Volume 1 – Arco 2
Capítulo 7: Plano Astral
Era um lugar gelado e sombrio. Não havia nada à volta além de água.
O jovem flutuava, submerso na vastidão aquática. Deixou os braços ficarem para cima, pois não confrontou em ser levado para as profundezas. Uma das pernas estava bem, mas a outra seguia arrancada, em falta.
Vestia uma farda suja, mal cuidada. Estava desacordado e com frio. Não possuía nenhuma dor, preso em um sono pesado... Logo teria seu fim.
Acordou.
A água tocou em seus olhos, um susto. Fitou ao redor, questionava se havia morrido. A última cena que lembrava era a de um homem atirando no seu peito, e bem no coração! Dava para sobreviver a isso em primeiro lugar?
Notou que possuía um buraco na roupa, um justo no peitoral. Não tinha ferimentos no corpo, o tiro não surtiu efeito… Era ótimo. Lotus continuava inteiro, apesar de estar sem a perna feita de água.
Precisava descobrir onde estava, tarefa complicada enquanto mergulhado. Quando olhava para baixo, se deparava com a escuridão infinita das profundezas; para cima, via um resquício de claridade vindo do topo. Era nessa direção que iria.
Começou a nadar.
O ambiente era calmo demais. Estranho. Não havia sons, obstáculos, animais... Havia apenas o jovem. A passagem do tempo era monótona.
Acima, o azul-marinho iluminava gradualmente as águas à medida que o rapaz subia. Era o suficiente para clarear o caminho distante, quilométrico.
Minutos se passaram… ou foram horas? Lotus até se indagou sobre suas habilidades de nado.
Mesmo com a demora, o jovem não foi sufocado; pelo contrário, respirava normalmente. Era como um peixe. No momento em que percebeu, começou a crer que já estava morto e sua alma divagava em um plano astral.
Tomar isso como verdade era difícil, afinal tinha acabado de se tornar um Vital… Independente da verdade, iria explorar essa dimensão até encontrar a verdade e a oportunidade para concluir suas convicções. Lotus não sossegaria nem no mundo espiritual.
Chegou na superfície, finalmente. Ao colocar o nariz para fora, sequer precisou preencher seu pulmão com ar fresco. Estar debaixo d’água ou fora dela era o mesmo.
Ainda com metade do corpo submerso, o jovem olhou o ambiente ao redor: havia o céu azul-escuro repleto de constelações; ao arredor, notou que as águas possuíam uma borda infinita para todos os lados igual o mar. Também era calmo e aconchegante, semelhante ao interior da pirâmide, onde absorveu os poderes do Rudá.
Lembrou da sensação de quando foi eletrocutado pelas estrelas... quanto sofrimento. Foi o preço a se pagar por almejar a soberania.
Sem saber para onde ir, decidiu nadar para uma das laterais, dessa vez no estilo crawl.
Seus braços — ao chocarem contra a água — formavam o único som a ressoar no ambiente. Fascinante como ecoava distante.
Chegou próximo ao destino.
Lotus se aproximou com cautela da borda infinita. Após essa, o único fenômeno visível era o céu repleto de constelações que se estendia no horizonte, cena agradável.
Ergueu o pescoço de forma que conseguisse observar o que havia abaixo da borda. Nisso não se assemelhava ao mar: o céu se estendia ainda mais nas profundezas. A água escorria dali como uma cachoeira, mas não emitia nenhum som.
— Onde toda essa água cai?
Foi levado à hipótese de que estava em um grande bloco d’água a levitar, era uma loucura sem tamanho. Decidiu nadar para todas as laterais a fim de confirmar sua teoria.
Ele foi.
Não encontrou nada de diferente, apenas gastou seus esforços. A hipótese era verdadeira.
Tinha fé de que encontraria algo que pudesse lhe tirar desse lugar, não aceitaria de forma alguma passar a eternidade no plano astral. Era agoniante ficar confinado sem poder desbravar o mundo, ainda mais agora com todo o poder que precisava em mãos! Será que era a consequência de absorver uma Pirâmide Vital? Ou por ter levado um ataque fatal?
