Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 6: Primeiras Impressões

Lotus atravessou a fenda, revigorado.

Nem nos sonhos mais estranhos imaginou que perderia a perna e ganharia uma prótese no mesmo dia, embora essa fosse molenga, não, literalmente líquida. Era esquisita, mas “andável”.

As correntes aquáticas fluíam pelas suas veias e arrepiava com a eletricidade que percorria o corpo. Era um novo homem.

Quando saiu do ambiente azul-escuro, entrou direto no templo. Reencontrou as estátuas, os pilares e o rastro do combate contra as enguias. A chuva externa invadia o interior e o encharcava mais ainda.

Ao fitar atrás, notou as consequências das suas ações. Era uma visão miserável.

Então, havia uma pirâmide enorme. O azul-marinho era a cor predominante, as bordas possuíam uma tonalidade mais clara e os raios passeavam pela sua estrutura. Simplesmente surgiu, invocada.

Parte do templo foi engolida pela pirâmide, onde se sobressaia e a plataforma de pedra, com sua escada de hieróglifos, desapareceu.

O jovem arregalou os olhos, surpreso com o monumento colossal. Caiu a ficha: absorveu todo o poder de Rudá Tlaloc e se tornou o Vital da Tempestade.

Vodarianos que absorveram o poder de uma das três Pirâmides Vitais são conhecidos como Vitais. Lotus obteve o da Pirâmide Vital da Tempestade, portanto ele é o novo Vital da Tempestade. Não havia motivos para continuar surpreso, era apenas o esperado. Adquiriu a soberania que tanto almejou.

O próximo passo era voltar ao seu país de origem e mudar tudo, se tornaria o líder supremo!

Não seria fácil.

Ele estava focado na pirâmide invocada. Era nesse momento que sua guarda estava mais baixa, alguém perfeito para ser emboscado.

BANG!

Lotus reagiu no mesmo instante, reflexo involuntário. Uma cúpula de vento o envolveu e partiu cada projétil ao meio. Caíram no chão em seguida. Ventos cortantes, afiados o suficiente para rasgar aço.

Sua reação — atualmente — superava a velocidade de balas.

Meneou a cabeça depois do ocorrido e notou a presença solitária dele contra o exército. Sem sombras de dúvidas, era seu batalhão.

— Soldado! — bradou a Capitã, a general rigorosa e de pele escura. — Ajoelhe-se com as mãos para cima e renda-se!

Muitos dos seus colegas militares estavam lá, até os mais feridos. A Capitã ficou na linha de frente, uma presença intimidadora. Eles apontaram seus rifles para ele — para o alvo. Finalmente o alcançaram.

A general continuou:

— Já concluímos a nossa missão! É hora de retornarmos e você irá entregar a pirâmide ao nosso presidente! Renda-se para que ao menos seja lembrado como parte da glória da nossa nação!

O estômago do Lotus borbulhou de desgosto. A raiva esquentou seu sangue. Tinha asco dessas figuras, ódio de suas imposições.

— Vamos, soldado! Obedeça às minhas ordens!

Mas, dessa vez, ele podia contestar.

— Nem morto.

Declarou guerra contra o Estado. Novamente, era simples assim. Que viesse o que viesse.

— Executem-no! — ordenou a Capitã.

Uma chuva de balas foi disparada.

Redobrou a atenção, sabia que se os projéteis o atingissem, seria o fim. Criou em volta de si outra cúpula de vento e serrou cada uma.

Sem enrolação, pôs as mãos à frente do corpo e liberou a eletricidade que corria pelos braços.

Acertou o batalhão inteiro. Parte dos soldados desabou e o resto prostrou-se de joelhos. Alguns desmaiaram, outros sofriam convulsões.

Lotus também sofreu consequências. Ficou cansado e ofegante.

A Capitã foi a única que permaneceu de pé sem sofrer quaisquer danos. Os antebraços cruzados adiante da cabeça foram seu escudo. Seu exoesqueleto verde brilhava e se exibia atrás do corpo, dos pés à nuca.

A batalha tornou-se imediatamente em um contra um.

