Trono de Cinzas Brasileira

Autor(a): Amaral Marcos


Volume 1

Capítulo 5: Sussurros

Caminhando pelas ruas quase desérticas da periferia, Sora se espreitou por becos e vielas escuras, até chegar a uma casa simples feita de tábuas velhas e tijolos de pedra. 

 

Com uma certa dificuldade, colocou a chave na fechadura enferrujada e, depois de 3 solavancos brutos, conseguiu girar a gélida maçaneta metálica.

 

Limpando os pés num tapete verde desbotado, entrou em sua humilde residência jogando seu fiel casaco num cabideiro remendado, que sempre acertava mesmo estando escuro.

 

Puxando uma fina corda vinda do teto, Sora ligou as luzes da casa, que tinha um formato circular engraçado. 

 

Caminhando a passos lentos até a cozinha , colocou água para ferver num bule verde velho enquanto pegava alguns vegetais em seu armário gélido.

Afogando em seus pensamentos, preparava o jantar com movimentos robóticos e desengonçados.

 

O agudo chiar do bule somado aos brutos estalos da faca soavam como uma sinfonia perturbadora a sua mente inquieta, até que , minutos depois, despertou de seu transe. A água já estava fervendo. 

 

Despejou a água borbulhante com algumas ervas em uma caneca de bordas trincadas, caminhando até a varanda dos fundos da casa, onde se sentou numa cadeira de madeira que rangeu com seu peso.

 

Assoprando sua bebida, refletia sobre os acontecimentos das últimas semanas. A mudança de direção do CTC, a militarização excessiva, a dinâmica das aulas focadas em e combate físico, a sigilosidade dos assuntos da diretoria, o envio de crianças para serem mortas em uma “missão diplomática” e — suspirando longamente, levantou sua cabeça para olhar as estrelas — o suicídio de Horoyu.

 

Era estranho como tudo aquilo parceria se conectar… como se estivessem se preparando para algo maior, mas porque focar esforços militares justo no CTC? Os alunos só estariam aptos para combate real dentro de no mínimo 2 anos, mesmo para aqueles que estavam no terceiro ano.

 

Num estalo de revelação, se inclinou para frente enquanto segurava a caneca quente com as duas mãos incrédulo. “Dois anos era o tempo mínimo de preparo para uma guerra segundo o Código de combate”. 

 

“Não, ele não faria isso, não há motivos para iniciar uma nova guerra”, pensava. 

 

“Não há motivos?”

 

Enquanto isso no CTC, Hikari estava com os outros jogando conversa fora esperando toque de recolher.

 

— Cara, esse primeiro mês foi osso, espero que daqui pra frente fique mais de boa — resmungou Hikari.

 

Sentadas em uma mesinha de concreto, Yuki estava trocando as bandagens do seu tornozelo torcido enquanto Vulpe terminava de trançar seus longos cabelos levemente ondulados: — Nem me fale, eu sabia que seria difícil, mas está impossível! Mesmo com o tornozelo assim, eles me obrigam a fazer os treinos físicos todos os dias! — falou Yuki.

 

Shenshi e Denki estavam a alguns metros  jogando golzinho com uma latinha de refrigerante enquanto Shimo tentava passar pelos dois sem tomar uma cotovelada:

— Não entendo como uma simples latinha pode ser tão fascinante para vocês dois — protestou Shimo.

 

Com um drible habilidoso, Shenshi fez a latinha passar pelo gol improvisado com pedrinhas, apontando o dedo para Shimo enquanto Denki resmungava: — Tu não pode falar nada mermão, você gasta seu tempo livre lendo!

 

Após ter passado pelos dois, Shimo entrega uma bolsa de gelo para Yuki, que o agradece com um sorriso meigo: — Ao menos sei falar que nem gente, “mermão”! — debochou Shimo.

