medo, formando lágrimas em seus olhos.

 

— Relaxa mano, isso não vai acontecer — falou Kaminari forçando um sorriso.

 

— Como não? — ergueu a voz — Eu teria que triplicar minha pontuação para talvez, só talvez ter alguma chance!

 

— Então vamos triplicá-la — rebateu dando um soquinho em seu obro.

 

Denki sentiu uma segurança inexplicável no olhar de Kaminari, trazendo uma paz momentânea.

— Mas… como? — indagou.

 

Colocando a mão no ombro de seu amigo, Kaminari estufou o peito apontando para si com o polegar: — Eu vou te ensinar tudo o que eu sei! Tudinho mesmo! — completou.

 

— Até usar uma espada? — falou Denki com os olhos brilhando de esperança.

 

— Tudo mesmo! Se quiser, ensino até fazer isso aqui — apontou para sua orelha mexendo em espasmos curtos.

 

— Daora kkkk.

 

Afrouxando com os movimentos repentinos, Kaminari sentiu a toalha em sua cintura cair, deixando seu corpo desnudo.

 

— Guarda esse negócio pra lá — berrou Denki se afastando desesperadamente.

 

— Pelos deuses! — gritou Kaminari envergonhado se atrapalhando com a toalha.

 

Com o fim de mais um longo e exaustivo dia de aula, Sora caminhou a passos curtos pelas ruas da periferia. Sua mente estava turva como água barrenta, preso nas ordens que recebera recentemente.

“Isso já está saindo do controle” — pensou.

 

Quando menos percebeu, já estava na porta de sua casa. Não recordava como tinha chegado ali, tudo o que conseguia lembrar era de ter saído do CTC.

 

Como de costume, colocou sua chave na fechadura enferrujada, mas dessa vez não teve de forçar para abrir. A porta já estava aberta.

 

Sora tinha certeza de que havia trancado sua casa como de costume, o que significava que mais alguém passou por ali hoje.

 

Espiando pela fresta, abriu a porta lentamente sem fazer nenhum barulho. A primeira vista, tudo parecia em ordem. Os móveis estavam nos seus devidos lugares, o cabideiro estava de pé e as luzes desligadas.

 

O ar estava gelado como de costume, carregando a poeira e fuligem das oficinas de ferreiro próximas dali. Era uma noite estranhamente calma.

 

Banhando por um silêncio perturbador, se distraiu algumas vezes com o som das batidas de seu coração, aumentando de intensidade a cada cômodo adentrado.

 

Com passos cuidadosamente posicionados, evitou as tábuas soltas espreitando cada canto com o cuidado de um cirurgião, mantendo sua marca ativa.

 

Ao terminar de verificar seu quarto, um som ecoou por toda a casa,  fazendo se virar com o susto.

“Na cozinha” — pensou.

 

Conjurando uma espécie de mini-vórtice na palma de sua mão, abriu caminho até a cozinha a passos rápidos. Quem ou o que estivesse lá ouviria seus passos como um aviso. 

 

Mesmo com a escuridão da noite, conseguiu ver uma silhueta humanoide olhando para  porta aberta da varanda. A figura parecia estar de costas, com os braços para trás e cabelos ao vento.

 

— Mãos na cabeça! — gritou Sora.

 

A figura virou a cabeça lentamente, o encarando de canto.

— Esse é seu último aviso — ergueu o vórtice em sua direção — Mãos na cabeça!

 

Abrindo um sorriso marcante, a figura balbuciou palavras inaudíveis antes de se virar e caminhar lentamente na direção da luz de uma janela. 

 

Sora sentiu um arrepio ao encarar aqueles olhos cansados e brilhantes caminhando lentamente em sua direção.

“Esse olhar… não, não pode ser” 

 

Com o rosto iluminado pela lua, a figura olhou no fundo de sua alma, estampando um sorriso de orelha a orelha: 

— A quanto tempo, Sora.





















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