Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 4: O Templo

Lotus entrou.

Era um ambiente azul-escuro, espaçoso e frio. O corredor estava coberto de água e pequenos rios fluíam entre ele. A base de toda a estrutura eram os pilares nas laterais, com estátuas de pedra no meio deles. Lugar histórico.

O interior era calmo, aconchegante. Os sons externos foram abafados e todo o frenesi de antes ficou do lado de fora. Estava molhado da chuva.

Uma garoa descia do teto, esse que possuía desenhos de constelações. Soava como um céu limpo da meia noite, onde as estrelas iluminam a superfície. Luz natural. Lindo.

As gotas escorriam pela mão ralada do Lotus e amenizaram um pouco a ardência. Seus improvisos não resultaram só em flores, havia sofrido as consequências com seu corpo. Quando a adrenalina se esvaiu, foi desmoronou com dores escaldantes.

Não suportou ficar de pé, tinha… tinha que repousar. Ele sentou nas poças e deixou o rifle no chão. Retirou as botas ensopadas e jogou fora a água barrenta que transbordava.

A canela perfurada era seu algoz, queria examinar o ferimento e era péssimo… Um buraco vermelho, um que iria demorar para cicatrizar. Embora a chuva tenha lavado o sangue, o machucado não parava de jorrar mais.

A pressão do jovem caiu, estava fraco e — entretanto — era tarde demais para ir atrás. 

Resistiria!

Para estancar o sangramento, tirou o cinto e o envolveu no rombo com firmeza. A calça ficou justa nas suas pernas bem treinadas, não cairia. E o curativo estava feito.

Respirou fundo para equilibrar a mente e o corpo. Eram um só.

De repente, fracos feixes brancos reluziram do chão e vieram atrás do Lotus. Trovões? Não, eram constantes demais para isso.

Ao menear a cabeça, assistiu à sentença de morte de perto, foi por um triz.

Os moradores foram eletrocutados quando tentaram cruzar a entrada do templo. Estava bloqueada, protegida por um campo elétrico. Ainda assim, nunca desistiram de invadi-lo. Ao tomarem o choque, alguns desmaiaram e outros convulsionaram.

O jovem teve certeza de que não havia mais volta. Ele não ouviria os gritos e súplicas, apenas via a agonia dos corpos reagindo aos volts.

Ficou apavorado por dentro, era a primeira vez que ficava numa situação como essa.

Procurar por uma resposta definitiva — o que não existia — o atrasaria ainda mais, então direcionou o foco para concluir o próximo passo: encontrar um homem, um poderoso e cruel. Tinha que ser logo. Calçou suas botas, apanhou o rifle e, sem enrolação, se levantou e começou a explorar o local.

Cada passo nas poças ecoava pelo ambiente, o único som que existia.

Lotus sequer se importou com as estátuas ao redor, preferiu divagar adiante. Ele sabia que o vodariano que desejava ver estava numa plataforma circular e o único caminho até lá seria atravessando o interior do templo. Estudou a trajetória por imagens via satélite, algo capaz de fornecer uma visão ampla, porém limitada a lugares fechados. Tinha que supor muitas coisas e não imaginava o que estava por vir.

O final do corredor era marcado pela cabeça da mesma divindade representada no topo do monumento piramidal. Também feita de pedra, sua boca aberta abrigava uma porta de correr dupla e os olhos proeminentes ficavam acima.

O jovem mancou até lá, esperançoso de que era a última passagem para alcançar seu objetivo. Acreditou que a porta era automática, abriria no momento que chegasse perto. Que iludido, por que não tentar abri-la na marra?

Colocou todos os dedos no meio da porta e tentou empurrá-la para os lados. Exerceu toda a força que ainda lhe restava… Não teve sucesso.

Ficou ofegante, se esforçou para nada. Não, valeu de coisa alguma; não daria certo assim. Era necessário explorar mais o templo… para uma solução.

Aos lados, havia duas escadas sem beiral que levavam até os olhos da divindade, uma para o esquerdo e outra para o direito. Os degraus estavam grudados na parede e essa, que estava gelada e úmida, a garoa não era capaz de molhá-la como chuva.

Lotus se apoiou enquanto subia.

