Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 1: O Castigo do Céu Sombrio

Em meio às nuvens cinzentas, um avião militar voava. 

Sua pintura verde camuflada destacava-o e o ruído das turbinas ecoavam pelo horizonte, o chamado da guerra. O interior era espaçoso, o ideal para abrigar um batalhão. Sentados nos assentos na vertical, os soldados descansavam, todos armados e com equipamentos notáveis — como um cinto cheio de granadas e facões.

A maioria deles afundou no abismo do sono, um com boina esverdeada cobrindo os olhos. Foram longas horas de viagem, poucos transbordavam energia e, dentre esses, um se sobressaia.

Era jovem, pardo e de bigode ralo — clássico. Exibia um semblante determinado, disposto a executar sua missão como soldado. Igual aos colegas, portava um rifle eletromagnético, um escuro de engenharia retangular com uma linha eletrizante que cruzava seu centro. Não era um fuzil rudimentar.

Para ele, até mesmo bocejar seria um desrespeito consigo. Radical com seus sentimentos, logo se censurou. A tamanha importância que essa viagem tinha a ele, superou qualquer cansaço.

Lá fora, o céu chorava e rugia. A melodia da chuva incessante e do trovejar compuseram a trilha sonora de uma tempestade que se intensificava. Nessas circunstâncias, era normal haver alguns solavancos.

A turbulência surgia. O avião estava em uma área cruel, e a adentraria cada vez mais.

Parte dos soldados sonolentos acordaram ao sentirem o corpo tremer, entraram em alerta. Um deles levou um susto com o estremecimento e ficou perplexo ao ver o jovem à sua esquerda acordado, com a postura ereta e olhar arregalado. Estava rígido demais…

Ôh! Lotus! — disse ao cutucar. — Cê num dormiu não?

— Não tô com sono.

Lotus Sutol: um vodariano de físico robusto, integrante do exército do seu país; possui um cabelo encaracolado, que não costuma cortar com frequência, e o olho esquerdo verde e o direito azul — característica única dessa espécie.

Era angustiante, os solavancos pioravam e os tripulantes sequer viam o que acontecia do lado de fora, pois era um avião militar sem janelas.

Foi uma surpresa para o grupo quando uma passageira alta, de ombros largos, tomou alguma atitude.

Sentava nas primeiras cadeiras e não carregava arma, ainda assim seu corpo definido era intimidador, bem como seu sobretudo sombrio. De forma alguma, seus cabelos pretos e longos e seu rosto delicado refletiam uma imagem doce. Desconfiada do motivo dos tremores, ela se levantou com grosseria e, com a bota tratorada, caminhou até a frente da aeronave.

Dos fundos, Lotus a fitou atento… Tinha algo errado.

Uma porta cor de musgo separava a mulher da cabine dos pilotos, essa que ela invadiu sem hesitar.

— O que tá acontecendo?! — disse e apoiou as mãos no painel de controle.

— Senhora — falou o copiloto — não é recomendável ficar aqui.

O pedido entrou por um ouvido e saiu pelo outro. O espetáculo de luzes roubou sua atenção.

Eram muitos trovões. No entanto, as descargas não eram comuns: convergiam em um único ponto no céu, sugadas para lá. Naturalmente, houve espanto com o que viu.

A mulher seguiu as correntes elétricas com seus olhos e encontrou o presságio do fim dessa viagem, um futuro brutal. Ficou pálida diante do redemoinho de nuvens negras a liberar um brilho ofuscante; os relâmpagos corriam até o seu fundo como se buscassem abrigo e, reunidos, a catástrofe no centro acumulava cada vez mais poder.

— Preciso sair desse avião! — falou ao voltar correndo para a cabine.

Disparou até a traseira do avião, onde estavam os paraquedas. Seus instintos lhe guiaram para a sobrevivência, não se importava como parecia para os arredores. Muito menos de preocupar-se com eles. Apanhou a mochila e colocou nas costas, andou até a porta de emergência e ia pular, impedida de pular.

— Não. — Um homem careca a segurou pelo pulso.

Sua expressão admirável com rugas o concedia credibilidade e respeito desde a primeira impressão.

