Volume 1 – Arco 2
Capítulo 11: Ritual
Aargh!
O jovem foi lançado para dentro do interrogatório e chocou seu tórax contra o chão duro. Os robôs que o conduziram largaram seus escudos e o algemaram. Eram muito rápidos e eficientes, não teve chances de se defender.
Raoni, perto, esperou em pé pelo rapaz. Atrás dele havia outros dois robôs com as mesmas armas, seus seguranças.
— Na cadeira! — ordenou o dono da cadeia.
Lotus se sentou. Era impossível não se lembrar da primeira vez que esteve nesse lugar. Raoni bateu as mãos na mesa e começou:
— Caramba... você é do tipo que quer morrer cedo. Até peitou aquele tardígrado asqueroso! “Não sou como vocês”, uma piada. — Ele puxou a cadeira e finalmente também sentou. — E aguentou aquela pancada que ele te deu, me acabei de rir! Nem mesmo os Raobatons foram capazes disso, meus parabéns!
O jovem o encarava, desnorteado. Estava mais preocupado com seus pensamentos. Ofegante, tentava disfarçar que prestava atenção. A cabeça fervia, os braços tremiam; ainda processava tudo o que aconteceu.
Era irritante.
O carrasco continuou:
— Bom, antes de tudo, quero que saiba quem vai obedecer enquanto não estiver na minha frente: esses “carinhas” aqui atrás — apontou para os robôs com pistolas — são os Raoguns; os dois que te trouxeram, são os Raoshields; e os que derrubaram seu amigo Galdino são os Raobatons. Se não quiser acabar como ele, é bom gravar esses nomes.
Lotus não absorveu o que ouviu. Seus olhos ficaram arregalados, sua mente o condenava com medo do que iria acontecer nos próximos dias. Afinal, por que perdia tempo nesse lugar? Tinha assuntos de suma importância para resolver e mesmo assim, em poucos dias, foi obliterado.
— Ei! — Raoni se aproximou e chacoalhou o queixo dele. — Cê tá vivo?! Tua orelha funciona, hã?
— Ah! — Voltou à realidade. — Serei punido?
— Aff! — O homem levantou e pegou roupas penduradas na parede atrás. — Vista isso. — Jogou no colo do jovem.
Lotus recebeu um colar azul-escuro e vermelho; também ganhou um manto que ia da cintura até o joelho, azul-escuro igual.
Em seguida, suas algemas foram retiradas.
— Hoje é um dia sagrado pro meu povo — falou Raoni. — “Dia do sacrifício para Tlaleel.” Quando pegou a Pirâmide Vital da Tempestade, tornou-se o novo Vital e, também, o profeta de Tlaleel. Percebe que uma responsabilidade muito pesada é levada em suas costas? Você vai assumi-la e cumprirá seu dever.
— O quê?... Isso significa que vou fazer o quê?
— Irá descobrir.
Conhecido como o deus da água e da vida marinha, Tlaleel era adorado pelas pessoas nesta região de Voda. Aquele que assume o papel de Vital da Tempestade era designado a ser o profeta desse deus, considerado o escolhido para manter a paz, os costumes dos ancestrais e a chuva na região. Foi incrustado em sua alma.
O jovem seguiu a ordem e vestiu as roupas por cima do macacão laranja.
— Vamos — disse Raoni e, ao apontar a arma para Lotus, saíram juntos do interrogatório.
(...)
LAVE-NOS COM VOSSA CHUVA E ILUMINE-NOS COM VOSSOS TROVÕES!
A tempestade banhava o lado de fora, os trovões rogavam atrozes em uma manhã escura — coberta por nuvens negras — sobre a terra da chuva infinda, muitas vezes descontrolada.
Depois de abraçar o submundo na prisão, o jovem finalmente tomou um pouco de ar. Estava atônito — boquiaberto —, pois se encontrava dentro do estádio em ruínas, lotado por vodarianos rezando em uníssono.
Era um coliseu a céu aberto, com uma arquibancada extensa em círculo separada em quatro partes. As divisórias delas eram estátuas de enguia com seis braços musculosos, uma máscara repleta de dentes afiados e olhos vermelhos proeminentes.
O chão de pedra era esburacado, natural que sofresse erosão pelo uso ao longo dos anos. Quatro linhas azuis percorriam por ele em formato de cruz e conectavam-se às estátuas nas divisórias, as iluminavam com um azul-marinho brilhante.