Aproveitando a tempestade, Lotus fez uma esfera de água na palma da mão e a lançou na direção da sua adversária, mas foi insignificante, ela a desfez com um soco.

Surpreendente.

Era decepcionante ter seu recém-conquistado poder repelido dessa forma, mas era justamente esse o problema: inexperiência. Contra um oponente veterano das forças armadas, ele havia de se provar.

A Capitã era adepta à moda antiga: perita em lutar corpo a corpo, tinha que ter cuidado contra essa especialidade.

A mulher correu na direção do jovem; até tentou afastá-la com seus orbes aquáticos, mas não foi impreciso.

Não lhe restou outra opção a não ser esquivar. Dobrou os joelhos e saltou, contava que iria longe por conta do impulso dos ventos, porém era difícil ter mobilidade com a bendita perna d’água.

Alcançou uma altura pífia e logo foi atingido em cheio pelo chute da Capitã, jogado para a pirâmide invocada.

Aaargh!

Ele rangeu os dentes, bateu as costas e caiu no chão.

Capitã não iria deixá-lo sequer respirar. Avançou até o jovem e o debulhou de porradas.

Sem parar, às vezes ela o puxava pela gola e afundava seu nariz com um ou outro murro, capaz de quebrá-lo.

Lotus não tinha a menor experiência com a pirâmide, não tinha ciência de como usar esse poder imensurável. E o pior: a general possuía uma proteção contra suas magias, equipamento de ponta com justamente o propósito de confrontar seu poder. Era irônico como, na verdade, era ele em grande desvantagem e de que iria ser esmurrado até a morte.

O mundo escurecia, a visão turva passou a ver nuances. O sangue que saía dos novos ferimentos se misturou com a perna d’água, transformada numa perna de sangue.

Ele tinha que tomar uma atitude.

Tinha que sair dali.

Tinha que sobreviver.

A fúria cresceu em seu coração, maior do que qualquer machucado. Se não fizesse nada, seu descanso eterno se tornaria uma condenação por não bater de frente com o que jurou combater. O motivo de estar ali, o motivo de arriscar sua vida.

Era hora de amadurecer.

Não sabia como funcionava a defesa da Capitã, mas sabia que precisava ultrapassá-la.

No momento em que a general o puxou pela gola de novo, ele utilizou as forças que lhe restavam para segurar os ombros dela. Com a inesperada oportunidade, ela imediatamente aproveita para reagir à ação e o enforcar.

— É isso que acontece com quem se opõe à pátria!

Quase sem ar, Lotus concentrou toda sua energia na perna d’água e desferiu uma joelhada na barriga da general. Houve um estouro poderoso que despedaçou a defesa dela. Um canhão hidráulico implacável.

Arremessada, a mulher destruiu uma das estátuas no impacto, depois foi para na comunidade. Havia sido lançada para fora do templo.

Vitória!

Quando o confronto se encerrou, o jovem ficou acabado. Todo surrado, apoiou as mãos na superfície do solo e o melou de sangue. O líquido rubro respingou do nariz inchado, assim como das suas tossidas secas.

A dificuldade para respirar era alarmante. A euforia de poder foi embora, essa era a realidade, a cruel vida real. Necessitava se reerguer para sair dali, embora suas lesões fossem um peso.

Foi bom saber que sua perna ainda estava lá. O membro de água limpou todo o sangue no golpe. Enfim, podia andar e isso bastava.

No entanto... para onde ele ia era uma incógnita. Havia conseguido o mais difícil e impossível, uma meta tão alta e surreal, que ficou perdido sobre o futuro. Onde teria espaço para ele?

Precisava pôr sua cabeça em ordem e entender melhor o seu poder. Levantou e seguiu para a saída do templo. Em passos lentos, divagava por cima dos corpos dos colegas soldados, acostumando-se aos poucos com a prótese aquática.

(...)

Ao voltar para o exterior, foi recebido pela mesma chuva incessante de antes. Era o céu sombrio e a já conhecida comunidade miserável.

À frente, centenas de moradores da periferia estavam ajoelhados e com a testa no solo de pedra. Suplicavam por misericórdia, clamavam por proteção. Havia bebês e crianças chorando, a maioria carregadas pelas mães; homens com verrugas e feridas nos membros superiores — provavelmente de muito trabalho braçal — que também caíram aos prantos. Era terror.

