Trindade Vital Brasileira

Autor(a): Vitor Sampaio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 16: Combatente Indigno

O cachorro-mosca avançou, a inundar suas patas com as poças sangrentas no chão.

Lotus não perdeu tempo. A água da perna envolveu seu braço e girou ao seu redor. Dominou a técnica. Saltou em seguida, alto o bastante para se sobressair ao oponente.

Disparou projéteis aquáticos no oponente e o atingiu. Mas, no máximo, o ajudou a se lavar. Foi ingênuo imaginar que teria mais chance no alto.

A aberração de três cabeças voou em sua direção num salto. Rasgava o ar com os dentes afiados pronto para abocanhá-lo. Confronto direto significaria sua morte.

O jovem ergueu os braços e disparou com os canhões hidráulicos para ganhar impulso e voltar ao solo.

Ao pousar, o moscachorro se jogou em cima do local onde estava, uma prensa de carne e osso. Lotus rolou para se esquivar, por um triz de ser fundido ao chão. Enfrentava um adversário formidável fisicamente.

Não esperava menos da sua luta de estreia.

Apesar de insistir em lançar esferas d'água, elas se mostraram inúteis. Algo estava errado; ele se sentia debilitado, e os vórtices em seus braços não giravam com a mesma velocidade de antes. Após usar uma parte significativa do estoque de prana para conter a corrosão do ácido de Dom Tardígrado, a força de seus poderes havia diminuído. O Vital da Tempestade estava em desvantagem.

O monstro parou e manteve a posição de ataque, um cão raivoso. Abriu as bocas assassinas lentamente, baba esverdeada pingava como as gotas de uma chuva ácida. Dos interiores, inúmeras larvas brancas foram vomitadas no solo. Criou um exército próprio.

Se arrastaram devagar ao Lotus, inócuas.

Ele tentou uma outra abordagem: entrelaçou os dedos à frente do corpo e uniu os redemoinhos, aaahhh!, e disparou uma poderosa rajada de água contínua na direção da cabeça principal do monstro, que ignorou o ataque ao voar.

Subitamente, as pequenas larvas se transformaram em irritantes moscachorros, com uma só cabeça e de tamanho menor. A multidão sobrevoou até o Lotus, desferindo mordidas incessantes. Foi obrigado a afastá-las com movimentos bruscos dos braços, atirando-as contra a plateia. Eles que se virem.

O inimigo principal se jogou ao chão, porém Lotus se lançou para o lado e desviou de novo!

Furioso, o monstro perseguiu sua presa, obliterando suas próprias crias pelo caminho com as patas titânicas. Mais sangue inundou o chão, mais ossos foram esquartejados. O jovem corria de costas, ao mesmo tempo que movimentava seu braço para se livrar das pequenas pestes. 

— Só sabe fugir?! — bradou o dono da aberração, o vodariano ordinário.

Uma sombra espaçosa cobriu Lotus, era a chegada do anoitecer. Quando menos percebeu, seu oponente estava prestes a dominá-lo.

Sai!

Em um ato de desespero, disparou projéteis d’água na barriga dele, mas eram fracos demais!

O inimigo o encurralou. Suas duas patas traseiras pressionaram suas pernas, enquanto as frontais esmagavam seus bíceps, uma bigorna com unhas. Seu nariz estava próximo de tocar o focinho das três cabeças, tais quais exibiam todo o horror de gengivas tatuadas por feridas passadas e olhos violentos pintados por um vermelho cegante, banhados por microscópicos pentágonos. Penetrava na sua alma.

Lotus foi tomado pelo medo. Acreditava ser um pesadelo, mas seus olhos estavam abertos demais para ser um. Tentou se debater, movido pelo instinto de fuga. Foi inútil.

— O que está esperando, Arranca Vísceras?! Acabe com ele e traz meu prêmio!

Dada a ordem, o monstro mordeu o abdômen do jovem e o remexeu no alto, raivoso. Saliva voou para todos os cantos ao mesmo tempo em que a presa bradava. Sentiu os dentes superiores e inferiores se tocarem dentro do corpo.

