Volume 1 – Arco 2
Capítulo 17: Desastre Natural
Era um lugar apertado e escuro, dominado pelas trevas.
O jovem estava encolhido, abraçado aos joelhos durante um sono profundo. Quem dera se fossem memórias de dentro do útero…
Uaaahhh!
Acordou numa tentativa falha de esticar os braços. Era indiferente estar de olhos abertos ou fechados, não enxergava nada da mesma forma.
Um odor de comida invadiu suas narinas, semelhante ao da gororoba verde. Finalmente descobriria de onde vem seu alimento rotineiro? Preferia que não…
Sobre seu estado físico: lidava com poucas dores, estranhamente bem após ser despedaçado por uma besta. Sentia-se com disposição, como se tivesse acabado de comer um lanche matinal. Perguntou-se se aquele embate não passou de um pesadelo?
Escutava conversas serem jogadas fora e um barulho contínuo que lembrava um grito.
Fez movimentos bruscos para sair dali, era claustrofóbico. A ideia de estar preso em um espaço minúsculo só não era pior que a de ser enterrado vivo.
De repente, parou de se debater. Hum? Uma branda luz incandescente tocou na sua perna, uma fresta do barril em que estava preso foi aberta.
— Apenas eu falo e você não responde — disse uma voz ríspida.
Era familiar.
— Para de se mexer, cê vai sair daí no momento certo. Em breve, vou virar esse barril e você se arrasta até sair do balcão.
Fechou.
Lotus franziu a testa. Sua mente foi inundada com uma miríade de perguntas. Mas, independente dos questionamentos, não havia outra opção a não ser esperar… Talvez estivesse complacente.
O brado constante que ouvia ficou mais alto e desesperador, cessado após Dom Tardígrado mandar o responsável se calar e jogá-lo na parede. Típico do rei, imaginou.
O barril foi virado e aberto na horizontal. Era a chance de sair.
— Seja rápido — ordenou o ajudante de fuga. Quando o jovem se arrastou e o fitou, notou que era o mesmo monstro que servia sua comida quase todos os dias: Glaumanter. Vestia seu icônico jaleco de cozinheiro. O que levava um sujeito como ele a lhe ajudar? Isso era assunto para depois. Teve foco.
Martelou o chão com os punhos cerrados, com cautela para não fazer barulho. Passou debaixo de uma estante sob várias bandejas sujas — era hora do almoço — além de cruzar com um Raobaton que o encarava friamente, porém só fez isso. Lotus acordou com o pé direito.
Finalmente saiu do balcão das comidas. Ainda deitado, viu um homem com cabeça de gaivota prostrado na parede, coberto de hematomas; perante o temível Dom e seus capangas. Mostrava um semblante desesperado, com o bico aberto a ofegar.
— Vocês não entendem! — dizia com uma voz fina e áspera. — Um tsunami está vindo nos matar!…
— Quieto! Ficou doido depois da surra que eu te dei ontem? Nem deu vontade de sujar minhas mãos com seu sangue! Hahahahaha! — gargalhou junto com seus devotos. Às vezes, mantinha seus adversários vivos apenas para humilhá-los depois.
“Assim fica fácil, seu cretino… Chutando cachorro morto!”, pensou Galdino, de braços cruzados.
— Não! Não é isso… — O homem-gaivota fitou ao lado e, por coincidência, avistou Lotus no chão, que levantou e tomou os holofotes. Apontou. — Ali! Ele pode salvar a gente dessa!
Dom abriu um sorriso maléfico ao avistá-lo.
— Ruuuuuuuuuuuia! Olha só quem voltou! Parece que o Raoni cuidou direitinho de você… ganhou até uma cintura d’água!
Lotus arqueou as sobrancelhas, não se lembrava de ter sido levado ao Raoni… estava desmaiado, afinal. Ao olhar para sua cintura, percebeu que o local que o moscachorro devorou foi reconstituído por água, assim como sua perna. Nunca foi tão fácil ganhar uma prótese.
Os demais prisioneiros o olhavam atônitos. A última cena que lembravam era a de quando ficou encoberto por sangue, ao mesmo tempo que controlava-o para massacrar seu inimigo. Com certeza uma imagem horrenda. Mais um medo que tinham que lidar.
Dom olhou ao redor e fechou sua expressão. Era ele o detentor do posto de arauto do medo, nunca aceitaria dividir o pódio.
— Parem de conversa fiada! — vociferou o homem-gaivota. — O Vital precisa nos…!
Pela boca na testa, Tardígrado lançou uma esfera de ácido na sua cabeça, desintegrando-a. O executou sem remorso, enfatizou quem era que mandava. O jovem fechou os olhos e Galdino colocou a mão na testa. Era inconformante a maldade do monstro.
— Ruff… — bafejou Lotus. — Ele falou de tsunami, talvez ele estivesse sentindo a vinda de um. Nesse caso…
— Shiii! — Dom levou o dedo indicador até a boca. — Não estou de muito bom humor hoje, moleque Vital. Portanto, fique em silêncio e coloque-se no seu…!
De repente, uma sirene começou a rogar, alto o bastante para acelerar as batidas dos corações alheios. Era o presságio de um desastre natural.
— Alerta de tsunami! Voltem para suas celas! — disse Raoni pelos alto-falantes escondidos no refeitório. Imediatamente, seus servos robóticos adentraram no salão e começaram a conduzir os presidiários.
O jovem correu até o Galdino. Estava próximo de se acostumar totalmente com a perna d’água.
— Escuta. — O rapaz avançou. — Eu sei que posso parar um desastre natural. É a função designada aos Vitais, não é?