Mesmo com a aparência horrenda do rosto do Lotus, eles conseguiram reconhecê-lo como o novo Vital da Tempestade. Tal era sua aura.

Talvez o jovem tivesse um cheiro peculiar de Vital. Talvez sua imagem era diferente em outros olhos. Talvez, pela pirâmide ter sido invocada e ele sair do templo com vida após soldados o encurralarem. Em todo caso, era verdade que era o novo Vital.

No canto esquerdo do jovem, ainda jazia a anciã que ele derrotou. Não virou cadáver, estava apenas imobilizada. O tiro do antigo rifle eletromagnético impediu que ela usasse seus poderes e até mesmo o corpo. Era capaz de mexer só a boca e os olhos.

— Não... — murmurou ela. — Não é possível...

Lotus sequer a escutou, estava surpreso com o culto à sua imagem. Para o exército, ele era uma peça descartável; mas, para o povo, era um deus.

Como um belo oportunista, se aproveitaria disso. Não só descansaria, também iria se preparar para a chance de voltar ao seu país.

Ele foi na direção deles. Iria manipular o primeiro vodariano que conversasse. E, achou que ia ser simples...

— Pare agora! — bradou a anciã, forçou a voz ríspida. — Afaste-se deles… Você já nos causou muito mal... Vá embora!

O jovem a fitou, inconformado que ainda falasse. A idosa continuou:

— Se é você o novo portador da pirâmide... quer dizer que meu glorioso Tlaleel te enviou para tirá-la daqui! — Ela intercalava a fala com tosses. — Suma junto deste mal!

Lotus manteve a postura e sequer ligou para o que ela disse. Frio. Com esse poder em mãos, dificilmente palavras lhe abalariam.

Ainda com o semblante queimando em dor, ele foi até os habitantes.

De repente, foi alvejado.

BANG!

Um tiro acertou seu ombro.

BANG!

Um tiro acertou o outro ombro. Caiu no mesmo instante.

O corpo formigou e adormeceu em questão de instantes, estirado.

Foi cercado por alguns homens. Não era alucinação eles chegarem voando com propulsores nos pés. Oito deles. Tinham aparência de adultos indígenas vestidos com camisas brancas justas e calças pretas. Seus semblantes eram frios, não expressavam sentimentos. Cada um portava duas pistolas. Era um grupo curioso, de robôs.

Pela frente, um homem se aproximou, possuía um olho vermelho e outro laranja.

Os residentes abriram espaço para ele passar, tinham medo. Habitantes que engoliram a seco as súplicas e clamores, tinham pavor.

Esse líder também vestia uma camisa branca e calça preta. Calçava botas pretas e possuía um coldre em cada canela, onde portava as duas pistolas. Tinha o mesmo rosto que o resto do grupo e o mesmo cabelo, uma trança presa atrás da cabeça.

Andou até Lotus.

O homem revirou o jovem, colocou-o com a face para o céu e visualizou seu semblante exausto e ferido com os olhos semicerrados.

Se dirigiu ao grupo com um sinal de mão e, em seguida, seus subordinados estenderam os braços para o lado e entrelaçaram os dedos, fechando um círculo em volta dele e do Lotus.

Após isso, apanhou uma das pistolas e a recarregou.

Nãããão!

Os moradores ficaram desesperados e foram invadir o círculo. Pelo Vital, eles eram capazes de tudo. Tentaram passar por cima, por baixo, pelos lados... mas não tiveram sucesso. Eram robôs inofensivos, porém eram como uma muralha de aço.

O homem manteve a calma. Estava lá por um único motivo e nada o atrapalharia.

Mirou no peitoral do Lotus.

Embora com as vistas ofuscadas, o jovem assistia seu assassino prestes a puxar o gatilho. Nesse dia, ele enfrentou a morte diversas vezes para sobreviver. Mas, nesse momento, ele foi encostado pelo véu negro e a ponta da foice no queixo. Era o fim, mas guerreou até o final pela sua vingança.

— Desculpa, mãe.

BANG!

O homem atirou.



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