Volume 1 – Arco 2
Capítulo 9: Recepção Excepcional
O silêncio era ensurdecedor. O ar ficou pesado. E o temor pairava sobre os prisioneiros.
A presença de um homem atroz em cima do balcão de comida.
Alto. Não tinha um corpo comum. Um físico de tardígrado, um gordo e repleto de dobras e rugas, com seis patas grossas e garras afiadas. Seus braços eram “normais”, fortes como de um levantador de peso; também possuía um rosto convencional, apesar do torso aberrante, careca e com uma barba desleixada, até a parte de reter duas bocas: uma abaixo do nariz, e outra redonda no meio da testa.
Mesmo entre os presidiários, era um monstro sem comparação. Era respeitado pelo medo.
— Dirijam-se ao balcão, novatos!
Lotus arqueou as sobrancelhas. Galdino o cutucou e cochichou no seu ouvido ao mesmo tempo que mantinha os olhos fixos no carrasco.
— Ei… O pessoal aqui chama ele de “Dom Tardígrado” ou simplesmente “Dom”. É só cê num irritar ele que tá tudo certo.
O jovem escutou em silêncio, em choque pela aparência bizarra.
Dom continuou:
— Ruuuuuuuuuuia!! Preferem que eu vá buscar vocês?
— Vai lá, cara! — Galdino bateu no peito do Lotus. No fundo, falou mais para se salvar do monstro chegar ali.
O jovem se levantou. Tremia. Os prisioneiros abriram caminho sem que pedissem. Muito generosos… Pisou nas gororobas jogadas no chão e por isso mancava.
Foi o último a chegar. Os outros quatro novos membros da cadeia o ultrapassaram, jovens vodarianos normais vestidos de camisa branca e uma calça bege, além de calçarem chinelo verde. Uma vista curiosa. Era Lotus que se destacava com o macacão laranja.
— Olha só! — falou Dom, o fitava. — Parece que o Raoni foi bem generoso com você… vestes uma bela roupa.
Em seguida, ele pulou do balcão e, quando aterrissou, estremeceu toda a prisão. Um terremoto repentino. Foi para perto do Lotus, que ganhou plena noção do tamanho do monstro.
Prosseguiu:
— Hmm… — analisou sua calça molhada. — mal me viu e já se mijou inteiro?! Hahahaha!
Todos os presidiários gargalharam, alguns por realmente achar engraçado, outros por forçar a risada.
Que vergonha… Mesmo bravo com o caçoar de todos, sabia que era apenas sua perna d'água escondida nas calças. Teve de se conter, era cedo para ser morto por um motivo tão banal. Entretanto, não pôde esconder o ódio no seu semblante.
— Awn… — Dom acariciava lentamente o rosto do jovem com as garras. — Vejam! Ele não é muito de brincar! Ruuuuuuuia! — Pulou de volta ao balcão.
— Aaargh! — grunhiu Lotus ao ter a cara rasgada.
O maldito tardígrado abriu uma fenda que sangrava sem parar. Não era profunda, mas era extensa, da bochecha ao queixo. Foi um aviso.
Os outros novatos na prisão vibraram de temor ao assistirem à humilhação. Seriam os próximos se falhassem com o carrasco e não sairia barato como um corte no rosto.
Dom ainda não havia acabado.
— Ôh! Raoni! — disse ao olhar para os robôs no fundo do salão. — Esses aqui não são os que eu te pedi! Cadê os monstrões com cara de elefante e corpo de gorila?! Os que você trouxe não vão durar nem sequer um dia!
Os prisioneiros concordaram com rugidos e socos nas mesas. Esses eram os mais devotos ao rei da cadeia, mas ele não suportava a baderna.
— Calados! — Lançou a bandeja com a gororoba verde no grupo, depois virou-se para os novatos. — Agora me digam… moleques! O que vocês fizeram pra parar na minha terra?
Os cinco decidiram ficar em silêncio. Quatro deles ficaram quietos por medo, o outro já era por medo do que ia falar. Sua língua afiada impulsionada pelo ódio, também era contido pela dor no rosto. Mordia os beiços, mas Lotus não subestimou o monstro à frente, se controlou.
