Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 5: Um Novo Horizonte

As portas se abriram. Foi liberado o acesso para uma escadaria imersa na escuridão. Era o último lance de escadas antes do desafio final.

Lotus estava acabado.

Apesar das esferas rubis terem lhe garantido uma sobrevida, não curaram todos seus ferimentos. O corpo inteiro doía, uma angústia sem fim. Se não tivesse estancado o sangramento da canela, teria morrido.

Mesmo assim ele continuava motivado e esperançoso. Nenhuma dor seria maior que sua ambição. Antes de prosseguir, o jovem precisava encontrar seu parceiro: o rifle eletromagnético. Largou-o durante o combate para obter maior mobilidade.

Imaginou que ele ficou no segundo andar, mas só de pensar que teria que subir todos os degraus de novo... Aff! Instantânea falta de motivação. Ao invés disso, optou por procurá-lo no andar que estava, contou com a sorte o encontrar caído ao seu lado.

Virou para trás e... lá estava. Jazido nas poças d’água — resíduos dos corpos das enguias.

O rifle acompanhou-o como um amigo apegado, apesar de ter sido deixado para trás. Era um parceiro fiel. Apanhou-o e notou que ele também se “machucou”, havia alguns arranhões na lataria.

Era hora de avançar.

Lotus ainda mancava, uma condição péssima. Embora tenha evitado subir as escadas para o segundo andar, era impossível escapar da escadaria adiante, a coberta pelas trevas.

Apoiou a mão esquerda na parede e começou a subir.

O jovem teve que contar com os trovões de fora para ter o mínimo de claridade momentânea e vaga.

Por descuido, tropeçou.

Bateu o joelho na quina de um degrau. Pisou falso. A dor foi escaldante, mas dessa vez ele sentou e conseguiu segurar o grunhido. Rangeu os dentes e apertou a coxa.

Após um raio iluminar o caminho, percebeu que os degraus tinham alturas diferentes. Reparou na hora certa: alguns eram mais altos, outros eram buracos para uma queda terrível!

Nessas circunstâncias, pensou numa única opção: subir com as mãos e os pés, andar como um quadrúpede. Tirou a regata que vestia por baixo da farda — uma preta encharcada de água e suor — e a usou para prender o rifle envolta do seu braço. Embora fosse pesado, seu tríceps era capaz de suportar.

Prosseguiu. Sempre checava o próximo degrau antes de subir, não erraria de novo. Tato exploratório.

Com o nariz mais próximo do chão, sentiu um cheiro forte. O aroma dessa escada era um odor podre de sangue. Quando o caminho foi iluminado, o jovem notou que um rastro sangrento pintava esses degraus, a sinalização da morte. Mas, isso pouco importava. Seguiria em frente.

Lotus se aproximava cada vez mais da claridade. O momento que tanto aguardou estava próximo. O horizonte cinzento já era visto e a tempestade incessante respingava no seu rosto.

Com o ambiente mais visível, não era mais necessário continuar subindo em quatro patas. Desprendeu seu rifle e o portou, preparado para o que viria.

Algo no trajeto chamou sua atenção.

Era um hieróglifo, um desenhado na parede. Nele, quatro figuras estavam representadas: três vodarianos estavam lado a lado atrás de um planeta. Atrás desses, havia um indivíduo alto e de cabelo com três rabos de cavalo, apontava um cajado na direção deles. Ele era soberano sobre os três, a imagem era intimidadora.

Lotus o analisou, ficou curioso. Porém, não deixou isso tomar muito do seu tempo, havia algo maior a ser conquistado. Permaneceu adiante.

No final da escadaria, a brisa do vento mudou, ressoava mais atroz; a pressão aumentou, mas era só no psicológico do jovem. Estava prestes a ficar de frente com um dos homens mais temidos do seu planeta, um cruel e impiedoso capaz de obliterar exércitos.

A cabeça desse homem era o prêmio, um que iria colocar o jovem no topo da cadeia alimentar. Conquistar esse posto sobrepôs qualquer medo.

Ele botou a arma à frente e recarregou, preparado para atirar.

Chegou.

