Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 8: Sentença

Lotus foi encurralado: sentado em uma cadeira dura, algemado nas canelas e nos punhos. Um homem e quatro robôs faziam companhia nesse lugar inóspito.

O jovem os reconheceu rapidamente pelas lembranças, as de antes de perder a consciência, vieram à tona. Era o mesmo sujeito indígena que atirou no seu peito e encerrou seus planos de refúgio após conseguir o poder que queria.

— Um Vital na palma da minha mão… — disse o homem enquanto rodeava a mesa.

Lotus estava fraco, exausto. Não fluía mais a energia da pirâmide nas suas veias — ao menos não sentia — como se algo tivesse cortado a conexão. Notou que estava de roupa nova: um macacão laranja, capaz de esconder a sua perna d’água.

O homem puxou a cadeira no lado oposto da mesa. O atrito dos pés dessa com o chão rochoso emitiu um som estridente e horrível. Em seguida, sentou-se e indagou:

— Cê tem noção do problema que cê se meteu? — Ele entrelaçou os próprios dedos apoiados acima do móvel.

O jovem remexia os braços e as pernas para se soltar, mas falhou.

— Não se esforce tanto, Vital… Haha! Pra você ficar quieto e não conseguir usar raiozinhos, atirei no seu coração com as mesmas balas especiais que você usou pra machucar aquela senhora.

— …

O jovem compreendeu o porquê de estar nessa situação. A bala que tomou no peito era feita de um processo sofisticado com urânio, capaz de liberar dentro do alvo uma modesta quantidade de radiação. O suficiente para imobilizá-lo. Vodarianos são extremamente sensíveis à radiação, ao ponto de miligramas da substância serem capazes de os desmaiar.

Grr! — Lotus rangeu os dentes. — J-já sei o seu plano! Me manteve vivo pra conseguir absorver a pirâmide e a energia do antigo Vital que ficou no meu corpo, não é? Pois saiba que…!

Hahahaha! — Bateu as duas mãos na mesa. — Mermão! Eu não quero essa pirâmide aí não! Não vou carregar algo manchado de sangue vodariano… vai contra os meus princípios!

Huh? Então por que estou aqui?!

— Porque você é um perigo pra sociedade.

Após essa frase, a raiva envolveu o coração do jovem e fez a cabeça ferver. Seu objetivo era ser o oposto do que foi julgado: acabar com o perigo. Era destratado da própria ambição.

Ah! Deixa eu me apresentar: “Raoni”. Sou responsável por neutralizar os males que assolam minha terra, seja prendendo ou matando.

Raoni era um infame carrasco da região. Portava duas pistolas customizadas, construía máquinas e não se importava com a natureza, era o completo oposto dos outros nativos.

Os robôs possuíam aparência quase idêntica a ele. Vestiam a mesma camisa branca, calça e botas pretas e possuíam uma trança presa atrás da cabeça, além de portarem as mesmas armas. A única diferença perceptível eram as bocas estáticas.

— “Matar ou prender.” E qual desses é o meu? — questionou Lotus.

— Bom… infelizmente não vai adiantar te matar, afinal outra pessoa iria absorver essa pirâmide e virar um Vital, seria como enxugar gelo. As próprias lendas dizem que é inevitável.

— Não vai conseguir me prender pra sempre. E quando eu me soltar…

Raoni pôs a arma debaixo do queixo do jovem, o forçando a ficar em silêncio.

 — Cale a boca antes que eu mude de ideia!

Mesmo após adquirir a soberania que tanto almejou, Lotus não sabia como utilizá-la a seu favor. Achou que ser um Vital colocaria medo nas pessoas, mas, na verdade, aumentou ainda mais o número de inimigos.

— Levem-no — ordenou o índio aos robôs.

O esquadrão dos robôs apanhou o jovem e sequer o desprendeu da cadeira, levando como estava. Piada de mau gosto.

— Cê vai ficar preso por tempo indeterminado! Haha! — disse Raoni. — Fuja se for capaz.

Em cima dos ombros dos servos de lata, Lotus foi conduzido até sua nova casa: uma cela pequena que abrigava um único indivíduo, a nova companhia do jovem. O tamanho pequeno da cela era para de apenas um único vodariano, mas sempre caberia mais igual coração de mãe.

Passou pela porta metálica automática. Essas partes tecnológicas não combinavam com o restante rudimentar da prisão. Em seguida, se deparou com o lugar repleto de celas, todas lado a lado. O ambiente era coberto pelas pedras musgosas com o odor forte de mofo, além de ser iluminado apenas por uma luz incandescente.

