Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 10: Inscrições

BLÉÉÉÉÉÉÉÉÉM!

Era dia, um que começava às quatro da manhã; o jovem despertou no susto.

Teria que se acostumar com a nova vida.

Faria de tudo para dormir mais um pouco. O dia anterior exauriu sua energia, tinha dor aguda nas articulações e forçou demais os músculos. E o pior: acordou com torcicolo devido ao sono profundo em um chão gelado. O colchão da cela estava reservado ao Galdino, o único benefício por ter sido preso antes.

— Bom dia — disse o homem, depois bocejou. — Ah… Caramba, Lotus! Cê tem algum problema que eu num saiba?!

— Vários… — debochou. — Te conheci ontem.

— Tu encharcou nossa cela, rapaz! Eu já disse pr’ocê fazer suas necessidade ali no buraco!

O piso estava todo molhado. Não tinha culpa da Pirâmide ter lhe fornecido logo uma perna d’água. Preferiu manter-se quieto e utilizar essa vergonha como disfarce.

— Enfim… hum? — Galdino fitou a face do jovem.

— O quê?

— Seu rosto — falou e ficou em pé no colchão — já cicatrizou!

Lotus colocou a mão na bochecha e o corte, o extenso que Tardígrado fez, foi substituído por uma camada grossa de pele parda.

— Rapaz…! Como é bom ser jovem e ter um prana bom desse! — Galdino estava impressionado.

O prana — energia vital — é o principal fator de cura dos vodarianos. Capaz de recuperar o corpo de feridas ou doenças terríveis. Quanto mais novo o vodariano, maior seu estoque de prana.

A câmara dentro da cela se abriu, era hora do café da manhã.

— Pega meu chinelo ali, ôh! — Galdino apontou para o calçado próximo à grade. — Num quero pisar nessa porqueira não!

Na noite anterior, o jovem se entupiu com o máximo de “gororoba verde” que conseguiu. Saiu da mina exausto, suado, fedido e sem encontrar um único fóssil. Faminto, o gosto da comida já não importava mais nesse ponto. Ao menos, o Dom Tardígrado não estava presente nessa janta por cumprir expediente.

Enfim, Lotus e seu colega de cela desceram.

(…)

Ao chegarem, dessa vez o silêncio era o que predominava.

Um ar de tensão pairava sobre o refeitório. Os prisioneiros não ousaram fazer baderna corriqueira, a maioria já tinha se alimentado. Havia bandejas com resquícios de comida e os homens descansavam sobre as mesas.

Era estranho.

Dom Tardígrado ainda não estava no salão. Não existia fila para pegar a gororoba, apenas o cozinheiro, o cabeça de elefante com olhos de cobra, posicionado no centro do balcão com a prancheta e um formulário.

Mais presidiários chegaram, porém não foram se sentar, mantiveram-se em pé perto das suas respectivas escadas.

Após uma avaliação rápida, Galdino decidiu fazer o mesmo.

— Rapaz — cochichou — vamo ficá aqui. Tem alguma coisa errada…

Lotus arqueou as sobrancelhas. De um dia para o outro, a bagunça se transformou em um silêncio pesado, tinha que desistir de prever o que aconteceria.

De repente, Dom Tardígrado saltou para seu trono: o teto do balcão de comidas. Surgiu de repente e já era inacreditável como o lugar aguentava seu peso.

Quando os prisioneiros o viram, a reação foi diferente do dia anterior: foram tomados por ansiedade e mostraram sorrisos largos, horríveis em algumas aberrações. Sabiam o que estava por vir.

Galdino entendeu, logo ficou desanimado.

Dom iniciou seu discurso:

Ruuuuuuuuuuia! Pela cara de vocês, dá pra ver que nosso evento será fenomenal… Vejo olhares sedentos para serem carrascos imbatíveis e obterem a glória da vitória; vejo aberrações ardentes afins de adquirirem o poder de submeter os demais às suas ordens; e vejo a vontade abrasante de se tornarem soberanos!

Todos os prisioneiros ficaram de pé.