 

Já fazia algum tempo que Denki reparava em como Shimo e Yuki passavam mais tempo juntos. Por algum motivo, ele sempre sentia uma pontada de ciúmes quando os via, mas não sabia o porquê disso. 

 

Talvez fosse por nunca conseguir falar com ela sem tropeçar nas palavras, ou por todos os momentos em que a olhava de longe estudando na biblioteca, ou por sua graciosidade em combate, ou talvez… não, isso não.

 

Denki olhava para o nada com as bochechas vermelhas e corpo rígido quando ouviu Senshi gritando: — Eai ruivoreno, é pra hoje?!



Se esquivando de seus pensamentos, se virou no momento em que Licy, uma garota de pele clara, cabelos castanhos longos e olhos cor de mel, se aproxima do grupo. 

 

Acenando com a mão, ela caminhava sorridente em direção ao banco de concreto em que Kaminari estava sentado e, com um movimento delicado, se sentou ao seu lado, lhe dando um beijo na bochecha.

 

— Oii Kaminari, você ta muito ocupado agora? — disse Licy.

 

Sem se importar com sua presença, jogou o corpo para trás apoiando as costas no banco, a estralando numa sequência de 8 estalos.

 

— Tô. — respondeu Kaminari.

 

— Ah… mas e amanhã? 

 

— Provavelmente sim, o diretor ta pegando pesado com os controladores gélidos.

 

— Sei… é que eu queria saber se você não quer dar uma volta comigo no jardim, sabe… a lua ta linda hoje — falou Licy enrolando os dedos em uma de suas mechas de seu cabelo.

 

— Deixa pra outro dia, tô bem cansado hoje.

 

— Eu vou com você! — gritou Hikari se levantando do banco num pulo ágil.

 

— Ahm… 

 

Se sentindo um pouco desconfortável com a situação, Licy se levantou olhando para os lados na tentativa de encontrar uma desculpa:

— Na verdade, eu também estou bem cansada pra isso… quem sabe outro dia. 

 

Caminhando apressadamente na direção das quadras, Licy se virou por um instante antes de sumir por entre a imensidão do CTC: — Se mudar de ideia Kaminari, sabe onde me encontrar!

 

Quebrando o silêncio constrangedor que cercava o ambiente, Senshi se aproximou de Kaminari, apoiando seu peso em seu ombro esquerdo.

 

— Rapaiz, ou tu joga pro outro time, ou tu é muito lerdo! — falou Senshi fazendo questão de usar seu tom de voz mais insuportável possível.

 

— Assim do nada??? — respondeu Kaminari sem entender o que estava acontecendo.

 

— Mano, ela literalmente te deu um beijo e te chamou para dar uma volta com ela sozinhos DE NOITE! — enfatizou.

 

— Ah…

 

Kaminari apoiou a mão direita em seu queixo enquanto olhava para cima com uma expressão pensativa: — Esse pré-julgamento nem faz sentido, minha avó, por exemplo, me cumprimenta com um beijo e adora quando eu a acompanho em suas caminhadas.

 

Incrédulo com o que acabara de ouvir, Senshi apenas soltou um longo suspiro enquanto levantava balançando a cabeça.

 

— Rapaiz, se fosse comigo eu ia sem pensar duas vezes! — falou Hikari se espreguiçando.

 

— Ela nem é tudo isso — rebateu Vulpe.

 

— Pouca coisa não é.

 

Um som se uma sirene percorre todo o CTC indicando o início do toque de recolher, fazendo alunos irem para seus dormitórios de forma apressada. 

 

Na penumbra da noite, onde as sombras preenchem o ambiente, encontrava-se o mercado negro, um labirinto de becos estreitos e vielas escuras, escondido dos olhos curiosos da cidade. 

 

Luzes fracas de lanternas tremulantes projetavam sombras fantasmagóricas sobre as fachadas desgastadas dos prédios abandonados, onde os tijolos rachados e as tábuas desgastadas pelo tempo contavam histórias de decadência e desespero.

