Volume 1 – Arco 1
Capítulo 3: Anciã
Mais cedo…
A idosa indígena assistiu Rudá rastejar para dentro do templo piramidal até desaparecer no interior. Ela tinha um rosto franzido e olhos caídos, semblante de preocupação e pena intensificado pelas rugas deslizantes. Ao seu redor, corpos carbonizados exalavam um odor de carniça e manchavam o chão com o vermelho e preto aterrorizante. O quadro pintado pela morte e os soldados que ousaram tentar executar Rudá viraram a tinta.
Embora detestasse a ideia, a idosa compreendia que ele estava longe do auge, pelo contrário, estava à beira do fim. Durante um século, o velho carregou um artefato ancestral que lhe concedia um poder absoluto sobre os vodarianos, um capaz de obliterar exércitos e dizimar populações — o que fez ao longo da vida.
Pontadas no coração da anciã quando lembrava que estava prestes a perdê-lo, era fato. Entretanto, se tornava mais doloroso ao imaginar o futuro: após o idoso partir, alguém tomaria o artefato para si.
O barulho do avião ressoava estrondoso e Rudá não ia permitir a sua aproximação.
O céu se escureceu por completo, nuvens negras o dividiram e zunidos elétricos vibraram os tímpanos desgastados da anciã. Fitou acima, um emaranhado de raios convergia-se na primaz fenda entre as trevas. Formava uma esfera elétrica em seu centro, o sol que há muito não reluzia sobre essas terras.
O destino da aeronave foi decretado.
KABOOM!
O clarão ofuscou sua visão, retomada em poucos segundos. Em seguida, visualizou o avião a cair em direção à comunidade, englobado pela esfera verde e sem a parte frontal, provavelmente obliterada após o raio.
Sua cabeça acompanhou o movimento da queda enquanto o cocar que a protegia era banhado pela tormenta. Embora a idade avançada, ela mantinha a postura ereta e segurava o cajado com firmeza. A anciã semicerrou os olhos para melhorar sutilmente a visão prejudicada pelas décadas.
A aeronave atingiu a entrada da comunidade, empalando as construções e arrastando cadáveres pela lama.
— Não explodiu…? — concluiu quando nenhum som estrondoso estremeceu os arredores. Significava que os malditos invasores ainda estavam vivos.
Cof! COF! Tossiu alto, liberando gotículas de sangue na mão enrugada.
Ela apertou o cajado até os ossos fisgarem e as veias saltarem, tentativa falha de conter a raiva interna. Se Rudá não estivesse tão debilitado, a idosa se desprenderia das correntes da preocupação e o permitiria tomar a frente. Dessa vez era diferente: defenderia o templo sozinha, manuseando seu cajado encantado por ele.
Vosso lorde Rudá! Misericórdia!
Inúmeros habitantes começaram a gritar pela comunidade, corriam em busca de refúgio. Os que moravam próximos ao templo tinham vantagem, seriam os primeiros a chegar. Entretanto, de forma alguma poderiam entrar. Era um lugar sagrado, o acesso permitido apenas aos verdadeiros escolhidos e, nesse momento, só a anciã possuía essa honra.
Alguns habitantes já haviam conseguido adentrar na área do templo. Embora a tormenta incessante, o caminho estava menos árduo, porém mais perigoso. Ao chegarem, sangravam das canelas para baixo e o vermelho misturou-se com a lama. Abaixaram as cabeças e suplicaram com vozes roucas:
— Permita-nos entrar, anciã Aztecanta!
Nunca deixaria, pois era o castelo do Rudá.
Ela ouviu súplicas, choros e gritos para que pudessem entrar, mas não cedeu. Suas decisões eram imutáveis, mães com crianças ou famílias estavam longe de ser o suficiente para ela mudar de ideia. O respeito pelo velho amigo era supremo.
Quando negou, alguns pouco ousados dispararam para dentro na esperança de que invadiriam o local. Bastou apenas uma batida do cajado no chão para que uma onda de vento os empurrasse para trás. Jamais iriam entrar.
Os moradores presentes voaram para a rua anterior, um nível abaixo comparada a do templo. Foram banhados pela lama e sangue dos cadáveres, também lançados.
A anciã manteve-se imóvel, optou por não gastar tanto as energias. Precisaria da pouca que tinha quando os invasores atacassem.
Mais habitantes apareceram, porém o único movimento com o bastão os afastava. No fundo, era doloroso utilizar essa técnica contra seus iguais, entendia que só desejavam salvação. Entretanto, seria pior se tivessem que lidar diretamente com o Rudá, nunca sobreviveriam ao seu descontrole.
Enquanto fazia, a luz azul na ponta do cajado brilhava intensamente. Vendavais atrozes o envolviam ao mesmo tempo que canalizava eletricidade. Aztecanta mostraria sua imponência.
-----
Durante a escalada no morro de lixo, Lotus viu poucos moradores delirantes dispararem até o topo, e logo em seguida voltavam pelos ares. Cadáveres espalhados descansavam ao seu redor, e após uma análise minuciosa, notou que eram membros do seu exército.
Havia algo perigoso adiante, estar despreparado estava fora de cogitação.
Afundou o pé em camadas de lixo diversas vezes, mas sua bota o protegeu dos cacos de vidro e ferros de latinhas. O curativo de improviso na canela — sua regata branca — também fez um bom trabalho.
Próximo à última fase do trajeto, Lotus empunhou o rifle e envergou a coluna. Enfrentaria o que fosse preciso para obter o artefato ancestral. No entanto, lhe faltava algo para se defender, apenas a arma não o protegeria.
Teve uma ideia, longe da ética.