Hum?

O jovem paralisou.

Quanto ao lugar: era uma plataforma circular de pedra com muretas rochosas nas extremidades. Tinha uma vista ampla para o mar e o horizonte. O chão era esburacado, sofrido da erosão ao longo dos anos.

A tormenta não parava.

No centro, um velho indígena em condições deploráveis tossia. Cuspia sangue. As gotas da chuva penetravam nas feridas abertas das suas costas expostas. Um sofrimento insuportável. Também possuía cicatrizes da cabeça aos pés, não as escondia com roupa alguma.

Tinha pele flácida, ossos frágeis... Um corpo desgastado, um morto vivo.

Lotus ficou atônito. Tinha uma imagem diferente desse homem. As histórias dele, os feitos e os extermínios jamais levariam o soldado a acreditar que o encontraria tão debilitado — destruído.

Ao mesmo tempo que lidava com a decepção, o jovem não deixou de se aproveitar dessa fraqueza.

Por mais que soubesse que o idoso não estava tão forte como já foi, acreditou que passaria pelo menos um sufoco ao enfrentá-lo. Poderia custar sua vida. Mas, a sorte estava ao seu lado.

O objetivo do Lotus estava definido muito antes da missão militar: encontrar esse homem, matá-lo e absorver o poder que ele porta. Era um poder capaz de controlar as tempestades, os furacões e os oceanos; a energia, os gases e os líquidos. E esse momento finalmente chegou.

Alvejou a cabeça do velho, era hora de apagá-lo.

BANG!

Ele errou. O projétil foi desviado do seu trajeto.

— Não... Não pode ser... — disse o idoso, que logo o fitou. Seu semblante refletiu o ódio à figura do jovem. — Como você continua vivo? Era pra todos vocês estarem pulverizados juntos daquele avião!

Lotus estremeceu, seu corpo ficou pesado. O olhar intimidador direcionado a ele foi atormentador. Contudo, o jovem não tinha o direito de demonstrar fragilidade. Engoliu o medo e mostrou o porquê estava lá.

— Você falhou, Rudá — falou ao recarregar o rifle. — Não foi capaz de aniquilar um batalhão. Não foi capaz de matar um único jovem.

— Seu desgraçado... — praguejou o velho e, em seguida, se engasgou.

Com a arma ainda empunhada na frente do corpo, Lotus disparou.

BANG!

Dessa vez, Rudá não só desviou a bala como também atacou com uma investida elétrica super veloz e atingiu a perna machucada do jovem.

Derrubado novamente, Lotus teve a perna direita amputada.

Aaargh!!!

Ele bradava de dor. Agonizou em meio à tempestade e estava no chão. O jovem subestimou Rudá Tlaloc.

Após atacar, o idoso também caiu. Seu pulmão o condenou com uma falta de ar que resultou em uma respiração desesperada. A cada ofegada, tinha a sensação de que o tórax ia explodir.

O combate ficou justo, era uma forma de pensar.

Rudá estendeu a mão para o céu sombrio e preparou o último golpe. Uma fenda foi aberta entre as nuvens e os relâmpagos foram atraídos para lá, formando uma esfera radiante no centro. Era o juízo final.

— Vocês nunca serão capazes de tirar minha vida! — gritou o velho. — Se passarão décadas! Séculos! Milênios! E continuarão sendo essas escórias!

O jovem, embora machucado, recarregou o rifle e preparou o último disparo. Se errasse, já era. Não teria mais munição e tampouco outra oportunidade de atirar, mas era óbvio que Lotus jamais desistiria.

Ensandecido, o velho continuou: — Eu serei o último vodariano a portar a pirâmide! Vou destruí-la junto com esse templo inteiro para que ninguém mais tenha a chance que você teve!

A superfície começou a vibrar e o ruído da estática remexia os tímpanos do jovem, o presságio do fim.

Era difícil alinhar o rifle ao mesmo tempo que a dor o consumia. Tudo tremia, inclusive suas mãos. Seu corpo suplicava por uma pausa... não, por um descanso eterno.