As pessoas cultuavam Lotus, o novo profeta de Tlaleel. Meneava a cabeça assustado com a energia ao redor. Ecoavam as rezas dos devotos, ao mesmo tempo que os estrondos dos trovões rugiam e se tornaram um só com o grave capaz de vibrar o coração.
No centro do local havia um poço, um rochoso e rudimentar. Do seu interior, uma idosa levitou até a superfície com seu bastão empunhado. Vestia um vestido branco e de algodão, desgastado por décadas de uso. Também protegia a cabeça com um cocar de penas azuis. Era um rosto familiar.
ÓH! GUARDIÃ AZTECANTA! GUIE O ESCOLHIDO POR TLALEEL!
Quando Lotus a fitou, lembranças do embate vieram à tona. Pelo semblante amargurado dela, teve certeza que ela iria se vingar do disparo que deu no antigo rifle eletromagnético.
Aztecanta pousou.
— Silêncio! — Ela bateu seu mastro no solo e criou uma onda de vento envolta, responsável por rasgar algumas das vestimentas dos devotos. Todos se calaram.
Caminhou até o jovem, impressionante em sua postura ereta e sem dificuldades para uma senhora com mais de um século de vida. Direcionou seu mastro a ele, com a água da chuva o rodeando, veloz.
— Óh! Tlaleel! — clamou. — Hoje seus filhos conhecerão o seu novo profeta, aquele que abençoará os vivos e honrará os mortos com a graciosa tempestade!
DA ÁGUA VIEMOS, PARA ELA VOLTAREMOS!
— Em nome da sua misericórdia, o profeta lhe dará o sangue dos amaldiçoados! Suplicamos para serem purificados e libertados de todo o pecado que o mundo os induziu.
De novo, Aztecanta bateu o bastão no chão. Subitamente, ruídos de correntes a se balançarem foram ouvidos e, do poço, quatro jovens levitaram até a superfície.
TUM! TUM! TUM!
Tambores retumbavam no estádio.
A idosa conduziu os acorrentados até à sua frente apenas com os movimentos do cajado. Colocou-os lado a lado. Estavam encardidos, suas roupas sujas e faces entristecidas eram a prova de que aceitaram seu destino.
Lotus os reconheceu. Eram os mesmos novatos da prisão, colegas militares.
— Vital! — Aztecanta os alvejou com seu item. — Execute-os em nome do seu lorde!
MANDE-OS AO PLANO ASTRAL!
Em seguida, apenas a melodia dos batuques prevaleceu no ambiente. Todos ficaram quietos, pois a próxima ação seria do Vital.
Em meio a olhares sanguinários cegados pela fé, a pressão afundava seu interior. A bigorna da religião. Estava relutante, porém sabia o desfecho caso se recusasse a sacrificá-los. Embora fossem de outro batalhão, ainda eram seus iguais. E o pior: não tinham nada a ver com os seus motivos!
Desde o início, a aquisição do poder da Pirâmide Vital da Tempestade possuía a finalidade de lhe conceder força o bastante para derrubar quem comandava seu país natal. Almejava liberdade, desejava vingança. Entretanto, subestimou a trajetória que teria para sua terra, consequências de pensar apenas no resultado.
Mesmo assim, iria encarar o que desse e viesse.
— Não! — bradou. — Se querem sacrificar alguém, que tentem comigo! — Seu surto de coragem novamente se manifestou.
— Então você renega sua fé em Tlaleel? — indagou a idosa.
— Ele nunca foi meu deus.
Lotus cometeu o maior dos pecados: desonrar o “Dia do Sacrifício”. A plateia ficou paralisada, olhos e bocas arregalados. Perplexos.
— Não esperava menos de você — disse Aztecanta, e mirou seu cajado nos quatro novatos. As gotas da tempestade envolveram-se nele e formaram um redemoinho aquático que girava em uma velocidade altíssima.
Ela estava prestes a afogar os novatos em um ataque fatal. O jovem não era — não sabia ser — rápido o suficiente para conter o golpe. Mas, tinha que fazer algo. Tinha!
Apesar da sua inexperiência com a Pirâmide, ele a estudou antes de absorvê-la e tinha em mente que, em tempestades ou em alto mar, ele possuía vantagem geográfica. Só precisava usá-la a seu favor.
Obteve uma solução.
— Que Tlaleel lave as mãos com seus sangues. — Aztecanta disparou o canhão hidráulico formado do bastão.
