Volume 1 – Arco 1
Capítulo 2: Pela Comunidade
A poeira levantada erigiu uma muralha de fumaça, névoa cinza que cobriu a visão do exército. Lotus fugiu rumo à comunidade adiante, despreocupado com a perseguição do batalhão, esse assolado pelos zumbidos e fragmentos metálicos provenientes da explosão.
Antes da missão, preparou um mapa com o trajeto para o templo piramidal, o destino que buscava. Embora já estivesse encharcado, ainda era possível discernir as marcações. Era hora de seguir em frente — ou melhor — seguir pela rota traçada na folha de papel, linhas vermelhas de diferentes caminhos até a costa.
Tinha o necessário: cinto equipado com dois coldres, onde descansavam seus dois facões; o fuzil eletromagnético, pesado feito bigorna; e um físico saudável e resistente, resultado dos meses de treinamento e suplementação. Se preparou de fato para esse momento, mas jamais em prol da missão militar.
As ruas eram inclinadas, a periferia foi construída sobre um morro. O jovem disparou por corredores estreitos, decorados por habitações de madeira amontoadas, a maioria com pelo menos três andares e estrutura caindo aos pedaços. Mesmo em meio aos escândalos da tempestade, os rangidos de madeira — a quebrar — eram inevitáveis.
Estão abandonadas, conclusão que chegou ao ver as entradas expostas e o presságio do desmoronamento. Ao seu redor, carrinhos de mão e liteiras se misturavam com a lama no chão, difícil de distinguir. Franziu o cenho ao se deparar com a falta de tecnologia.
Suas botas já haviam se banhado com o solo lamacento, chuva estava longe de lavar essa sujeira — corria sob o temporal. Nada disso o desmotivou. A recompensa que queria no final era algo muito valioso, incrível o suficiente para o tornar poderoso e soberano.
Após passar por uma esquina, viu a água lamacenta escoar violentamente pela avenida, emitindo um som que se somava à intensidade da tormenta. Pisou falso em um buraco escondido no chão e seu pé virou, a meio triz de torcer. A correnteza bege ocultava as armadilhas afundadas, teria que ter cuidado redobrado.
Manteve-se adiante, sem lamentos.
À medida que percorria, as ruas se tornavam cada vez mais inclinadas. Acompanhavam a estrutura natural do morro.
De repente, um odor horripilante invadiu as narinas do jovem, fedorento como um caminhão de lixo. Resíduos com diversos tipos de textura chocavam contra sua canela protegida pela bota.
— Aaaaahhh! — gritos ecoaram em meio, mistura de inúmeras vozes.
Depois de outra curva, avistou os habitantes da comunidade que saiam das várias vielas conectadas à rua principal. Possuíam pele escura e, na maioria, olhos puxados; vestiam camisas ou roupões rasgados. Estavam em grupo, porém sequer se entreolhavam, pois o desespero os designou a apenas seguir em frente.
Huh? Lotus franziu o cenho ao visualizar o obstáculo adiante.
Era uma muralha com a altura de um edifício com, no mínimo, dez andares. Um obstáculo formidável e que protegia o acesso do caminho adiante. Lama escorria pelo corpo da elevação, encobrindo a estrutura barrenta enrijecida há muito.
Embora o contratempo à frente, os moradores não reduziram a velocidade, pelo contrário, aceleraram os passos. Os que eram pais, arrancaram suas roupas empobrecidas e usaram-na para amarrar os filhos nas costas.
Ele retirou uma foto no bolso frontal do seu traje militar para guardar na calça, junto com o mapa. Em seguida, utilizou essa jaqueta para amarrar o rifle eletromagnético nas costas. Empunhou as duas facas no coldre.
Começou a escalar a muralha junto com os residentes, seu rifle pesava nas costas. As armas brancas, afiadas, penetravam na camada de barro, o amolecido pela chuva. Os vodarianos ao redor faziam com as próprias mãos, vigorosos e experientes com a escalada, sobre-humanos. Possuíam o mesmo destino que o Lotus, o lugar onde buscariam a misericórdia divina — não o mesmo objetivo do rapaz, apesar.