Ele foi ao olho esquerdo. A princípio, não entendeu o motivo desse caminho até ele. A luz branda do teto atingia o vão na região das pupilas que caberia uma bola de beisebol. O direito também funcionava assim.

O jovem não iria sair dali sem explicações, existia uma razão para isso.

Após realizar uma avaliação minuciosa e juntar os fatos, pressupôs que duas esferas precisavam ser encaixadas para que a porta abrisse, uma para cada olho. Acreditou na sua hipótese e passou a procurá-las pelo templo.

Entrou em ação.

Primeiro decidiu averiguar as estátuas, poderia achar ao menos alguma pista. Para chegar em cada uma, era necessário cruzar o pequeno rio entre o corredor e elas. Em toda a trajetória, Lotus nunca deixou de estar ensopado. Que desastre.

Ele olhou em volta da primeira estátua. Era de uma mulher que manipulava a água e envolvia seu corpo com ela.

O jovem não encontrou nada de útil. Apenas leu o título que estava escrito no centro da base e viu um triângulo azul logo abaixo.

E dessa mesma forma ele procedeu com as outras estátuas, todas possuíam uma semelhança no padrão estético. Eram figuras imponentes que não despertaram interesse do Lotus.

A última que fitou ao redor era diferente, não demonstrava respeito e tampouco vigor. Era um idoso quase que deteriorado prostrado de joelhos; a água da garoa acumulada nas dobras do rosto escoava e, seu semblante, remetia desesperança, um êxtase no inferno.

Seu título: Rudá Tlaloc.

O jovem a encarou por alguns segundos, a única que foi capaz de despertar sua curiosidade. Depois, saiu.

Frustrado por sequer achar alguma dica, ele continuou a rondar pelo templo. Se sua dedução fosse apenas loucura, então ali seria seu hospício. Iria investir na sua ideia até ter algum colapso mental.

Próximo ao final do corredor, ele avistou uma escadaria no lado direito. Estava quase escondida, os feixes brancos da constelação entregaram seus primeiros degraus. A chama da expectativa acendeu em Lotus, era hora de abraçar uma chance de respostas.

Pronto para subi-la, ele notou que era extensa. Só foi possível enxergar seu começo e o fim, esse que estava clareado por trovões. O meio era sombrio, um local onde a luz não passava há muito tempo.

O jovem as subiu mesmo assim. Corajoso. Sua canela ainda o punia, precisou utilizar as paredes como suporte para não cair, entretanto não contava que elas estariam cobertas por musgo liso.

Alguns insetos caminharam por sua mão. A primeira reação foi retirá-la da parede, teve medo de ser envenenado, mas o objetivo era subir. Pouco importava nesse ponto.

Quando chegou no topo, a garoa cessou.

Fitou uma enorme sala cinza de três paredes retas e uma na diagonal — acompanhava a estrutura da pirâmide. Estava praticamente vazia, havia alguns cajados e baús nela. Sem pensar duas vezes, Lotus foi direto abri-los.

Algo no trajeto roubou sua atenção.

Era uma tela grande igual as de cinema. No seu interior, acontecia uma tempestade feroz, essa que deixava a de fora no chinelo. Os ventos cortantes eram visíveis, o barulho da água era como de uma cachoeira e os relâmpagos irradiavam até os mais significantes besouros.

O jovem ficou arrepiado, fascinado. Só foi possível saber da existência desse fenômeno ao pisar nessa sala. Ele se aproximou hipnotizado. Uma corda imaginária o puxava para lá.

Queria ver de perto.

Sentiu o vento ressoar pela farda e os respingos dessa tormenta voarem na sua face. Assistiu esse evento com muito interesse.

Ao reparar mais nos detalhes, notou que algo levitava no fundo do telão: eram duas esferas vermelhas. Era isso! Encontrou os artefatos que precisava!

De repente, um raio poderoso irrompeu da tela e soou um estouro. Nesse instante, Lotus viu dois olhos elétricos fitá-lo. Em seguida desapareceram.

Ele se assustou e se lançou para trás, até soltou sua arma.

Tudo começou a tremer. Detritos despencaram do teto e os itens da sala caíram, invadida pelo vendaval. Lá, debaixo, se escutava o barulho da água se remexendo. O jovem acreditou que estava prestes a viver três desastres naturais ao mesmo tempo.