— Me solta, seu velho asqueroso! — bradou a mulher e retirou a mão pesada dele à força. — Esse avião vai cair em breve!

Dito isso, o clima dentro tornou-se tão terrível quanto o externo.

Brados de militares atônitos ricochetearam na cabine do avião. Era o esperado.

Embora os soldados fossem treinados para manter a calma em situações catastróficas, eles temiam pelas suas vidas. O instinto vodariano. A maioria queria entender a situação, porém qualquer explicação seria inútil, o desespero nunca os deixaria raciocinar.

Os mais sucumbidos no medo, correram para garantir algum paraquedas, mesmo que não tivessem para todos. Alguém tinha que botar ordem na casa.

BANG!

— Todos vocês! Em seus lugares! — ordenou a general do batalhão. Foi uma voz imponente, inquebrantável. A general tinha pele escura e cabelo curto.

Mesmo dentro da aeronave, ela atirou e conteve seus subordinados. Mostrou poder. Sua sorte era que a lataria era robusta igual ao aço e engoliu a bala.

O som do disparo foi doloroso, estridente por estar muito próximo. Queria controlar a situação de um jeito ou de outro.

Ela era o topo da hierarquia.

— Acham que tão no apartamento de vocês?! — continuou. — Sentem-se agora!!

— Essa lata-velha vai cair, sua louca! — gritou a outra mulher.

— Como é que é?! — Furiosa, a general andou até ela apontando o dedo sem parar. — Repete o que…!

De repente, uma explosão sacudiu o avião. Rodopiou para a direita; a asa foi obliterada. As luzes começaram a falhar e os tripulantes deslizaram para o outro extremo do lugar. Em poucos segundos, a iluminação se tornou vermelha, a última cor que veriam.

A aeronave despencava.

O céu alvejou os militares, o castigo divino. Eles foram lançados de um lado para o outro durante o rogar do alarme. Foi brutal. Atingir o oceano foi a única esperança, essa que se esvaía pelo tempo passando.

Sem opção, Lotus soltou seu rifle para tentar se segurar nos assentos. A energia que emanava antes para executar sua missão teve que ser direcionada para manter-se inteiro. O impacto com as laterais era de quebrar os ossos.

Em meio ao terror sonoro, uma vibração irritou os tímpanos do batalhão. Ela era imparável, seu volume aumentou gradualmente como um despertador que não obteve sucesso em cumprir a tarefa. Superou os apitos do alarme de emergência.

De todos os relâmpagos, o que viria era como nenhum antes.

Os pilotos tentaram contornar a situação. Falharam. A última coisa que visualizaram foi a claridade tomando suas visões.

Raios emaranhados irromperam das nuvens e destruíram a frente do avião.

(...)

Os destroços acertaram uma comunidade próxima. Uma chuva de meteoros. Casas de madeira foram atravessadas pelos detritos metálicos e as ruas nunca asfaltadas foram afogadas pelos mesmos.

A aeronave ainda tinha seu centro e traseira, mas já não podiam mais proteger ninguém. Ela ralou toda sua estrutura inferior quando caiu na periferia. Deixou um rastro de sangue e de habitações desoladas.

Uma fumaça preta saía dela e se misturou com as trevas das nuvens.

Alguns soldados tiveram suas pernas perfuradas pelo ferro dos assentos; outros fraturaram seus ossos, por pouco não perderam os membros; e, o resto, estava desacordado.

A um passo de abraçar a morte.

Lotus só deslocou seu ombro, gastou a sorte que teria pela vida. Ao ficar de joelhos, realocou o ombro e não aguentou segurar o grunhido de dor. Também estava ofegante, desacreditado por sobreviver a uma queda de avião. O que ele lhe faltava saber, era o quanto tudo ficaria pior.

Quando voltou a escutar com consciência, uma tosse forte ressoou pelo ambiente, era como a de um fumante. Balançava a cabeça o procurando e, perto, encontrou o homem careca que impediu a mulher de saltar, sem dúvidas sobre ser a mesma pessoa.

Ele prostrou o estranho no chão, o ensanguentou sem querer. O corpo dele sofria. Nas costas, usava um exoesqueleto cor de esmeralda. Irradiava, mas estava acabado. O jovem se aproximou para ver se poderia ser útil, mas as palavras do homem o impediram: 

— Ajude os outros.

