Trono de Cinzas Brasileira

Autor(a): Amaral Marcos


Volume 1

Capítulo 1: Destino

No calor do nascer do sol, os raios dourados entravam pela janela sem cortinas do quarto de Hikari, que passou a noite em claro. “Como vou dormir sabendo que amanhã vou entrar naquele inferno? Será que vou durar pelo menos um ano? Dois se tiver sorte!”, pensava. 

 

Soltando os nós de seu cabelo escuro como a noite com os dedos, sempre tomava cuidado para deixar sua mecha branca em destaque. Seus olhos negros corriam o espelho trincado na procura de alguma espinha em sua pele minuciosamente cuidada. “Se for pra morrer, pelo menos tenho que tá bonito”. 

 

Ajeitando bruscamente sua calça larga, Hikari saiu apressado de sua casa na periferia do reino de Entropiah. Levantando poeira com seus passos apressados, abriu caminho entre os comerciantes e moradores atrasados para o trabalho como um sabonete em mão molhada, se espremendo e desviando de cestos de frutas e crianças desgovernadas.

— Olha por onde anda! — gritou Hikari, desviando de uma carroça sem uma das rodas

 

Passando pelas caóticas estradas da periferia, adentrou as regiões urbanas do reino, onde as ruas eram feitas de pedra e as casas enfeitadas com plantas, estandartes e cores vivas. 

 

Hikari sempre se sentia impressionado em como o centro urbano parecia outro muno. Tudo era muito bem organizado, bonito e pacífico, com guardas em cada beco e esquina, garantindo uma segurança altamente eficaz. Quem dera se fosse assim nas periferias, pensava.

— Bom dia seu guarda, você sabe onde fica o CTC? — perguntou Hikari a um guarda que estava escorado na parede de uma padaria

 

— An? — olhou o garoto de cima a baixo — O centro de treinamento cívico-militar? 

 

— Isso.

 

— É só seguir a via principal e virar à esquerda na entrada antes do terceiro batalhão do Juízo Celeste. — falou o guarda enquanto gesticulava com sua mão num mapa invisível

 

Seguindo o caminho que havia recebido, Hikari chegou a entrada do CTC, que era rodeado por um muro de 4 metros de altura com uma torre de vigia a cada 500 metros, abrigando um sentinela no topo de cada. Aproximando-se dos portões, encontra Denki, um garoto não muito alto de pele morena e cabelos ruivos ondulados que quase encobriam seus olhos negros e sua feição sonolenta. 

 

Ele o conheceu no alistamento do CTC, onde acabaram se tornando amigos desde então. 

— E aí — cumprimentou Denki com um soquinho —  tá animado pro primeiro dia? 

 

Com os olhos quase fechados e movimentos lentos, Denki retribuiu o cumprimento — Eu tô animado é pra ir pra casa dormir, isso sim.

 

— Po mano, eu te falei pra não ficar jogando bola até tarde! — bravejou dando soquinho de leve no ombro direito de Denki

 

— O que eu podia fazer? Tava valendo cinco conto!

 

— Uma boa noite de sono vale mais do que algumas moedas.

 

— Mas eai, como você acha que vai ser lá?

 

— E isso importa? Temos que ir de qualquer jeito mesmo!

 

Adentrando o portão externo, se impressionaram com a imensidão do  CTC, que contava com diversos dormitórios, um refeitório gigante, vários blocos de salas de aulas e quadras de treinamento, além do ginásio principal, as academias e a recepção, onde os alunos conferiam suas turmas, recebiam seus materiais e entregavam relatórios.

 

No balcão da recepção, se depararam com uma mulher que aparentava ter cerca de 50 anos, que vasculhava alguns documentos enquanto bebericava uma xícara de café aparentemente frio.

 

— Bom dia — Hikari se esticou por cima do balcão na tentativa de olhar o que havia lá dentro — eu queria ver em que turma a gente ta.

 

Parando de mexer  pôr um instante, a mulher olhou para Hikari com uma feição de desânimo, deu um gole no café e apontou para alguns papéis grudados num quadro à esquerda: — É só procurar seu nome na lista.

 

— Obrigado — agradeceu caminhando em direção ao quadro.

 

Ao se aproximarem, ambos escutam uma explosão seguida de gritos entusiasmados vindos da quadra  à esquerda da secretaria. Hikari toma um leve susto, mas logo disfarçou movendo seu corpo de forma aleatória como quem estivesse procurando algo: — Tu ouviu isso? O que será que ta rolando?

 

— Sei lá mano, só olha se nosso nome ta aí.

 

— Deixa isso pra depois — Hikari agarrou o braço de Denki o puxando a força — Bora ver o que é!

 

— Que tipo de maluco vai em direção a uma explosão?

 

— A gente — respondeu Hikari levantando uma sobrancelha com um sorriso de canto

 

Relutante, Denki acena com a cabeça em concordância. Após poucos metros de passos largos e apressados, os dois se deparam com a área das quadras de treinamento, que conta com vários campos rodeados de alunos que parecem muito entretidos com algo no centro delas. 

 

Hikari se aproxima da quadra mais a direita e tenta se espreitar por entre os alunos, mas desiste após várias tentativas malsucedidas. Vendo sua frustração, uma garota que estava sentada ali perto acena para ele: — Sobe aqui, vou te dar uma ajudinha.

 

Hikari se vira e vê duas garotas sentadas na arquibancada acima da que estava, a mais a direita tem pele morena, cabelos longos num tom de vermelho bordô com mechas laranjas, olhos castanhos escuros levemente puxados para o vinho e suas marcas elementais à mostra em suas coxas, uma de terra na coxa esquerda e uma de fogo na direita, a outra garota tem a pele clara como a neve, cabelos longos azul-acinzentado amarrado para trás com algumas mechas soltas, olhos azuis intensos e traços delicados como uma taça de cristal. Ao receber contato visual, a garota a direita abriu um sorriso gentil: — O que foi? Você não queria ver o que está acontecendo na quadra?