— O retumbar dos seus corações é alto e motivador… Haha! — Dom abriu os braços. — Que comecem as inscrições do nosso torneio: a Rinha dos Marginais!

AAAAAAAEEEEEEEE!

Gritos reverberaram no refeitório, pulos o estremeceram. A Rinha dos Marginais não era apenas um evento de ganhar influência para governar, era também o que dava um resquício de ânimo para lidarem com a rotina monótona e dolorosa. Naturalmente, fedia a sangue.

Imediatamente, os condenados fizeram uma fila em frente ao balcão. Nessa, tinha desde vodarianos comuns até os com cabeça de barata, tamanho de urso e oito patas grandes de aranha. A maioria sentia-se na obrigação de participar.

— Vem, Lotus! Vamo pra fila! — Galdino foi na frente. Tinha o costume de ir no embalo da galera para não ficar marcado.

O jovem o acompanhou mancando — que novidade. Em certos casos, era viável adotar a estratégia de “Maria vai com as outras”.

Os presidiários que não queriam fazer parte dessas inscrições, acabavam fazendo parte. Três dos soldados novatos na cadeia se esconderam debaixo das mesas, porém os famigerados robôs de cassetete obrigaram-nos a pegar a bendita fila à base da paulada. Talvez até o Raoni tivesse interesse nesse evento.

— Deixa eu adivinhar, é um torneio de luta? — perguntou Lotus.

— Sim — afirmou Galdino. — Os cara tá falando desse evento há…

— Novatos! — A voz do Dom se sobressaiu e cortou Galdino. — Ruuuuuuuuuuuia! Hoje eu estou de bom humor, portanto… é o dia de sorte de vocês! Farei uma breve explicação do que se trata a Rinha dos Marginais, embora o nome já diga muita coisa… Haha!

Ele andava de um lado para o outro, monitorando o fluxo da fila. Por mais que entendesse a animação dos seus subservientes, odiava bagunça. Contudo, os demais sabiam disso e só a sua presença era o suficiente para controlar.

Dom começou a explicação:

— A Rinha dos Marginais é um torneio de luta que acontece entre nós prisioneiros! Após as inscrições, este torneio terá duas fases: a “Fase no Submundo” e a “Fase no Céu”!

Cada vez que o jovem via o Tardígrado perambular, reparava aflito nas garras afiadas dos dedos grossos do monstro e na sua estatura física desproporcional ao resto da cadeia. Não iria ser cortado dessa vez, mas havia o desconforto onde foi machucado ontem.

Continuou: — A “Fase no Submundo” é a baseada em pontos, ou seja, os oito participantes que tiverem a maior pontuação passarão de fase! Terão de vencer seus adversários para isso… Ruuuuuuuuia! As disputas acontecerão aqui dentro da cadeia. Essa fase existe para separar os fracos dos fortes!

A fila estava progredindo, Lotus e Galdino estavam próximos de preencher o formulário.

— Já a “Fase no Céu”, bem… terão que passar pela do “Submundo” para descobrir! Haha!

Os que terminavam de realizar a inscrição iam ao lado esquerdo do refeitório. Alguns conversavam animados, a maioria com um idioma quase impossível de compreender.

Vários robôs com cassetete ficaram no fundo do salão. Ai daqueles que tentassem fugir…

Galdino preencheu o formulário e foi se sentar em uma das mesas livres. Finalmente, chegou a vez do ilustre Lotus Sutol. Estava de frente com o cozinheiro, esse que o intimidava com seus olhos de cobra.

Abruptamente, Tardígrado pulou para cima do balcão. Estava ansioso para ver o jovem assinando a participação, era quem queria massacrar. Ao fitar o macacão molhado, Dom não deixou barato.

— Se mijou de novo, moleque?! Hahaha! — gargalhou. De novo, todos os prisioneiros riram. — Vai ter que apanhar muito nesse torneio pra virar homem!... Assina logo!

Lotus fitou no fundo dos olhos do tardígrado. Embora achasse que ele era muito mais poderoso, manteve a postura ereta e punhos fechados.