O tardígrado saltou novamente do balcão e se aproximou dele. Suas patas gordas deixavam rastros gosmentos no chão, além de emitirem um barulho úmido e repugnante como uma esponja encharcada sendo espremida repetidamente. Sua sombra cobriu o jovem e seu olhar sanguinário fez ele esquecer que era o Vital escolhido.
Dos novatos, o monstro teve que admitir que era ele quem mais roubava sua atenção, portanto seria o primeiro a sofrer as consequências quando o desobedecesse.
A tensão imperou.
Alguém teve coragem de responder sua pergunta:
— N-nós somos soldados de San Garch e f-fomos c-convocados para oferecer ajuda vodarianitária a uma comunidade! — disse um dos novatos. — M-mas o Vital foi lá e atacou a gente! N-nós conseguimos fugir dele, mas um homem com alguns robôs cercou a gente e nos t-trouxe pra cá!
Lotus ficou impressionado com essa capacidade de inventar história, não surpreso que também fossem da sua terra natal: San Garch, um país desértico com um forte poder e cultura militar. Eram de outro batalhão, não os conhecia, então ficou em dúvida se sabiam que era o novo Vital.
— Aah! — Dom encarou quem disse isso. — Uma pena o Rudá não ter sido gentil com vocês… Talvez, ele extermine suas famílias pra ficarem de exemplo! Haha! — riu e voltou seu olhar ao jovem. — Vieram ajudar a terra que não quer ajuda! Mas, vou garantir que não vieram à toa… — Saltou de volta ao balcão. — Vocês serão a participação internacional do nosso evento!
AAAAEEEEE!
Os presidiários celebraram, pois esse era um evento semestral importante na cadeia. Mal podiam esperar para verem os novatos na pior desgraça possível.
BLÉÉÉÉÉÉÉÉÉM!
O horário do café da manhã acabou.
Os guardas de metal começaram a conduzir os prisioneiros aos seus devidos lugares.
— Sejam bem-vindos, mijões! — bradou Dom Tardígrado enquanto dois robôs o levavam para sua cela. Eram diferentes dos outros: ao invés de portarem pistolas, ambos tinham um escudo de aço e utilizavam-no para empurrar o condenado, semelhante a policiais de choque.
Lotus sequer conseguiu comer. Ao fitar uma última vez sua gororoba, cogitou acreditar que teria um gosto bom. O que a fome não faz…
Galdino se ergueu e deu dois tapas nas costas dele.
— Ele cismou com você, hein? — disse ele. — Só espero que isso não traga problema pro meu lado!
— …
— Aff… enfim, agora é o nosso turno. Bora trabalhar!
— Como é? — indagou o jovem e, espantado, fitou seu colega de cela, esse que arregalou os olhos ao ver o ferimento na face dele.
— Ah! — chacoalhou a cabeça. — Tá achando que os almoço vão ser de graça? A gente tem que trabalhar se nós quiser comer!
Lotus gesticulou para demonstrar dúvida. Nada estava tão ruim que não pudesse piorar. Apenas o que diabos queriam com ele aqui?
— Bom, me acompa… — Galdino foi lançado ao chão após levar um golpe nas costas.
Bateu seu cotovelo contra o solo ao cair, resultando numa agonia escaldante. O jovem ficou em alerta e meneou a cabeça na direção do ataque. Não tinha sossego.
O responsável pela violência era um dos robôs do Raoni, um portando cassetete de aço, dos melhores para distribuir surras. O robô ergueu o famigerado cassetete contra o Lotus.
— Não! Não! Não! — suplicou, com ambas as mãos abertas à frente do corpo. — Já estamos indo!
Ele agarrou Galdino pelo ombro, pesado!, e o levou consigo.
— Vai reto — falou o homem — nessa direção que cê chega na porta do trampo…
Antes que levasse uma cacetada, Lotus correu como conseguia com o peso e a perna d'água.