Tentou se debater e profanou todos os xingamentos possíveis ao Raoni, esse que não deu a mínima.

Um dos robôs destrancou a fechadura eletrônica da grade com o simples direcionar da sua face, abrindo o novíssimo lar do jovem: tinha um colchão, um buraco, uma pia e outra porta metálica na parede adiante. Insalubridade e modernidade de mãos dadas.

Tiraram as correntes das algemas e o jogaram lá dentro como se jogassem um saco no lixo. Depois, fecharam a cela e voltaram para a sala do interrogatório. Entretanto, Lotus não deixou barato e insistiu que não deveria estar ali. Bradou aos montes para ser retirado dali.

Foi inútil.

Ainda não possuía forças para se erguer e lutar, mas tinha sua voz malcriada que não aceitava de forma alguma que fosse sentenciado.

— Eu juro que quando eu recuperar minha for…

BANG!

Raoni saiu de onde estava e atirou, apagando o jovem revoltado com sua mira precisa.

(...)

BLÉÉÉÉÉÉÉÉÉM!

O despertador horripilante de volume ensurdecedor soou.

Ainda eram quatro horas da manhã. Na cadeia, o dia começava bem cedo.

Se os prisioneiros não acordassem com esse ruído, quem os acordaria seriam os guardas robôs e, se necessário, com violência. Bateram suas armas com desdém nas barras de ferro que separavam os delinquentes da liberdade e, se mesmo assim não levantassem, tomariam uma coronhada no ombro. Seria o mínimo.

Lotus despertou no susto, ficou até pálido. Ao seu lado, estava o dardo tranquilizante utilizado para apagá-lo. Era tratado como um animal selvagem.

Já conseguia mexer seus braços e pernas, os ainda algemados, mas sem correntes. Uma dor aguda incomodava o pescoço, dormiu de mal jeito no chão gelado. Grunhiu e massageou a nuca.

— Não muda muito do chão pro colchão, viu… os dois são duro igual.

O jovem meneou rapidamente a cabeça para ver de onde veio a voz grossa e se deparou com seu colega de cela.

Era um homem magro, pardo e de olhos puxados que não fazia a barba há um bom tempo… Tinha um cabelo preto e liso, grande o bastante para tocar na sua panturrilha. Vestia camisa branca e calça bege, essa que mais parecia uma bermuda enquanto usada pelo adulto. Ele era alto.

Ainda inconformado que estava preso, Lotus foi chacoalhar as grades.

Vish... — falou o colega. — Essas barra aí são bem resistente! Nem mesmo os urso que tá preso aqui conseguiu quebrar... quem dirá um bombadinho igual você.

— Cala a boca! — O jovem balançou mais forte. — Você não sabe nada sobre mim!

— Nisso cê tem razão. — Continuou: — Bora se apresentar um pro outro pra pelo menos eu saber quem é que divide esse quadrado comigo.

Lotus de forma alguma queria continuar a conversa, pouco lhe importava quem era o desgraçado com ele, queria era sair dali de uma vez por todas e voltar ao seu país de origem. Era de suma importância agora que finalmente se virou um Vital.

Indiferente, o homem prosseguiu:

— Meu nome é Galdino Taira e tô nessa cadeia há alguns meses. Antes d’eu parar aqui, eu vendia uns boneco de barro e lama numa comunidade aqui perto... O povo até que gostava. Quando dava, fazia uns de madeira também.

A maioria dessas informações entraram por um ouvido e saíram pelo outro, o jovem não deu a mínima, mas gravou seu nome.

Eergh... — continuou Galdino. — E você, rapaz? Qual teu nome?

Ruff...! — bufou e parou de balançar as grades por enquanto. — Me chamo Lotus.

— É um prazer, Lotus, hm… Por que veio parar aqui?

O jovem decidiu não responder, não queria compartilhar sua vida com um desconhecido... Não, ele simplesmente não queria conversar.

De repente a porta automática, que estava na parede oposta à grade, se abriu e deu acesso às escadas que levavam ao andar debaixo.

Óia! Hora do rango matinal — afirmou Galdino. — Vamo lá forrar o bucho!

Lotus estava relutante em acompanhá-lo, não queria aceitar de jeito nenhum que passaria seus dias numa prisão. Nesse ponto, ao menos entendeu que seria idiotice continuar na mesmice e seu estômago clamava por comida com roncos ensurdecedores. Revolvente. Tinha que seguir seu colega — tinha.