KABOOM!
Um relâmpago irrompeu dos céus. Em uma velocidade incompreensível, Lotus se posicionou atrás dos quatro jovens. Movido pelo frenesi do heroísmo, pôs as mãos adiante ao corpo e recebeu o golpe.
A água foi sugada pelas suas palmas até o ataque se esvair. Conseguiu evitá-lo!
— Fujam! — falou. Os selecionados para o sacrifício correram enfileirados, a única maneira enquanto acorrentados.
Um prana poderoso se misturou com o prana natural do jovem, proveniente da bomba hidráulica da idosa. Sentiu um arrepio nos braços e uma adrenalina pulsante. Pura energia!
A força de um vodariano comum ou sobrenatural provém do prana interno. Todo o golpe conjurado reflete a quantidade de prana que o vodariano em questão possui, o estoque de prana. Quanto maior, mais poderoso será o golpe. Entretanto, se o destinatário tiver a capacidade de absorver o ataque, ele irá consumir o prana deste e, consequentemente, aumentar o próprio estoque.
Aztecanta partiu para cima. O menear do cajado era violento, amplificado por correntes elétricas. O jovem se protegia com seu antebraço, que tremia de dor a cada cajadada. Por sorte, a Pirâmide lhe concedia imunidade contra as impulsões elementais da adversária.
Embora ele fosse treinado para lutar corpo a corpo no exército, ainda lhe faltava experiência.
A idosa tinha esse diferencial.
Afundou a cintura do oponente e o lançou para trás.
Lotus caiu no chão encharcado e rolou, ralando seu macacão em meio a tormenta.
Ela não iria deixá-lo respirar. Antes dele parar, envolveu o cajado com o vento local e saltou com a intenção de perfurá-lo. Mas, o jovem se jogou para o lado a tempo. Ergueu-se e fugiu, a mancar. Acostumava-se aos poucos com a perna d’água.
Logo depois que ela pousou, começou a persegui-lo desferindo tacadas por onde ele ia.
— Você não é digno de seguir com o legado do Rudá! — bradou. — Eu sou digna!
Mesmo que a oponente em questão fosse idosa, era demais para ele dar conta. Ela era experiente, estender a batalha era sinônimo de derrota. Tinha que cessar logo o combate.
Durante o tempo em que corria, lembrou do vórtex que rodeou o cajado da Aztecanta.
Surgiu uma ideia.
Lotus continuou mantendo distância, e usou esse tempo para envolver seu braço com as gotas da tempestade. No entanto, foi descuidado e levou uma cajadada na canela, caindo em seguida.
Nesse mesmo instante, Aztecanta pisou em sua barriga e desferiu pauladas no seu rosto. Faria até o jovem nunca mais acordar.
— A sucessora do Rudá sempre fui eu!
Quando ela fitou o braço do Lotus, notou que a água o rodeava cada vez mais rápido. Um vórtex aquático feroz, poderoso como nunca viu.
Notou tarde demais.
SPLASH!
O jovem disparou uma bomba d’água na barriga da oponente, mandando-a pelos ares.
Foi lançada na direção do poço. Chocou contra a mureta de rocha e a atravessou, arcando com uma queda para as profundezas em seguida.
Bastava uma oportunidade para Lotus, ele a aproveitou.
E venceu.
Ofegante, se levantou para não baixar a guarda. Segundos depois, viu dois robôs do Raoni desarmados sobrevoando o estádio via propulsores a jato. Foram em direção ao poço.
Ouviu gritos de desespero. Devotos se atropelaram na arquibancada enquanto almejavam escapar do lugar que um dia foi sagrado. O profeta que eram para amar, temiam com o coração apertado. Sua presença, antes símbolo da esperança, transformou-se no presságio da destruição.
Nada disso o surpreendeu. O que — de fato — era anormal, era a subserviência incondicional de um povo carente e esquecido. Quase nada mais importava além do seu desejo, exceto uma coisa: sentia um frio na barriga só de pensar que poderia morrer antes de se vingar.
A plateia esvaziou bem, porém ainda havia uma quantidade considerável de pessoas. Estavam paradas. Preparadas.
— Hum? — Lotus semicerrou os olhos e arqueou as sobrancelhas.
Essas não eram dessas terras, portavam rifles e vestiam farda. Camuflaram-se na multidão.
— Moleque! Hoje você cai!
A capitã, a infame, não se esqueceu do subordinado rebelde.