Só lhe restou uma única opção: nadar para as profundezas. Já viu tudo o que tinha para ver na superfície, então era a hora de confrontar seus instintos e ir explorar a escuridão.
Mergulhou…
De repente, sentiu tudo ao redor estremecer. Sua vista não conseguia mais focar nada. Questionou e voltou imediatamente para a superfície.
Como era possível um maremoto no local que só tinha céu e água? E logo veio a resposta: Lotus não estava sozinho.
Tremores remexeram as correntes aquáticas em ondas violentas. A calmaria e o conforto deixaram de existir.
Abruptamente, um monstro emergiu das profundezas com um rugido amedrontador, desfazendo as constelações no céu.
Era colossal. Uma enguia com seis braços musculosos. Possuía uma coloração azul clara na parte frontal do corpo e azul escura na parte traseira.
O jovem, apavorado, não deixou de reparar no detalhe: a face do monstro possuía dentes afiados e olhos vermelhos proeminentes, sem pupilas. Tinha certeza… certeza de que já havia visto esse rosto em algum lugar…, mas não importava nesse momento.
A enguia pingava baba no cabelo cacheado do Lotus enquanto o encarava furiosa — faminta. Prestes a sofrer um ataque brutal, ele tinha que agir. A única escolha era lutar.
Inesperadamente, a geografia estava a favor do jovem. Havia água infinita ao redor, criaria golpes como bem entendesse.
Atacou a enguia com arpões d’água e disparos hidráulicos, levantando-os do próprio ambiente enquanto lançava rajadas com as próprias mãos.
Não surtiu efeito no monstro, esse que preparou um golpe catastrófico. Levantou simultaneamente seus seis braços e entrelaçou seus pares de mãos. Sem misericórdia, desferiu um soco sêxtuplo nas águas!
A consequência do ataque foi uma onda atroz que atingiu com destreza o rosto pardo do Lotus. As gotículas em alta velocidade penetraram nos seus olhos de cores divergentes, o que o fez abaixar a guarda com a visão reduzida.
A enguia não esperou o próximo turno, aproveitou o momento para mergulhar e se aproximar dele. Revirou-se e afundou sua cauda no estômago do oponente! O lançou ao céu azul-escuro.
Ao ir aos ares, a infame perna d’água deu as caras. Antes estava misturada com a água do grande cubo. À medida em que subia, gotículas da prótese foram deixadas para trás, caindo como uma branda garoa.
Foi tudo muito rápido; mal havia bramido de dor e já estava tocando nas estrelas. Que monstro era esse, afinal?!
A aberração de seis mãos não tinha intenção de deixar o jovem respirar, embora fosse inofensivo à sua existência. Então, um vendaval rodopiou seus braços e, após direcioná-los para baixo, impulsionou um voo extraordinário até o adversário.
Fwoosh!
Ao chegar, o apanhou com as duas mãos inferiores. Nesse meio tempo, Lotus sequer havia começado a cair. Ficou preso, quase afogado nas palmas imensas e robustas do monstro. Estava amostra apenas do pescoço para cima.
Assistiu de perto o inimigo colossal posicionar suas outras quatro mãos acima, lado a lado, ao mesmo tempo que a angústia o consumiu após visualizar as salivas que escorriam da face furiosa. A aberração rangia os dentes, o jovem estava boquiaberto.
De repente, ela abriu a boca para as estrelas e recebeu uma chuva de trovões dentro da garganta, encoberta pela celestial aura elétrica. A cor dos olhos passou de rubi para safira, as correntes de relâmpagos passearam pelos braços.
Novamente, o jovem estremeceu pelo presságio do seu fim. Desde o início estava condenado, a diferença de força era descomunal.
Subitamente, no centro das palmas da enguia, esferas aquáticas começaram a se expandir. Foram envolvidas pelos raios e se tornaram orbes luminosas. Giravam em torno de si à uma velocidade incalculável. A potência de um redemoinho faminto unida com a perspicácia de relâmpagos atrozes.