Antes de irem, Galdino não deixou de dizer no que reparou:

— Acho que cê molhou as calça de noite... Se tiver apertado, faz as necessidade no buraco ali, ó! — apontou.

A parte da calça que cobria a perna direita do jovem estava encharcada, o macacão não foi tão eficiente em esconder sua perna d’água. Pensou em justificar que não era urina, mas isso tomaria tempo demais e, depois do que passou no interrogatório com o Raoni, preferiu não anunciar que era o novo Vital da Tempestade. Agiria nas sombras até que o mundo descobrisse a verdade.

Ah... claro. — disse.

Os dois foram ao refeitório. Lotus teve grandes dificuldades para descer as escadas, ainda não estava acostumado com sua perna líquida.

Chegaram.

Quanto ao ambiente: era um lugar amplo, cinzento e pouco clareado. Havia mesas retangulares e extensas, com bancos redondos. Algumas delas já estavam lotadas. Lá na frente, possuía um balcão iluminado, onde alguém servia o alimento matinal: uma gororoba esverdeada. Com a bandeja em mãos, os presidiários aguardavam sua vez em uma fila, a controlada pelos robôs do Raoni.

O refeitório estava cheio. As conversas e gritarias reverberavam nesse local, semelhante a uma sala de aula onde todos falam incessantemente. Uma confusão sonora.

Por onde Lotus olhava, encontrava diversas pessoas. O que mais chamou sua atenção foi a aparência da maioria delas: eram uma mistura de vodariano com animal, como se tivessem sido fundidas. Ele ficou perplexo.

Viu um homem faminto, saliva escorria da sua boca de dentes afiados enquanto mantinha os olhos arregalados para outro prisioneiro; possuía um corpo de urso e quatro pernas de barata nas costas, além de um focinho canino. Era “normal” apenas no cabelo e bochechas. Loucura. Notou que os vodarianos comuns ficavam mais retraídos, um medo compreensível.

Galdino correu para pegar a bendita fila, estava varado de fome. Lotus foi mancando até lá.

Ao longo do caminho, reparou que era o único que utilizava um macacão laranja, todos os outros vestiam diferentes roupas. Não existia um padrão de traje, contudo o seu era o que mais chamava a atenção.

Muitos presidiários esbarraram no jovem, alguns até o derrubaram. Rosnou. Mas, isso não o impediu de chegar na fila, essa que ficou maior ainda depois que Galdino a adentrou.

Lotus pensou em cortá-la pegando um lugar com seu colega de cela, porém isso daria uma grande margem para ser linchado. E o pior: não conseguiria se defender, ainda estava se recuperando do tiro de urânio. Apesar de tudo, tinha que manter a aparência de novato, então foi para o final da fila e esperou sua vez.

Bufou ao pegar a bandeja. Segundos se tornaram horas… Percebeu os olhares de julgamento. Não sabia se era por ser novo na cadeia ou se era por estar ensopado.

Que demora...

Chegou sua vez.

O cozinheiro mergulhou a mão livre na forma funda e cheia do alimento peculiar. Com um movimento rápido, a lançou na bandeja do jovem, respingando no seu macacão. Por bem ou por mal, Lotus teria que se acostumar com sua nova vida.

Foi procurar um banco para sentar-se e, por sorte, encontrou um ao lado do Galdino.

Os prisioneiros comiam como trogloditas. Alguns cuspiam a comida pelo chão e pela mesa, outros jogavam-na uns nos outros. O jovem jamais imaginou que um dia passaria por isso.

Sentou-se para comer, finalmente.

O nojo desse alimento não era maior que a sua fome, mas tinha um limite: sem talher, não comeria. Cutucou Galdino para saber se havia pelo menos uma colher, mas recebeu uma boa e velha negação com a cabeça.

A raiva emergiu novamente no coração do Lotus. O que ele fez de tão errado para merecer isso? Talvez, era só mais um jovem que pensou apenas no resultado de suas ações, e não nas consequências delas.

Ficou encarando a comida, se recusava a comê-la! Era isso ou passaria fome, tinha que se lembrar. Bendito caos.

Subitamente, um vodariano… Não, um monstro, sobe em cima do balcão de comida.

Ruuuuuuuia! Temos novos rostos aqui!

Sua voz se sobressaiu perante todas as outras. Era grossa e imponente, digna de um tirano. Todos se calaram, pois sabiam que sua presença ameaçadora não deixava espaço para contenção.



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