 

Figuras encapuzadas deslizavam pelas sombras como fantasmas. Seus passos, silenciosos, viajavam pelo ar impregnado com o cheiro de fumaça, especiarias exóticas e o metal frio das moedas trocadas em segredo.

 

Bancas improvisadas surgiam como ilhas de oportunidade na escuridão, exibindo uma coleção macabra de mercadorias proibidas. Armas clandestinas brilhavam à luz fraca, enquanto artefatos mágicos sussurravam promessas de poder além da imaginação.

 

Sob o verniz de lucro rápido e negociações tentadoras, a tensão era tão palpável quanto o sangue fresco que percorria todo o caminho como um lembrete sombrio do preço que se paga por adentrar suas entranhas.

 

Se espreitando como ratos-de-esgoto, Hanasu se moveu rapidamente por entre os bêbados, acompanhado de quatro homens encapuzados. Após alguns minutos de passos largos, chegaram até uma casa velha no fim de um beco que cheirava a carne putrefaz. 

 

Ao se aproximarem da entrada, Hanasu conseguiu ver o símbolo de uma caveira de cabra estampada perto da maçaneta da porta, o que significava que estavam no lugar certo. Com batidas ritmadas, a porta se abriu com uma leve fumaça branca, revelando um ambiente iluminado por uma luz vermelha.

 

Relutante em entrar, caminhou em passos silenciosos enquanto observava por cima do ombro um homem dilacerado no fundo da sala junto de outro sendo esfaqueado, enquanto algumas pessoas bebiam numa espécie de adega que ficava abaixo de uma escada velha de madeira. 

 

Quanto mais adentravam a casa, piores eram as coisas que viam, fazendo-o parar algumas vezes na tentativa de conter o vômito. 

Subindo as escadas, se encontraram num grande corredor no segundo andar, que levava a uma porta entreaberta. Apertando os olhos, conseguiu ver um das guardadas espreitando sob a luz roxa opaca que banhava o ambiente.

 

Com um aceno sutil de cabeça, os homens encapuzados que estavam com ele ativaram suas marcas, segurando sutilmente os cabos de suas armas escondidas pelos sobretudos. 

 

Adentrando a penumbra da sala, o guarda tentou golpear Hanasu com um corte ascendente, mas teve seu braço decepado por um dos homens encapuzados. 

 

Continuando seu caminho, manteve sua postura como se nada tivesse acontecido: — Podem matar esse aí, um brutamonte desmembrado não me serve de nada — falou Hanasu.

 

Sem nenhuma pontada de hesitação, os homens estriparam o guarda até se tornar uma nojenta pilha carne e ossos.

 

Dentro da sala, viu um homem sentado numa cadeira que , ao julgar por sua aparência a acabamentos, custava mais do que aquele prédio  inteiro. Ao seu lado, estavam meia dúzia de mulheres e, no mínimo, mais 20 guardas escondidos nas sombras das luzes roxas que banhavam o ambiente numa atmosfera sinistra.

 

— Quem te deu permissão para adentrar o meu castelo? — falou o homem num deboche repugnante.

 

— Preciso de armas — respondeu Hanasu.

 

Com uma risada curta, o homem se ajeitou em sua cadeira: — Então você está no lugar certo! — bebericou sua bebida num tom verde brilhante — De quantas você precisa?

 

— Todas.

 

— Todas?! — A surpresa faz com que se engasgue, cuspindo um pouco do líquido verde no chão — E como vai pagar por isso encapuzadinho?

 

Abaixando seu capuz, Hanasu revelou suas olheiras fundas, escondidas num olhar sério quase morto. Seus homens fizeram o mesmo, trazendo à luz suas armas e marcas ativas.

 

— Eu não vim comprar merda nenhuma.

 

Numa gargalhada egocêntrica, o homem fez um sinal com a mão e todos os guardas que estavam escondidos nas sombras surgiram, cercando toda a sala: — Você achou mesmo que com quat…

 

AJOELHEM-SE — bradou Hanasu.