Era pior. Abruptamente, duas enguias gigantes feitas de água abriram uma fenda no chão.

No meio do corpo, elas possuíam a mesma esfera vermelha que o jovem viu, seus corações.

O alvo de ambas era um só: Lotus Sutol.

Elas rugiram famintas.

De imediato, Lotus pegou o seu rifle recarregado e disparou. A bala atravessou a cabeça da enguia, porém não teve nenhum efeito. No mesmo momento, uma delas deu uma investida atroz que acertou a barriga dele, jogando-o contra a parede.

Ele rangeu os dentes de dor e depois caiu.

A outra enguia atacou, mas Lotus desviou. Elas não deixaram barato, tampouco o deixaram respirar. Ao longo do combate, o jovem largou o rifle e tentou apenas esquivar. Falhou na maioria das vezes.

Ele tossia sangue, a um passo da morte.

Seus instintos o ordenavam a fugir. Sobreviver. A mente foi tomada por eles.

À medida que as enguias o acertavam, ele tentava chegar até uma das fendas que elas abriram. Se fosse preciso cair de uma altura absurda para tentar não morrer, o faria.

Uma última investida o empurrou para o buraco.

Aaaargh!

Ainda no ar, ele foi devorado por uma das enguias. No entanto, não era mastigado. Ficou mergulhado dentro do corpo aquático.

Se não fosse morrer por queda, morreria afogado. O jovem perdia o pouco ar que lhe restava. Tentou sair dali de diversas maneiras, porém o organismo da enguia o forçava para baixo… Iria… digeri-lo…

A visão ficou turva, começou a engolir água. As bolhas que escapavam da sua boca eram os últimos resquícios de oxigênio indo embora.

A jornada caminhava para o fim. Próximo de fechar os olhos para sempre, Lotus viu a esfera vermelha. Estava tão perto… Não era ilusão.

Seu esforço excedente o fez chegar até ali, lutou pela sua ambição até os segundos finais da sua vida. Não iria deixar Voda em vão, cravaria seu nome no templo com um último ato de bravura!

Aproveitou o gancho da enguia engolindo-o, almejava pelo menos encostar na esfera. Estender o braço se tornou uma tarefa difícil, estava tão pesado quanto uma bigorna. Ele se aproximou o máximo que pôde.

Tocou… Não, ele definitivamente a pegou.

Aaargh!

Gritava por receber uma energia inimaginável. Seu físico passou a absorvê-la. Retornou seu vigor e curou os ferimentos letais. A água não mais o sufocou e suas vistas voltaram ao normal.

A enguia bradava enquanto seu corpo passou a ser dissipado, um sofrimento que logo acabaria. O jogo virou.

Lotus caiu na superfície, porém ao invés de morto, bateu com o punho no chão; o corpo aquático do seu inimigo falecido inundou ainda mais o templo, havia voltado ao estado natural.

Faltava mais uma esfera, mas dessa vez ele sabia o que fazer. Alguns machucados não se curaram, mas ele resgatou sua essência de guerreiro e estava pronto para o que desse e viesse.

Dominada pela fúria, a enguia que restou devorou o jovem. Ele deixou isso acontecer. Ao entrar no corpo da enguia, nadou até seu coração e o apanhou.

Ela teve o mesmo fim que sua irmã.

Lotus ganhou a luta e garantiu ambas as chaves para abrir a porta. Estava satisfeito, mesmo que o efeito colateral do conflito fosse alarmante. Seu estômago e ombros foram debulhados por cabeçadas, sua perna ainda sofria. Ainda assim, ele venceu.

Era hora de testar sua dedução: foi fechar o vão na região das pupilas da divindade. Subiu até elas com dificuldade, tudo doía.

Ele as colocou.

As esferas brilharam. Sua iluminação escarlate entrava em contraste com o azul-escuro do ambiente. O ruído das portas a abrir era rígido, o movimentar das pedras. Deu certo.

Estou chegando.

As consequências das suas ações incomodavam, mas eram abafadas quando o jovem se lembrava do porquê ele se submetia a elas. Um poder milenar o aguardava.

Estava prestes a passar pelo último desafio.



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