Pouquíssimos tripulantes se levantaram, dentre eles, tinha a general. Suas pernas também expeliam um modesto brilho verde. Os soldados em pé foram os encarregados de seguirem suas ordens.

— Façam um bom uso da vida de vocês e salvem quantos puderem!

Imediatamente, eles começaram a trabalhar. Retiraram as estacas metálicas pregadas na coxa das vítimas, que gemeram em sofrimento. Chacoalharam os desacordados. O objetivo era sair com o maior número de soldados vivos.

Alguns feridos tinham condições de ajudar. Se tornou um trabalho em grupo, onde nada mais importava a não ser prestar suporte.

Lotus estava dominado pelo senso de utilidade. Queria salvar, queria fazer seu papel. Entretanto, sua cabeça ainda não estava no lugar. Agia de forma automática. Em um determinado momento, que arrancava um pedaço de ferro, sua mente lhe deu um estalo e o lembrou do motivo principal pelo qual embarcava nessa missão.

Um que nunca significou ser bom para os outros.

Rapidamente, desistiu de tentar puxar a barra e apanhou o pedaço dobrado de papel dentro do seu bolso frontal.

Que bom que ele não voou durante o caos.

Havia uma rota traçada no mapa que era exatamente dessa região.

— Estou mais perto do que nunca! — fitou a comunidade.

E ele realmente estava. Encontrava-se próximo de conhecer a razão do céu punir quem entrasse nessa área.

Elaborou um plano em seus pensamentos para seguir pela rota sem ser percebido. Não iria conseguir sair tão facilmente.

Ei! Tira esse troço da minha perna! — reclamou o soldado machucado.

As granadas na cintura não explodiram, eram projetadas para serem resistentes a impactos. O jovem pardo olhou ao redor para se certificar da posição que estava e, decidido, furtou o cinto com explosivos do ferido.

— O que você tá fazendo?!

Sem dar atenção, Lotus retirou a estaca com grosseria e partiu para o próximo alvo. Almejava ter explosivos até os dentes. Tentava ser discreto apenas retirando as barras das pernas dos colegas, sem conter o jorrar do líquido escarlate.

Se aproveitou de um dos rifles eletromagnéticos jogados durante a queda… Assim que terminou de montar seu próprio arsenal, ainda faltava um desafio: abandonar a aeronave. Caso a general o percebesse, iria sentenciá-lo a morte ali mesmo pelo crime de traição. Mas, como ele poderia trair alguém ou uma organização que sempre repudiou?

Lotus tinha segundas intenções. No fundo, uma ambição. Desde o começo, utilizou o exército como ponte para alcançar seu objetivo: ser poderoso o suficiente para também amaldiçoar as nuvens e derrubar aviões.

Com vários cintos na mão e a arma na outra, estava na hora de ir embora. Caminhou lentamente até o ponto mais seguro, fingindo ajudar os soldados mais adiante, apenas quando próximo o suficiente da saída, aproveitou que a general não estava armada, arrancou os pinos de todas as granadas. Correu muito.

Ei!!! — bradou a general, que foi direto pegar uma arma. Ela não hesitou em alvejá-lo.

A tempestade era gritante, encharcou sua roupa. Sem tempo a perder, jogou o cinturão com granadas na direção do avião.

Um sorriso maléfico emergiu no semblante dele, satisfeito por finalmente poder atrasar o exército do seu país. Embora a tormenta inquieta, o silêncio pré-explosão foi uma sinfonia aos ouvidos do jovem. Estava prestes a atrasar seu exército, mesmo que isso custasse a vida do batalhão.

BOOM!

Lotus protegeu seu rosto com o braço, seu escudo de pele. O zumbido assolou os ouvidos de todos e atrapalhou a general para atirar. A poeira no solo foi erguida e criou-se uma cortina de fumaça, da forma que o jovem queria.

Ele se sentiu bem, o primeiro dos muitos trocos.

Por mais que o mapa estivesse molhado, ele passou a divagar com pressa pela rota que planejou. Era só o começo, Lotus iria até o fim.



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