Não tinha jeito, era uma diferença descomunal de força. Durante o tempo em que seu cérebro era chacoalhado, memórias passadas vieram à tona. A cena do tirano governante do seu país estilhaçando seu pai repetia uma… duas… Por todos esses anos. …Milhões de vezes.

Jamais aceitaria morrer assim.

A água nunca deixou de envolver seu braço. Ainda na boca da fera, o movimentou de forma que acertasse em cheio o focinho. No mesmo instante, ela o soltou e jogou em uma das máquinas abandonadas do laboratório.

Aaaargh!

Rangeu os dentes após atravessar o vidro. Os cacos penetraram nas costas expostas e contribuíram para um sofrimento infindável.

Como de praxe, o inimigo de Lotus não o deixaria respirar. Saltou em direção à ele, preparando uma mordida fatal, uma que o levaria sem dificuldades ao seu estômago. A besta sobrevoou pela plateia, que se abaixou em resposta a um instinto de sobrevivência.

Dentro da máquina, o jovem apanhou firmemente um pedaço pontudo de vidro, embora abrisse um caminho de sangue pela sua palma. Morrer antes de cumprir seu dever era pior do que qualquer dor. O monstro sedento se aproximou.

Aúúúúú!

Quando pousou, a presa viu uma brecha e fincou a arma improvisada abaixo do queixo, que transpassou a cabeça central. Antes do corpo despencar sobre si, empurrou a lataria enferrujada da máquina e, com o auxílio de um vendaval, se propulsionou para o campo de batalha. Os resquícios de vidro no chão cortaram sua pele no fluxo do trajeto.

Rolou por sangue e corpos, só parou após chocar contra um finado largo e alto. Ninguém era páreo para com Dom.

Estava ofegante, crente de que havia acabado a luta. Uma única oportunidade e… a vitória?...

— O quê?! — disse o dono da besta. — Seu desgraçado! Olha o que você fez!

A loucura e sede de vingança o consumiu. Correu até o jovem, restavam apenas as próprias mãos para usar.

Lotus apoiava-se com as palmas no chão. Respirava rápido. Era impressionante como ainda conseguia se mover. De novo, um fluido azul e rosa deslizava pelas suas feridas, curando-as gradualmente.

O adversário normal pulou em sua direção! Acreditava que ia lhe debulhar e vencer o combate…

Fwoosh!

Próximo de alcançá-lo, o jovem movimentou o braço e liberou uma lufada no oponente. Não foi tão poderosa, porém ainda era o bastante para mandá-lo à parede.

Aaargh!

Bateu as costas e desmaiou. Insignificante. Lotus voltou a fitar o monstro, certificaria se realmente era vitorioso.

Hum? — Arqueou as sobrancelhas.

O inimigo bizarro virou as cabeças repentinamente, mas apenas duas, encarar atroz. Os pelos da boca estavam cobertos por um rubro-negro horripilante, a cabeça central foi devorada! Restaram apenas os miolos pendurados.

A água da perna do jovem pairou sobre seu corpo até alcançar os braços. A dor havia diminuído, tornara-se mais suportável, mas retornava mais fraco toda vez que se curava. Uma hora seria incapaz de enfrentar sequer um inseto.

O ideal era nunca parar de lutar.

O moscachorro voou até Lotus.

Vomitou as larvas enquanto sobrevoava, essas que caíram sobre a plateia; sua presa não perdeu tempo e logo as eliminou ainda no ar, com um jato aquático cortante.

A fera desferiu uma investida, porém o jovem se esquivou ao rolar sobre as poças carmesim. Dessa vez, não seria cético quanto à sua capacidade de sobreviver a um confronto corpo a corpo, partiu para cima!

Correntes de vento encobriram seus pés, em seguida deu um salto imponente. Turbinou um soco com a água a rodear seus braços e desceu até a fera como um meteoro. Mas… ela também sabia rolar.

Atingiu as poças sangrentas, que respingaram no seu macacão e rosto. Apesar da adrenalina, estava exausto. Ofegava em tensão, tentando recompor o ar que lhe faltava. Batia na porta do limite.

O monstro disparou até sua direção.