— Invasor! — bradou a mulher.
Subitamente, a sola de um pé rachado afundou na cabeça do jovem; ele apertou a bainha da faca para ter firmeza. Não iria cair facilmente, mas a moradora foi obstinada, deu mais chutes e conseguiu o que queria quando o Lotus baixou a guarda ao tentar perfurar sua canela: o derrubou.
Foi em um instante.
Ainda com as facas em mãos, no ar, virou-se para a muralha e fincou ambas, deslizando pela estrutura enquanto empurrava habitantes que escalavam para uma queda livre.
Se estabilizou. Duas linhas retas foram o rastro da tentativa bem sucedida de sobrevivência. Os residentes à volta o ignoraram apesar da confusão.
Há algumas horas, um grupo de militares percorreu pela comunidade com as mesmas roupas e utensílios que o jovem utilizava. Os moradores assistiram-nos das janelas desprotegidas das casas. E logo se esconderam ao ouvirem o estrondo próximo ao templo.
Lotus subia, impulsionava-se com os pés e perfurava a estrutura para ter firmeza. Apesar dos movimentos desconfortantes, o problema principal estava nas costas: o rifle pressionava sua lombar e o induzia a voltar para o chão.
Não iria parar.
Chegou ao topo. Apoiou-se com o cotovelo na quina e... subiu para a próxima rua?… Não tinha certeza, ofegante e deitado na continuação do trajeto até o templo. A adrenalina corria pelas suas veias. O gosto de estar a um passo… descia pelo seu esôfago como água gelada em dias abrasantes.
Viu: mais vodarianos alcançaram o topo.
O jovem se levantou. Os trovões irrompidos do céu iluminavam o local, postes naturais. A rua em que passou a correr era uma réplica da anterior, com o corredor lamacento entre construções mal cuidadas. Retirou o rifle nas costas e o segurou à frente do corpo, um soldado pronto para a guerra.
Localizou a próxima muralha à frente.
CLAK!
O pilar de uma casa se soltou, essa que era a primeira de um “edifício de casas”. Estilhaços de madeira caíram em direção à rua, então a própria construção desabou. Próximo a ser esmagado, Lotus jogou a arma adiante e saltou ao solo.
— Tenha misericórdia, Ru… — suplicou um homem antes de ser enterrado vivo pela construção.
Metade do caminho foi bloqueada por uma extensa barricada de madeira, que esmagou alguns dos habitantes que corriam. Se o jovem não estivesse atento, teria tido o mesmo destino. Mas, não escapou das consequências.
Sentado e grunhindo de dor, apertava a própria panturrilha transpassada por uma estaca de madeira.
O sangue foi lavado pela tempestade, restou apenas a vermelhidão ao redor do furo. Mesmo ao agonizar, não podia ceder ao sofrimento, nada o afligiria mais que o insucesso em adquirir o poder que tanto almejava. Com as duas mãos, segurou na estaca e a puxou. Soltou um palavrão durante o processo. Desnorteado pela dor, lançou-a no chão, porém o objeto esfarelou-se antes de chegar, provavelmente podre, deixando claro que bactérias adentraram na sua pele…
Nada disso importava nesse momento. Foco. Antes de se reerguer, bateu sutilmente nas pernas para verificar se a foto não havia caído.
— Ah, não… — Enfiou a mão dentro do bolso para ter certeza de que a perdeu.
O desespero mergulhou da cabeça aos pés, o semblante ficou perplexo. Aquela bendita foto era a égide que o defendia da desistência e do medo. O sumiço dela devia ser revertido.
Jogou-se na lama, passava a mão no solo como uma criança a procurar um brinquedo perdido. Cavou em diversos pontos, sujando sua farda com os resíduos de barro rubro molhado. Hum? Arqueou as sobrancelhas ao fitar suas palmas, meladas com sangue.
