Volume 1 – Arco 1
Prólogo: A Chuva Incessante
Era um anoitecer escuro e chuvoso.
Parado diante de corpos eletrocutados, o idoso indígena ofegava. Exausto. As gotas da chuva passeavam pelas suas rugas, verdadeiros túneis de pele. De forma alguma lavaram as feridas abertas, tampouco as curaram.
Ruff…!
A cada vez que inspirava, seu pulmão o condenava com o mais sufocante aperto. Sua juventude já se foi há muitos anos, não tinha mais condições de enfrentar um exército sozinho, e nem mais coração para sentir pena de cadáveres.
Os corpos jazidos possuíam ferimentos irreversíveis, dos mais variados tipos. Degolações, rombos sangrentos no abdômen, carbonizações… Um cardápio de causas de morte. No entanto, o idoso sequer se deu o trabalho de remoer a chacina que causou, seus olhos estavam fixos na periferia ao sul.
Os barracos de madeira empobreciam o cenário suburbano; as ruas de terra formavam um rio marrom entre as vielas. Era uma comunidade abandonada. Embora soasse inóspito, milhares de indivíduos se abrigavam ali. Um teto podre ainda é um teto.
— Lorde Rudá, descanse… — A voz velha e feminina ressoou do canto. — Você já fez demais por eles.
Rudá não deu ouvidos à idosa indígena, continuou a olhar para o lugar que vivera sua longínqua vida.
A idosa vestia um vestido de algodão branco, desgastado por décadas de uso; também protegia a cabeça com um cocar de penas azuis enquanto segurava um cajado de madeira para proteger a si mesma. Por outro lado, Rudá vestia apenas um saiote cinza, não se preocupou em esconder o corpo desenhado por cicatrizes.
Ele preferiu ficar em silêncio, mas, na verdade, sentia-se preso nessa opção. Seus pensamentos arrependidos faziam muito barulho, seria incapaz de escutar as próprias palavras. Se condenava por ter trago tanta dor à cada habitante dessa periferia, por mais que eles o chamassem de herói.
Os segundos se passavam em câmera lenta; a tempestade limpava as cinzas dos cadáveres fritados. Um belo clima para se martirizar.
— Tem razão — respondeu. — Ahrf! Eu já causei muita dor a eles…
Mas ainda não foi o suficiente.
Em meio aos brados dos trovões, houve o rogar da turbina de um avião militar surgiu. Seu som estridente vibrou os tímpanos do Rudá, o gatilho que precisava para acordar.
— Huh?! — Revirou a cabeça. — São… mais deles!
Ao fitar as nuvens negras, deixou a postura cabisbaixa para trás. Lidaria com o perigo. Não teve escolha, o corpo dele agia sozinho. Começou a correr na direção do seu lar, o Templo Piramidal.
— Espere, meu senhor… — suplicou a idosa.
— Saia! — Ele a empurrou.
O templo adiante tinha um formato de pirâmide e era envolvido por raios. Possuía um vão espaçoso na base, semelhante à entrada de uma caverna; acima, possuía uma estrutura retangular escura que ia da entrada até o topo da pirâmide, onde se localizava a estátua da máscara de uma divindade.
Sua mente havia mudado o foco dos pensamentos, mas o corpo não obteve sucesso ao acompanhá-la. Ele tentava correr, porém a perna ardia, queimava. O peito queria explodir; o coração não suportava bombear. A única ação que estava ao seu alcance era caminhar sob o sofrimento.
Mesmo assim, não ia deixar a dor vencer, não ia deixar a exaustão o derrubar.
Não ia parar.
— Nunca chegarão aqui! — grunhiu.
Momentos antes dele chegar a esse estado, soldados invadiram a comunidade em busca de um artefato ancestral capaz de controlar os oceanos e tempestades. Para o azar deles, Rudá portava o artefato consigo, e ele o defenderia a todo custo.
Finalmente entrou no templo, a chuva não iria mais incomodar. Era um espaço amplo, com feixes de luz azul que passeavam nos cantos do teto. O corredor era extenso, ficava entre dois pequenos rios que, ao lado deles, tinham estátuas de importantes vodarianos.
Vodarianos são os habitantes do planeta Voda, um planeta com oceanos, continentes, cadeias montanhosas e muita vida. São bastante parecidos com os seres humanos, porém — em sua maioria — possuem heterocromia.
As pernas do Rudá estavam bambas, o corpo pedia arrego. Nessas condições, ele ainda tinha um longo caminho pela frente. Seu objetivo era subir uma escadaria sombria no final do corredor, seu maior desafio.
CrAAak!
O estalo no joelho causou um choque no corpo inteiro. A essa altura, um resquício de adversidade poderia ser fatal. No mesmo instante, ele prostrou de joelhos e gemeu, seu físico o obrigou a dar uma pausa. Uma tosse seca liberou o sangue que estava guardado no esôfago, o que avermelhou o chão de pedra. Mas, o velho era resiliente, determinado em subir aquelas escadas. Tentou se reerguer, mas as pernas não respondiam. Elas morreram.
Totalmente deitado, a única opção que lhe restou foi se arrastar até as escadas e torcer para suas pernas voltarem à vida.
Dito e feito, se arrastou, impulsionando com os quadris indo de lado a lado na terra.
Ele almejava chegar em uma plataforma circular de pedra que estava no final do trajeto. Ela possuía um grande campo de visão para o horizonte e o mar, de lá seria possível agir de uma maneira mais segura.
O atrito entre a pele e o solo rochoso ralava seus preciosos membros, e ele teve de arcar com isso até chegar ao destino.
…
Chegou.
Acima, havia um céu fechado rodeado de trovões, e o mar adiante rugia igual a um leão enfurecido. Rudá arfava, sua pressão despencou devido ao esforço excessivo. Procurava o avião desaparecido com a visão turva.
Meneava os olhos. Ele procurava, nada encontrava. Até mesmo o som da turbina tinha se dispersado, os gritos dos trovões o engoliram.
Será que foi tudo uma ilusão? Será que sua obsessão em proteger o artefato ancestral e a comunidade o causava alucinações?
— Eu fiquei louco?… — Seu pulmão trabalhava arduamente.
De repente, a aeronave colossal surgiu em meio às nuvens prateadas. Era um verde fosco com asas de aço, com turbinas esmagadoras de tímpanos e uma presença intimidadora nos céus. Rudá teve certeza que haviam mais soldados ali, mas dessa vez ele não ia deixá-los aterrissar.
Com a reles energia que possuía, ele estendeu o braço — o máximo que pôde. O gotejar atroz atingia as juntas da mão calejada, também banhava todo o físico enrugado. Entretanto, mesmo no chão e debaixo da tormenta, ele não estava derrotado.
Apontou sua mão na direção do avião e, abruptamente, os céus se escureceram ainda mais; os trovões bradaram ainda mais. O anoitecer rápido como de um inverno, acompanhado de relâmpagos fazendo o papel de auroras boreais. Um redemoinho foi formado nas nuvens, e as correntes elétricas convergiram lá.
O terror se aproximava.
— Nunca irão conseguir.
Ele era o senhor da tempestade.