 

A sua voz soa como um grande sino, ecoando em cada músculo, tendão e célula de seus corpos. O som dos joelhos se atirando no chão preencheu a sala numa sinfonia coordenada de gemidos de dor.

 

— Não me lembro de te dar permissão de fala. — disse Hanasu com um olhar sinistro de superioridade.

 

— Mas que por…

 

APROXIMEM-SE.

 

Todos os guardas, incluindo o homem, saltaram num forte impulso involuntário, parando a poucos centímetros ajoelhados ao redor de Hanasu, que agarrou os cabelos do homem enquanto se abaixava para ficar na altura de seu rosto: — Mais uma palavra e eu arranco a sua língua.

 

O homem o encarou, horrorizado, com os dentes cerrados. Uma mistura de medo e ódio.

— Bom menino! — sussurrou Hanasu jogando a sua cabeça com toda sua força no chão, o fazendo sangrar pelo nariz.

 

Erguendo seus braços abertos e elevando sua voz, Hanasu falou como se estivesse diante de uma grande plateia: — Não estou aqui para matar ninguém senhores, apenas quero todas as armas e, se quiserem, que se juntem a mim.

 

Nenhum dos guardas ousou se mover, cercando o quarto num silêncio monótono, cortado por uma tosse distante.

— E eu pago o dobro do que recebiam trabalhando aqui — completou Hanasu.

 

No mesmo instante, todos levantaram suas cabeças e, relutantes, acenaram com um sinal de concordância.

 

Ao ver a cena, abriu um sorriso de orelha a orelha: — Ótimo, LIBERTEM-SE!

 

Já de pé, os guardas começaram a buscar as armas, que estavam num cômodo secreto à direita da porta, subindo e descendo as escadas em passos largos e barulhentos.

 

— Deixem todas as armas na carruagem ao fundo do prédio, e — olhou para a cadeira exagerada — levem aquela cadeira também.

 

Enquanto a operação acontecia, Hanasu se abaixou novamente próximo ao homem, que continuava sob o efeito de seu poder: — Ah, uma última coisa, caso tente ir atrás de nós — aproximou os lábios de sua orelha esquerda — estamos com seus pais, Ihgor .

 

Ihgor… fazia anos desde a última vez que alguém o chamara assim.

 

Reunindo todas as suas forças, Ihgor tentou se levantar, porém seus esforços eram inúteis diante do poder de Hanasu, que desferiu um chute em seu rosto fazendo-o cair de lado com a boca sangrando.

 

— Você é insistente, tenho que admitir.

 

Ainda com a cabeça girando por conta do golpe que havia recebido, Ihgor sentiu uma pancada forte na boca de seu estômago, e depois outra, e outra até que tudo ficou preto. Ele havia desmaiado por conta da dor.

 

— Ele morreu? — perguntou um dos homens de sobretudo.

 

— Só desmaiou — respondeu Hanasu limpando o sangue em seus sapatos.

 

— E precisava de tudo isso? Matamos um homem por nada hoje.

 

Apoiando a mão direita em seu ombro esquerdo, Hanasu falou com um tom gentil sorrindo: — Entenda, se você tratar um gatinho como uma cobra irá perder sua humanidade e se tornará um ser cruel, porém se você tratar uma cobra como um gatinho, apodrecerá a carne se seus ossos e se tornará uma pilha de moscas.

 

— Entendo — assentiu.

 

Com dois tapinhas no ombro, Hanasu saiu da sala, desceu as escadas em direção à carruagem para ver o andamento do trabalho.

 

— Às vezes esqueço que ele era um soldado antes de se tornar um revolucionário — falou um dos homens de sobretudo.

 

— Ele faz o que é preciso para nos proteger.

 

— Ainda sim… algumas vezes ele extrapola.

 

— Ou talvez você é fraco demais para fazer o necessário, Hyko.

 



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