 

Com as bochechas coradas, Hikari concorda com a cabeça e dá um toque no ombro de Denki para que ele o siga. Após os dois subirem na arquibancada de cima, a garota, com um movimento delicado , ativando a sua marca em sua coxa esquerda, formando um padrão floral repleto de girassóis brilhando em um marrom intenso. Num ruído brusco, a arquibancada em que estavam começou a subir cerca de um metro e meio, dando uma visão privilegiada da quadra. 

 

Na parte interna, Ichi, um garoto alto de cabelo preto curto, desaparece e reaparece aleatoriamente enquanto desvia de todos os ataques de Kaminari, que lança trovões desesperadamente enquanto tenta se aproximar para acertar um soco ou chute. 

 

Desviando dos golpes, ele o provoca de diversas maneiras para testar até onde consegue chegar: — Poxa loirinho, pensei que como um usuário de raio você seria bem mais rápido! — Gritou Ichi desviando de um raio

 

Usando os insultos como combustível, Kaminari aumenta a intensidade de seus movimentos: — Pare de fujir como uma cadela assustada e lute como um homem!

 

Levantando seu queixo, Ichi contraí um músculo de sua bochecha: — É melhor você começar a correr, moleque!

 

Numa fração de segundos, Ichi surge ao lado de Kaminari, acertando uma cotovelada em sua nuca, uma joelhada no queixo e um soco na barriga. Voando por alguns metros, cai rolando pelo chão levantando um pouco de poeira. 

 

A sequência de golpes faz com que todos os alunos vibrem de empolgação, chamando a atenção de todos que estavam perto. Dando as costas para caminhar em direção à saída da quadra, Ichi  sentiu uma concentração elemental absurda emergindo em sua retaguarda, fazendo-o virar a cabeça lentamente até finalmente ver Kaminari cercado por uma aura expeça de pura eletricidade. Um calafrio tomou conta de seu corpo ao ver olhos assassinos brilhando em amarelo intenso, que absorviam eletricidade violentamente. 

 

Sua marca de raio cobria a metade esquerda de seu rosto, com traços dramáticos e pontudos. Ofegante, Kaminari firmava sua perna esquerda na tentativa de se manter de pé enquanto  intensidade dos trovões em sua volta aumentavam. 

 

Expandindo suas mãos num movimento lento, toda aquela energia se aproximava mais de seu corpo até que num movimento brusco, uniu as palmas de suas mãos, fazendo com que a eletricidade comprimisse em seu corpo como uma segunda pele de pura energia: 

DEN’ATSU HADA!!!  — Gritou a todos pulmões

 

Avançando de uma forma tão intensa que cria rachaduras na superfície da quadra, Kaminari ficou cara a cara com Ichi, num movimento tão rápido que a poeira levantada ao se lançar pela quadra mal saiu do chão. 

 

Quando estava prestes a acertar um soco em seu maxilar, sentiu seu copro ficar cada vez mais lento até parar — o tempo estava congelado. Mesmo sem conseguir mexer o seu corpo, olhou em sua volta notando que ambos se encontraram em outro plano, sem a quadra, sem as arquibancadas, sem os gritos entusiasmados dos alunos ou qualquer outra coisa, apenas um vazio branco sem fim preenchido com um ruído de um relógio antigo que surge e ressurge a cada segundo.

 

“Clic”

 

Seu corpo não se movia, porém, sua consciência continuava trabalhando o suficiente para ver o gigantesco relógio feito de pura energia atrás de Ichi. Sua luz verde brilhante contrastava com o vazio monocromático, onde os imensos ponteiros sincronizavam com os cliques que martelavam seus nervos.

 

“Clic”

 

Caminhando lentamente em sua direção, Ichi afastou a mão de Kaminari enquanto se aproximava. Quase encostando a boca em seu ouvido, Ichi sussurrou num tom tão frio que suas palavras quase se perdem na imensidão vazia: — Não importa o quão rápido você seja, não dá para escapar do tempo.

 

“Clic?”

 

Cada clique soava como uma martela em parede de ferro, perfurando as porções mais profundas de seu cérebro numa distorção agonizante que parecia não ter fim. Estava enlouquecendo aos poucos.

 

Os sons de clique começam a ficar cada vez mais distorcidos e dolorosos até chegar num ponto em que é impossível distinguir se são marteladas numa parede de ferro ou agulhadas nas porções mais profundas do cérebro. 

 

“Cli??”

 

A sensação de seus nervos se contraindo em espasmos de dor fazia sua mente definhar lentamente. Eu preciso sair daqui, pensava Kaminari desesperadamente.

 

“Cl???”

 

Com suas vistas quase se fechando num preto absoluto, sentiu uma leve brisa e, mesmo com sua visão embaçada, viu o azul que banhava o céu de verão. Os cliques tinham sessado, fazendo-o sentir um alívio inexplicável — estava de volta às quadras. Porém, sua felicidade duraria poucos segundos, afinal sua pele de energia havia se desfeito. 

 

Ainda se recuperando da tortura temporal, sentiu uma pancada extremamente quente abaixo de sua costela, o fazendo cair de joelhos numa pancada seca. Não conseguia se mexer, apenas se concentrava desesperadamente em respirar. Se apoiando no chão, de joelhos, podia ver o buraco com pontas queimadas em sua camisa, revelando uma queimadura avermelhada em sua pele. 

 

Ichi assistia à cena calmamente, deixando algumas labaredas deslizarem por entre seus dedos em movimentos coordenados: — Terminamos?



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