— Parece que eu vou ter que… — Dom tentou falar.

— Eu não faço parte daqui. Não sou como vocês. Escuta…

Galdino arregalou os olhos e, por dentro, implorava para o jovem não ser mais imprudente na resposta. Lotus continuou:

— Não vou participar dessa merda! — Ele jogou a caneta para trás e no balanço do braço derrubou algumas bandejas do almoço, uma barulheira ensurdecedora.

Conseguiu.

Despertou o ápice da fúria do Tardígrado.

Dom desceu do balcão e meneou o braço para rasgar a cabeça do jovem. Dessa vez, não seria um simples arranhão.

— Como ousa?!

Prestes a decapitá-lo, as garras pontudas percorreram como um machado pronto para cortar uma árvore.

Reagiu, Lotus apertou uma delas até suas mãos calejarem. Empurrou-a para travar o braço do oponente e impedir que fosse partido ao meio.

— O quê?! — Tardígrado ficou ainda mais furioso.

Ele tentou forçar as garras para conseguir ferir o jovem, esse que suava e rangia os dentes enquanto tentava esmagá-las apenas com força bruta.

Nesse momento, Dom teve a certeza de que Lotus não era normal. Impulsionado pela raiva, desferiu nele um tapa com a parte traseira da mão, mandando-o para a lateral esquerda do salão.

Aargh!

Chocou com as costas na parede de pedra, próximo à porta da mina. Enquanto estava no ar, a parte do macacão que cobria sua perna d’água se soltou um pouco, abrindo uma janela de oportunidade para Dom visualizar e, claro, ele não perdeu essa oportunidade.

— Que merda que você é?! — gritou.

Com suas seis patas, correu até o jovem. No caminho, disparou um ácido diretamente da sua boca que ficava na testa. Era ácido gástrico de um corpo capaz de digerir até barras de ferro.

Abruptamente, dois robôs com escudos de aço se posicionaram na frente do jovem, absorvendo o dano corrosivo do golpe. O ácido escorria pela proteção impenetrável, incansável em sua tentativa de atravessá-la.

Todos os presidiários se distanciaram, apesar de também estarem com vontade de esmagar Lotus.

Robôs com cassetete tentaram conter Dom, porém bastou um único giro dos braços deles para mandá-los ao teto.

A pancada foi tão forte que os robôs desligaram no mesmo instante em que o carrasco vociferou:

— Levanta sua calça! Agora! — Ele continuou se aproximando dos robôs com escudo.

E o Lotus… levantou do chão.

Colocou a mão no ombro dos robôs para abrirem caminho e, inesperadamente, respeitaram sua passagem. Estava ofegante, com dor e numa postura corcunda. Mesmo assim, ergueu a cabeça e fitou, novamente, no fundo dos olhos do Dom.

— Seu moleque!! — O tardígrado disparou uma bola de ácido na parte do macacão que cobria sua perna d’água, desintegrando-o. O golpe se misturou com ela, e deixou-a exposta para todos os presidiários verem. Dom arqueou as sobrancelhas, sem palavras.

Em um piscar de olhos, a perna d’água “cuspiu” o ácido gástrico no solo rochoso antes que tocasse na carne do jovem. A fumaça da corrosão saia do chão. Ao presenciarem essa cena, até mesmo as maiores aberrações dessa prisão ficaram de boquiabertos.

BANG!

Subitamente, Dom foi baleado pelos robôs com duas pistolas.

Diversos robôs com as famigeradas armas de fogo desceram no refeitório para substituírem os com cassetetes. Possuíam calmantes como munições. Boa parte deles dispararam no Dom Tardígrado — até ele cair — enquanto o restante empurrava os prisioneiros de volta às celas. O horário do café da manhã acabou antes da hora.

Depois, em um ato de covardia, os dois robôs com os escudos apanharam Lotus e o arrastaram ao interrogatório. Ele tentou se debater para sair dali, todavia os braços metálicos dos robôs eram superiores à estrutura de carne e osso de uma pessoa.



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