Apanhou um dos cadáveres. Era de um soldado, esse com metade dos dois braços e um furo na barriga. O segurou na frente com o braço esquerdo e posicionou o pesado rifle ao lado. Mesmo que perdesse mobilidade, acreditava que seria uma defesa bem útil. Além disso, poderia fitar o alvo através da fenda no corpo.
O jovem parou. Respirou fundo e, tomado pela adrenalina, correu em direção ao topo. Considerava inviável dar tempo de resposta ao inimigo.
— Aaaargh! — bradou Lotus, então atirou.
Tentativa ansiosa; o tiro foi desviado. Ao reconhecer o som do disparo, Aztecanta obteve certeza de que eram os invasores.
— Você... — Sua voz reverberou com força, enquanto o cajado irradiava a luz azul intensa. — É mais um deles!
O vento rodopiava feroz ao redor dela, trazendo consigo a eletricidade que impregnava o ar. Lotus, com o cadáver de um soldado à frente, estava preparado. Suspeitava que o poder da Aztecanta era descomunal, mas também sabia que a idade pesava sobre ela. Torcia para que se degradasse com o decorrer da luta.
A idosa ergueu o cajado com facilidade surpreendente, e o ar ao redor dela pareceu ganhar vida.
— Suma! — bradou, antes de bater o cajado contra o chão. Uma onda de choque irrompeu da base do templo; o solo se rasgou e a lama foi arremessada para os céus.
O jovem se escondeu atrás do corpo destroçado do soldado, usando-o como barreira improvisada. O cadáver absorveu parte da força do impacto, mas Lotus foi lançado para trás, batendo no barro encharcado. Quase voltou à rua anterior. Ele se levantou rapidamente, sentindo o peso da dor na canela. Mesmo assim, seus olhos estavam fixos em Aztecanta.
O coração da anciã retumbou. Seu corpo, por fora, imponente, já começava a mostrar sinais de desgaste. Mesmo assim, ela não poderia parar. Uma espiral de vento se formou ao seu redor, a luz azul brilhava forte.
Lotus manteve o cadáver à frente e, fitando-a — pela fenda — disparou de novo. Não teve sucesso, a cúpula de vento ao redor dela desviou a bala. Ela foi engenhosa, mas suas mãos tremiam ligeiramente. A cada conjuração, o cansaço ficava mais evidente.
Seus movimentos, que antes eram firmes e rápidos, começaram a desacelerar. Sua respiração estava pesada e uma gota de suor desceu por sua testa. Mesmo assim, ela tentou esconder a fraqueza, mantendo a postura ereta e altiva.
— Onde está o resto?! — rugiu ela, mas sua voz já não tinha o mesmo poder. O brilho do cajado oscilava.
O jovem teve a premonição do “momento certo”. Precisava resistir até que ela fizesse um movimento decisivo. O cadáver já estava praticamente destruído; segurava o que restava, aproveitando cada pedaço para minimizar os danos.
Aztecanta agora, visivelmente mais lenta, levantou o cajado mais uma vez. Iria atacar de novo. As mãos tremiam enquanto canalizava a eletricidade.
Lotus percebeu: era agora ou nunca.
Correu em direção a ela, mantendo o cadáver. Cada passo era calculado, suas botas escorregavam na lama e ele tentava se aproximar o suficiente para um tiro certeiro.
Ela sentiu o perigo, sabia que não podia prolongar a batalha mais do que isso. Com uma fúria desesperada, levantou o cajado com ambas as mãos. Toda a eletricidade que ainda conseguia conjurar começou a se concentrar na ponta do cajado e o céu acima deles rugiu em resposta. Uma esfera elétrica começou a se formar.
Suas pernas vacilaram. O peso do cajado, o poder que ela estava invocando, era demais para seu corpo envelhecido.
Lotus viu a esfera elétrica se expandindo no céu, brilhando com intensidade. Era semelhante à formada antes do raio atingir seu avião. Mesmo com toda a lama e a tempestade ao redor, ele sabia que tinha apenas uma chance.
O disparo foi instantâneo.
BANG!
A bala cortou o ar e atingiu Aztecanta na lateral do peito e rasgou sua carne. Ela soltou um grito agudo e o cajado escorregou das mãos. Caiu no chão com um baque surdo.
A esfera elétrica no céu oscilou, e o poder que estava sendo canalizado se dissipou de repente, relâmpagos estourando inofensivamente ao redor deles.
Ela caiu de joelhos, seus olhos arregalados de dor e choque. Sua força estava completamente esgotada. O cajado ainda brilhava fracamente ao seu lado, mas a idosa não tinha mais forças para segurá-lo. Seu corpo, outrora erguido com orgulho, agora estava curvado pela bala radioativa que Lotus cravou.
Em um corpo vodariano, a radiação atua como um paralisante extremamente perigoso, travando o físico por dias e até semanas. As balas da arma do jovem eram feitas de urânio, essenciais para imobilizar e executar o oponente.
Lotus ficou em pé à frente dela, ofegante, ainda sentindo o peso da luta, mas ciente de que havia vencido. Aztecanta tentou falar, mas sua voz era fraca, quase inaudível:
— Falhei... — murmurou, com os olhos vidrados na direção do templo. — Rudá...
Com um último suspiro, ela tombou na lama, o brilho do cajado apagando-se de vez. Seu cocar fugiu da cabeça, exibindo o pouco cabelo grisalho. O vendaval atroz ao redor deles começou a diminuir, como se o poder dela estivesse diretamente ligado à fúria dos céus.
Lotus abaixou o rifle, o alívio misturado com o cansaço.
Ele havia derrotado uma inimiga formidável, mas o caminho à sua frente ainda estava cheio de incertezas. O templo de Rudá agora estava desprotegido, mas o sacrifício de Aztecanta pesava no ar. O pior ainda estava por vir, mas naquele momento, Lotus havia superado um de seus maiores desafios.