Prisioneiros normais e animalescos eram conduzidos com porradas pelos robôs. Alguns eram levados para as grades, outros eram forçados a ficarem enfileirados na frente da porta do trampo, a metálica e pesada. O jovem chegou.
A fila estava grande e ficava cada vez maior. O motivo da sua existência era simples: antes de passar pela porta, todos tinham de realizar uma checagem eletrônica e facial para registrar a presença. Ai daqueles que não comparecessem...
— Ei! — chamou Galdino, ainda no ombro do Lotus. — Valeu, rapaz! Me põe no chão agora, senão os cara vai achar que eu tô debilitado.
Ninguém escapava desse trabalho, desde o homem gorila com olhos de mosca que ocupava a fila até o mais indefeso dos vodarianos também teria de calejar suas mãos e movimentar os braços finos como barbante.
O jovem imaginava que esse trabalho seria braçal, provavelmente quebrando pedras, estereótipo de cadeia. Não sabia de onde tiraria energia para isso, seu estômago não parava de roncar. No final, iria ser punido pelo próprio corpo.
— Lotus, esteja preparado — começou Galdino — vamo ficar umas boas hora aqui. Lá dentro — apontou para a porta — eles num aceita erro, acham que cê tem que saber fazer tudo já. Iremos minerar até encontrarmos fósseis e, deles, extrair prana.
O prana era a energia vital de todos os vodarianos. Azul e rosa que percorrem dentro do corpo. Era responsável por curar seus ferimentos, melhorar a condição física e tranquilizar o psicológico. Mais que isso: ele era o que mantinha um vodariano vivo.
Quando coletado dessa maneira, seria utilizado para outros fins: energizar equipamentos e torná-los mais potentes e duradouros, por isso era bastante valioso. Um carro movido a prana consegue atingir velocidades maiores e consumir menos do combustível.
— Fósseis? — indagou Lotus.
— Exato — afirmou Galdino. — Aqui é uma área repleta de fóssil dos nosso ancestral, e maior parte deles tá enterrada na mina que nós vai trampar. Esses fóssil tem muito prana acumulado, e nossa tarefa é encontrar eles e extrair o prana com uma picareta.
— E como vamos extrair prana com uma picareta?…
— Lá dentro eu mostro procê.
(...)
Era um lugar com pouca iluminação incandescente, com rochas em todas as partes. Assim que pisou, notou que havia um teleférico que os levava às profundezas da caverna. Deu sorte dele ainda não ter saído, pois o transporte demorava para voltar e buscar mais prisioneiros.
Havia mais robôs nesse lugar, os com cassetete. Lotus levou golpes nas costas para entrar no teleférico, não aceitavam sequer uma falta de atenção.
Quando entrou, percebeu que estava quase cheio. Entretanto, sempre cabe mais um…
Ficou espremido, banhado por suor e bombardeado de insultos entre os presidiários. Alguns deles até se penduraram para não perder viagem. Caos.
Começou a descer.
…
Após sair do teleférico e pegar um pouco de ar, recebeu — por mais um robô de cassetete — imediatamente seu equipamento de trabalho: uma picareta ligada a um tubo de ferro com quase o dobro da sua altura. Era bem pesado e desconfortável.
O ambiente era vasto, provavelmente já minerado antes, e também era seco e quente, com detritos caindo do teto e ecoando ao chocarem no solo. A iluminação seguia branda.
— Lotus! — bradou Galdino. — Me acompanhe!
Galdino já estava procurando os fósseis, não queria perder tempo. Queria mostrar para o jovem como funcionava… no fundo, queria se gabar por ser bom nessa tarefa.
— Essa picareta tem um buraquinho bem na ponta. Quando cê achar o fóssil, é só cê furar ele e segurar a picareta ali um tempo que ela vai absorver o prana do nosso ancestral falecido… Que Tlaleel o tenha.
— E por que temos que fazer isso? — O tolo ainda insistia em duvidar.
— Sei lá... Apenas trabalhe se num quiser morrer!
Pela quantidade escavada, era abismante a quantidade de prana retirado na região. Era verdade que tinha seu uso comum para civis, mas a fundamental aplicação era para a guerra.
Para matar.