Volume 1 – Arco 1
Prólogo: A Chuva Incessante
Era um anoitecer escuro e chuvoso.
Sentado em cima de uma mureta de pedregulho, as águas da tempestade gotejavam pelo rosto enrugado do velho índio e corriam pelas feridas abertas do seu corpo. O braço direito — que parcialmente sangrava — apoiado no joelho, a postura cabisbaixa e os olhos caídos, simbolizavam sua angústia e dor. Mas, nunca sua fraqueza.
O som perseverante da chuva que atingia o solo da plataforma circular, não o acalmavam de forma alguma. O vento gélido esfriava gradualmente a temperatura de suas orelhas. Cada vez que bafejava, parecia que seu pulmão iria explodir.
Ruff…!
Os trovões que rasgavam os céus, iluminavam até a mais escondida verruga dos cadáveres que estavam atrás do indígena. O forte vendaval cortava sem dificuldades a sobressalente cota de malha dos mortos.
— Tudo isso por poder… Até quando continuarão agindo assim? — murmurou o idoso.
Cada corpo encontrado no local apresentava ferimentos distintos. Alguns exibiam lacerações que se estendiam da garganta até o abdômen, enquanto outros pareciam ter sido submetidos a altas temperaturas, o que lembra peixes de um pré-almoço. Outros ainda estavam notavelmente inchados, como se contivessem mais água do que o próprio mar.
— Por que, vodarianos? Por que continuam seguindo as ordens daqueles que querem meu poder?! — Ele olhou para a pilha de corpos. — De que adianta ser submisso… Olha agora! Vocês estão empilhados e fedendo feito porcos!
Vodarianos são os habitantes do planeta Voda — um mundo com oceanos, continentes, cadeias montanhosas e muita vida. Possuem muitas semelhanças com os seres humanos.
Para ele, era comum ficar reflexivo após uma batalha. Nunca entendeu o porquê de jovens soldados seguirem à risca as ordens de tiranos. Os questionamentos que fazia para si encaminhavam sempre para a mesma pergunta: “A credulidade em uma ideologia é mais importante que a vida?”.
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— Ele está lá em cima! Vamos pegá-lo!
Da comunidade em que o ancião habitava, ouviam-se passos de vários guerreiros que salivavam pela sua cabeça. Empunhavam armas futurísticas que disparavam projéteis de fogo robustos; e vestiam armaduras feitas de aço e terra.
Com pisantes sujos de lama e couraças submersas pela pluviosidade, os guerreiros rapidamente avançavam em direção ao idoso. Os passos velozes exalavam toda energia e comprometimento com a missão de executá-lo. O longo caminho não foi o suficiente para fazê-los parar.
Os moradores dessa periferia trancafiaram suas faces. Infiltravam-se em suas casas como se fossem fáceis presas; seu semblante entristecido entregava todo medo e ansiedade que uma vez sentira.
O lugar possuía casas esféricas feitas de pedra; estruturas em formato de espirais de madeira que interligavam com um poço infinito; ruas de terra mal cuidadas; e pessoas carentes, de aparência indígena.
Ao ouvir o volume das passadas aumentar gradativamente, o velho homem abaixa sua perna e, lentamente, se levanta. Cada articulação e ligamento do seu corpo era pressionado a todo instante em que se erguia. Os ferimentos em carne viva queimavam como um carvão em brasa. No entanto, mesmo com a fadiga desprazerosa, sua mente não o impediu de ascender perante as condições precárias que seu físico se encontrava.
De pé, recebia a ventania e os pingos de chuva de peitos abertos, como se estivesse a tomar um banho congelante. A brisa do vento desmembrava seu rosto enquanto as gotas da tempestade afogavam-o no seu sofrimento.
Enquanto repudiava o conglomerado de nuvens sem luz, captou um forte som de turbina. Era um grande avião que vagueava acima dos nimbo-estratos, com espaço para uma quantidade considerável de passageiros.
— Esse lugar não é rota de avião. Provavelmente, devem ser reforços. Não posso deixar que cheguem inteiros aqui antes de eu concluir a minha missão.
— Rudá… Seu velho maldito… — murmurou um combatente ensanguentado que o idoso creu que estava morto.
— O quê? Ainda consegue falar? — Ele olhou para o soldado.