O tolo tentou se debater, mas foi inútil.
Em meio ao alto da dimensão onde o azul-escuro reluz, a enguia liberou quatro disparos aquáticos e elétricos, que se convergiram ao colidirem no jovem.
Ultimato.
Aargh!
Recebeu o golpe em cheio. Foi lançado para baixo, longe do gigante bloco d’água, esse que sumiu no horizonte em segundos.
Suas costas chocaram contra uma parede invisível. Não foi pulverizado, tão pouco esmagado! Conseguiu absorver toda eletricidade do golpe. Ser um Vital também tem suas vantagens.
A dor foi excruciante, parecia que seus ossos tinham se quebrado e que sua coluna jamais seria a mesma. Melhor isso do que ser desintegrado. Ele caiu em um chão transparente, semelhante a vidro.
Com a mente a clamar por sobrevivência, reergueu-se o mais rápido para reagir.
Hum?
A enguia desapareceu.
Ele estava ofegante. Sua postura corcunda refletia sua exaustão. Ademais, estava incrédulo que seu oponente simplesmente sumiu junto com o enorme cubo d’água. Mesmo assim, permaneceu em alerta.
A adrenalina abaixou e colocou a cabeça no lugar. Estar acordado depois de um golpe desses... uma piada. Tal evento reforçou ainda mais a teoria de que já estava morto, além de acrescentar um novo detalhe: sua alma estava pagando pelos seus pecados. Só isso.
Notou que pisava em um solo quase invisível — ou pelo menos tentava, era difícil se equilibrar com a perna d’água, ainda mais depois do golpe. Via nele apenas minúsculos feixes de raios. Questionou-se como isso surgiu.
A maior dúvida era onde ele arrebentou suas costas. Estava em uma dimensão totalmente aberta... não, aparentemente aberta.
Era ele e o céu estrelado, o que não recuperou as constelações.
Virou para trás para obter respostas, porém algo lhe surpreendeu.
Arqueou as sobrancelhas.
Um homem estava ali, de pé. Alto; segurava um cajado com uma esfera azul flutuante na ponta; vestia um manto preto com vários pontos brancos, a representação do universo. Ele não tinha olhos, boca, orelhas... Sua face era preenchida por galáxias. O cabelo possuía três rabos de cavalo.
Aflito, Lotus se afastou e se colocou numa postura de batalha. No entanto, ao ir para trás, encostou em outra parede invisível. Encurralado.
O homem adiante continuou imóvel, não apresentava perigo.
O jovem tentou sair dali acertando os bloqueios com murros potencializados com água, mas as falhas eram constantes. Seu instinto lhe dizia que esse homem representava uma ameaça, o que o levou a agir desesperadamente. À medida que tentava, seus movimentos ficavam cada vez mais lentos.
Chegou um ponto em que Lotus também ficou imóvel. Agora, ele estava confinado e paralisado, uma tortura infindável. Um vodariano que se tornou um vegetal, porém consciente.
De repente, ele foi meneado na direção do homem. Olho por olho — embora um deles não tivesse. Internamente, o jovem clamava por misericórdia, deixou-se levar pelos sentimentos.
O homem finalmente se mexeu. Com calma, ergueu um dos braços até sua mão ficar por cima da cabeça do rapaz, ele que não conseguia fazer absolutamente nada. Colocou suavemente a mão no cabelo do jovem, como se estivesse lhe abençoando.
Tudo se apagou, a visão do Lotus foi dominada pela escuridão.
(...)
CRAK!
Lotus acordou, da pior forma.
Bateu sua testa contra uma mesa de madeira... não, alguém bateu sua testa. Rachou levemente a mesa, o verdadeiro cabeça dura.
Estava em uma sala pequena: havia a mesa, duas cadeiras e quatro paredes de pedra. Um lugar que cheirava a mofo. Além disso, havia outra pessoa na sala.
— Caramba... cê dorme, hein, cara!