Ao olhar abaixo, notou que um rastro sangrento convergia-se com o bege do chão. Meneou a cabeça, procurando a sua origem. Quando avistou os escombros do desmoronamento, percebeu uma mulher soterrada, apenas com os dedos e cabelos para fora.
Aturdido, se aproximou dela e levantou-se, a perna trêmula dificultando o processo. Lançou para o lado os destroços acima do braço em uma tentativa desesperada para ver se estava viva. Apesar dos desejos, o coração de Lotus amolecia nesses momentos, por isso evitava olhar para trás.
Apanhou o pulso da mulher para sentir a frequência cardíaca, e… apenas confirmou que já estava morta. O jovem contraiu os lábios e, com delicadeza, colocou o braço dela sobre o solo. O fim de uma vida sofrida que só buscou aceitação divina.
Após soltá-la, visualizou uma ponta branca ao lado, em meio à lama. Ansioso, puxou-a com dois dedos e viu que era um papel que cabia na palma. Foi banhado em instantes pela tormenta e Lotus não teve dúvidas do que era.
— Mãe… — Um sorriso curto foi o suficiente para ele expressar o alívio em encontrar a foto, essa tirada alguns dias antes da viagem. Mostrava ele e uma mulher parda, ambos sorrindo na cozinha, tinham acabado de jantar. Fazia tempo que o jovem não a via daquela forma, e não deixou a oportunidade passar.
Ele tirou a regata — utilizaria essa apenas para amarrar o rifle — e ficou apenas com a jaqueta camuflada, que possuía um bolso frontal com zíper. Guardou.
Olhou para o cadáver no chão uma última vez. Se não tivesse o encontrado, provavelmente nunca mais veria a foto. Virou-se e seguiu adiante, sem o mapa que sumiu durante toda a loucura, de qualquer maneira sua utilidade havia chegado ao fim, decorou o trajeto.
Menos habitantes subiam a muralha adiante, muitos tiveram o acesso dela bloqueado ou foram esmagados pela casa. Lotus mancava, a estaca foi um péssimo contratempo. Entretanto, teria que dar um jeito de subir e chegar até o templo. Novamente: iria. Sacou as duas facas e manteve-se adiante, determinado a escalar.
(...)
O cheiro de lixo estava insuportável, a cor da água havia alterado com o passar do tempo — mistura de verde, marrom e vermelho. Mais corpos foram encontrados no caminho, mais casas foram destruídas pela chuva.
À frente, o espantoso acúmulo de milhares de resíduos orgânicos e recicláveis eram responsáveis pelo odor podre. E cobria a próxima muralha, de tão alta. A tormenta era incapaz de dissolvê-la, era absurdo como foi acumulado.
Os moradores vivos estavam ajoelhados e de cabeça baixa, com a chuva inundando suas nucas e as gotas d’água trespassando suas roupas péssimas. Suplicavam por misericórdia, por um tal de “Vital”; outros se referiam por outro nome: “Rudá”.
Devoção dogmática.
O jovem finalmente pôde retirar o rifle das costas. Fez uma bola com a regata encolhida e colocou-a num bolso da calça. De certa forma, a montanha de lixo o animou, pois poderia utilizá-la para chegar até a próxima rua, onde estava o templo. Agradeceu por calçar botas, seria quase impossível uma garrafa de vidro perfurar sua sola.
Pouco antes de subir, notou que os habitantes perceberam sua presença, e um a um meneava para fitá-lo. O temor pairava sobre seus olhares. O arquétipo militar transmitia medo e guerra. Sempre que algum exército aparecia nesse lugar, construções e sangue eram derramados.
Lotus reconheceu o pavor, era o mesmo olhar que tinha quando era adolescente. Entretanto, estava em uma posição diferente e alcançaria uma ainda maior para fazer o alto escalão do seu país pagar pelo pior. Ergueu a cabeça e, sem mais delongas, escalou a montanha de lixo.