Lotus chacoalhou a cabeça e se livrou do cansaço enquanto a aberração já estava muito próxima. Não tinha para onde fugir. Sem deixar de lado a luta à distância, ele entrelaçou os dedos e liberou outra rajada aquática.

Foi inútil.

Uma cabeçada da besta foi o suficiente para afundar seu estômago e mandá-lo para a plateia! Ficou prestes a chocar contra Dom Tardígrado — seu maior pesadelo — esse que lhe deu uma barrigada para lhe devolver ao campo de batalha.

O jovem caiu com a tatuagem nas costas para cima.

Aaaargh!

No mesmo instante, a besta o prendeu e desferiu um arranhão profundo. Suas unhas soavam como machetes. Em seguida, suas duas cabeças começaram a devorar suas costas. Os grunhidos do cachorro faminto saciavam a sede de Dom, que se entretia ao ver o Vital da Tempestade sendo humilhado.

Pedaços do Lotus foram engolidos, arrancariam literalmente tudo do seu corpo.

Galdino cerrou os punhos, seu maior desejo era ajudar. Entretanto, se fosse contra o próprio acordo que propôs, seu colega de cela morreria de qualquer forma.

O jovem foi amordaçado; sucumbiu a uma dor profunda na qual não podia se livrar. O garoto que sentiu o autoritarismo na pele jamais teria a chance de se vingar. Infelizmente, era como o mundo funcionava.

Ele não se chamaria Lotus se simplesmente aceitasse isso.

Abruptamente, uma voz ecoou do seu interior: sangue! Era uma voz familiar, de alguém que matou para se tornar poderoso.

Sangue!

Rudá clamava dentro dos seus pensamentos, aqueles que estavam prestes a desligarem para sempre. Passava uma mensagem. O jovem arregalou os olhos e viu rastros de sangue levitarem. Vinham direto das poças, uma obra de terror. Movido pelo instinto dos Vitais, mergulhou as costelas da fera em uma enxurrada de sangue, levando-a direto para o chão! Finalmente a tirou de cima.

— Impossível! — disse Dom, em uníssono com a surpresa da plateia.

Subitamente, o líquido vermelho do chão cobriu suas partes devoradas. Pontos vermelhos localizados. Não as reconstituiu e sequer anularam o sofrimento, mas devolveu ao Lotus sua força, a de antes de curar suas feridas.

Ele se levantou, revigorado. Fitou as mãos e os braços, rodeados por laços rubis. De alguma forma, sentia que o sangue lhe nutria e que podia controlá-lo. Um vampiro de olhos azuis e verdes.

O moscachorro de duas cabeças o fitava confuso. No entanto, como a fera que era, não mediu sanidade ao avançar feroz contra sua presa.

Lotus recorreu à mesma técnica que utilizara, a de rodear seus braços com água. Dessa vez, foi com sangue que Dom Tardígrado derramou, a girar numa velocidade capaz de gerar energia elétrica. O oponente escandaloso preparou um gancho bucal letal enquanto o jovem bradou.

Suplicou para que os trovões o potencializassem; seus olhos mudaram das cores vivas para um branco reluzente. A fera ficou a centímetros de arrancar sua cabeça.

KABOOM!

Em um piscar de olhos, uma investida elétrica atravessou o adversário maligno. Lotus ficou coberto por sangue e resquícios de ossos quebrados. E a fera caiu, sem vida.

Caramba! — falou Galdino.

O silêncio prevaleceu por alguns segundos. O jovem estava paralisado, com um dos braços à frente do corpo. Não emitia nenhum barulho. Estava ali, parado.

— Cretino…! — disse Dom. Não conformado, disparou uma bola de ácido no Lotus. Todavia, Galdino aumentou a gravidade do projétil e o fez ir ao piso.

Os dois se entreolharam com os olhos semicerrados, Dom amargurava com uma raiva latente.

Aff… — cedeu. Pigarreou antes de anunciar: — Infelizmente, o Vital da Tempestade venceu o combate!

Ninguém comemorou. Na verdade, estavam aflitos do quão forte o jovem poderia ficar. Por fim, Lotus apagou, esgotado.

O primeiro vencedor.



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