As ondas atrozes agitaram o mar. Oceano furioso. O vento rebelde arrancou os telhados das casas, um vendaval cruel. Os raios atraídos pela fenda, rasgaram as nuvens. Tempestade implacável.

— Sem misericórdia — disse o idoso num tom seco.

KABOOM!

O jovem atirou.

Rudá arregalou os olhos e levantou seu braço para enfim lançar o ata… Caía com peito atravessado. Era a velocidade de um tiro, afinal.

Lotus havia conseguido. Apesar do gosto amargo de mal ter conseguido matar um velho à beira de bater as botas, conseguiu. Estava ofegante, acabado. Soltou o rifle, cumpriu sua função.

A fenda celeste e a orbe de energia se dissiparam. O mar e os ares se acalmaram.

O jovem concluiu o maior dos desafios: executar Rudá Tlaloc, o homem que portava a Pirâmide Vital da Tempestade.

Há muitos séculos, um artefato conhecido como Trindade Vital foi dividido em três partes. Uma delas, a Pirâmide Vital da Tempestade, não só foi responsável por moldar os oceanos, as nuvens e os relâmpagos de Voda, como também por transformar meros indivíduos em seres sobrenaturais, verdadeiros soberanos sobre os homens.

Lotus almejava esse poder. Sentia sede de soberania e nunca ligou para as consequências que essa ambição lhe traria. Era movido por desejo e, principalmente, vingança.

Sem conseguir se reerguer, o jovem se arrastou até o cadáver do Rudá. Precisava chegar até ele para absorver o poder da pirâmide.

Deixou uma linha sangrenta pelo caminho, que logo foi lavada pela chuva.

Pressionou as mãos nas costas do idoso e rangeu os dentes. Muita dor. Em seguida, uma tatuagem no centro dessas costas surgiu, uma com vida própria pelo aspecto sobrenatural se movimentando. Era o desenho da mesma divindade que viu durante todo o trajeto, com dentes afiados e olhos proeminentes. Ela abriu a boca e, de lá, saiu um triângulo azul-marinho com bordas azuis claras.

O jovem fechou os olhos, começou a absorção.

Após um trovão irromper dos céus, o ambiente mudou de maneira abrupta. A tempestade incessante foi substituída por um céu azul-escuro com constelações de trovões; o chão rochoso foi trocado por água, o suficiente para os pés serem imersos; e a brisa do vento ficou gelada, mas aconchegante.

Aaargh!

Lotus rogava. Uma quantidade excessiva de poder corria pelas suas veias. Ele começou a levitar. As constelações acertaram-no com os raios e a água reconstruiu sua perna, mas não era a mesma de antes: era uma perna d’água. A brisa suave se tornou um vendaval cortante. À medida que a absorção acontecia, os fenômenos ficaram muito mais agressivos.

Os estrondos formaram uma melodia de terror. Um lugar virou um caos distinto de uma hora para outra.

Lotus tinha uma força que nunca sentiu. Fluía pelas suas veias como uma bomba hidráulica. A absorção foi concluída.

Todos os fenômenos se cessaram.

O jovem despencou de onde estava, espatifou-se no piso encharcado. Se levantou rapidamente, ofegante, ânimo que dessa vez vinha da adrenalina. Todos seus ferimentos foram curados, a dor sumiu e… tinha nova perna, huh? Iria demorar para se acostumar.

O corpo do Rudá desapareceu, esse local tornou-se seu caixão.

Lotus estava apavorado, inquieto. Obteve muito poder. Olhou para todo ao redor e viu apenas um céu azul-escuro acima — nem sabia o que procurava. As constelações sumiram, o céu ficou limpo.

De repente, uma fissura se abriu na lateral do ambiente. Era extensa, parecia um rasgo em papel. Ela exibia um fundo completamente branco, iluminado: a saída.

O jovem andou até lá. Tropeçou algumas vezes, foi complicado caminhar com a nova perna que não lhe dava firmeza... Era estranho.

Ele nunca mais seria um soldado comum, passou a carregar uma enorme responsabilidade, a última coisa que iria pensar por conta do seu objetivo.

A jornada do Lotus Sutol começava.



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