— Por que continua protegendo a Pirâmide Vital da Tempestade?
— Ora, isso é uma pergunta retórica! — satirizou Rudá.
— Por favor… me responde… — implorou o soldado.
— Aargh… — Ele fechou os olhos com um tom de desprezo. — Porque é um dever meu, como um Vital.
— Mesmo que protegê-la signifique exterminar seus irmãos vodarianos?
— Nunca significou isso. Em toda minha vida, utilizei-a para defender a mim e ao meu povo.
— Não… o que vocês, Vitais, sempre defenderam, foi sua própria soberania. Nunca foram democráticos o suficiente para dar voz aos que se opõem a vocês.
— Pessoas como você invadem essas terras para extorquir e aniquilar o meu povo, tudo em prol de um objetivo em comum: Oferecer ao seu incontestável lorde o poder divino da Pirâmide Vital da Tempestade.
— Que ironia… — disse o soldado, ao dar uma risada sarcástica — As ações que você julga foram as mesmas que você realizou. No entanto, você nunca foi o escudo do seu povo, e sim de si próprio.
— Isso não é verdade!
Ao remoer as palavras ditas pelo homem na pilha de corpos, Rudá se esforça para conseguir alçar suas pernas e seguir até o legionário, que não conseguia mover um único músculo fora o da sua boca.
— Se não é verdade, por que estamos empilhados?
— Vocês colocaram a existência da minha gente em risco.
— E você colocou a existência da minha gente nas camadas mais profundas de Voda.
— Seu povo servia ao rei de todo esse império de exterminação!
— Me diga, Rudá: Se olhasse para suas próprias ações da mesma forma atenta com que avalia os outros, ainda manteria a mesma convicção em suas decisões?
As vozes de Rudá foram condenadas à prisão perpétua. Uma única resposta seria como procurar uma árvore em um vasto deserto. Caminhar até o enfraquecido indivíduo era o que conseguia fazer.
— Não dá para responder isso, não é? Vocês não são seres divinos, são apenas vodarianos abençoados que tornam esse mundo uma escória.
— Para… — Ele começou a avançar.
— A Pirâmide Vital dentro de você pode produzir a água, o trovão e as tempestades. Por que nunca saciou a sede dos mais necessitados?
— Para… Por favor…
— Por que não leva a luz aos estratos mais profundos de Voda?
— Para… Para…
— Por que nunca fez questão de tornar Voda um mundo em que nós vivemos, e não apenas sobrevivemos?
— Para!!! — Ele arregalou os olhos que brilhavam como um farol alto.
Com as mãos para o alto, manipulou o prana — energia única e presente no corpo dos vodarianos — e criou os trovões. Rudá carregou seu corpo com potência máxima e obliterou o homem e os corpos que estavam ali presentes, a reduzi-los a mera poeira.
Seu coração o sufocava a cada vez que tirava uma vida; a água da chuva mascarava as lágrimas que caíam de seu rosto; os olhos ficavam vermelhos como os de alguém que tem conjuntivite.
— Vamos, vamos, vamos!
A tropa que uma vez correra pela comunidade, dava estrondosos passos pela ruína para acessar a plataforma em que o senhor do trovão estava. Disparavam tiros vigorosos como balas de canhão nas paredes, que proferiram sons explosivos e intimidantes.
— Parece que as armadilhas que coloquei no primeiro andar não adiantaram muito… — Ele olhou para a entrada do palanque. — Terei de impedi-los com minhas próprias mãos.
Progressivamente a corrente giratória de água em seus pés começou a se expandir; o vento local rugia muito mais intensamente e seus braços irradiavam como lâmpadas fluorescentes.
— Seja lá qual for o desfecho dessa situação, não irei morrer antes da hora.
— Ei, Vital! — Eles batiam palmas enquanto entoavam. — Cadê você? Eu vim aqui para aniquilar e te ver!
O ódio dos raios o envolviam com o mais puro clarão. Com os braços estendidos, uma enorme fenda se abre entre os céus e Rudá canaliza com as mãos fechadas. A fissura atuava como um redemoinho que atraía a eletricidade para o seu centro, que formava uma esfera mística de bilhões de volts.
— Cumprirei o meu dever a todo custo!