Antes de embarcar na missão militar, Lotus havia estudado os poderes e capacidades que a Pirâmide Vital da Tempestade concebia. Entretanto, por mais fundo que navegasse, só conseguia encontrar que ela era capaz de absorver todo e qualquer tipo de desastre natural, além de poder controlar qualquer líquido, gás e energia.
Para essa situação, era o suficiente.
Continuou: — Cê sabe se tem alguma maneira de sair daqui?
— Olha… se eu soubesse, já teria vazado daqui há muito tempo! Hahahaha! — riu Galdino. Era ótimo em manter um bom humor em situações difíceis. — Que pergunta é essa, rapaz?!
— Aff… Ah! A “área de tempo livre”!
Lembrou de quando havia entrado na lá. O teto possuía cobogós quadriculados, que recebiam a luz, a chuva e o escorrimento da sujeira urbana. No fundo, esse salão não passava de um bueiro.
Teve uma ideia.
Correu até o local desejado. No caminho, um Raobaton tentou lhe apunhalar; simplesmente desviou. De praxe, utilizou sua famigerada técnica de envolver os braços com água.
Quando chegou, se posicionou abaixo do cobogó, entrelaçou os dedos e nele alvejou sua bomba aquática, tentaria abrir a única saída para o mundo afora ao som da sirene cruel.
Falhou.
Em instantes, Raoshields e Raobatons avançaram para encurralá-lo e dar uma boa lição. No entanto, o jovem resistiu e os atacou com uma lufada aquática! No entanto, escudos de aço a consumiram.
Prestes a ser expurgado, os robôs de repente foram puxados para trás.
Hum?!
— Vambora, Lotus! — bramiu Galdino, com as mãos à frente do corpo a atrair os corpos metálicos. — Me prova que tudo tá valendo a pena!
O jovem assentiu. Vivia um dia de sorte.
Disparou inúmeros projéteis e rajadas d’água. Metralhava os pequenos quadriculados, na esperança de que iria destroçá-los.
— Ruuuuuuuuuuuuuuia! — rugiu Dom, ainda no refeitório. Cinco Raobatons o conduziam. Era um dos últimos prisioneiros a voltar para a cela, porém sua curiosidade ao ver o brilho roxo nas costas do Galdino se manifestar o desviou do trajeto. — Quero participar dessa brincadeira! — Girou e afastou os robôs com sua cauda primaz.
— Ah! Não! — Galdino posicionou um dos braços na direção do Dom e passou a aumentar a gravidade, de maneira que ficasse fincado no chão. Diminuiu a força que atraía os Raobots, consequência de duas tarefas simultâneas. Rangia os dentes. — Vai logo, Lotus!
O jovem teve sucessivos insucessos. Insistia na mesma técnica que dava errado tanto em combate quanto fora. Teve que recorrer a um ultimato. É agora ou nunca.
Um vendaval dançou sob seus pés; o redemoinho rodopiava implacável. Aaaaahhh! Saltou!
Decolou igual um foguete, um que iria romper a barreira que o separava da liberdade. Flexionou o cotovelo e, em seguida, desferiu um infame murro aquático.
CRAK!
Destruiu os cobogós e saiu da prisão.
— Boa! — disse Galdino. Cessou o campo gravitacional de atração e repulsão.
O céu era um cinza-claro, em um período vespertino chuvoso. Estava frio…, mas o jovem sequer se importou. O ar puro tocava na sua pele parda e as gotas o banhavam — algo que não fazia desde que embarcou na missão.
Lotus pousou em uma rua larga, com três bifurcações.
Notou que o estádio em que lutou estava atrás, a poucos metros. Tinha uma coloração marrom clara, com inúmeras rachaduras decorrentes de erosões e falta de manutenção, em ruínas.
A sirene ressoava muito mais estridente no lado externo, talvez fosse para lembrá-lo de que saiu da prisão com uma missão. Entretanto, a ideia de não voltar era tentadora…
Foco. Tinha uma dívida com seu colega.
Pensou em ir ao litoral cessar o tsunami, porém estava cercado por prédios mal cuidados. Rachaduras estavam expostas; possuíam um aspecto modesto. Não eram tão altos.
Cria que o templo onde lutou contra Rudá estava próximo. Se o encontrasse, chegaria rápido ao litoral e executaria sua tarefa. No entanto, o tempo era escasso. Não agiria adequadamente sem uma visão clara do tsunami. A única solução que imaginou foi subir em um lugar alto, tipo o terraço de um prédio.
Os que via aparentavam ter poucos andares, mesmo assim demoraria o bastante para subir e o tsunami afogar a cidade.
Caramba!
Surgiu uma ideia.
Correu em direção ao prédio à direita, um bege e de no máximo oito andares. Aproveitou o vento do ambiente para impulsionar um salto, alto o bastante para colocar os braços à frente do rosto e passar da metade do prédio. Quebrou a janela e invadiu o apartamento.
Os cacos de vidro perfuraram suas mãos e antebraços, além de sujarem o abrigo em questão.
O jovem se levantou, apressado. Estava em um apartamento simples: caiu no chão de madeira da sala de estar, com um sofá grande e uma televisão; seguiu em frente, passando por uma bancada diante da cozinha e a mesa de jantar; ao virar para direita, encontrou uma porta aberta por coincidência.
O lugar estava vazio, os moradores fugiram ao terraço pela escada de emergência. Também fez. Ao sair, tinha mais três apartamentos no andar, todos abandonados. Entrou na escada de emergência e subiu rapidamente. Gritos e súplicas por misericórdia ecoavam na escadaria cinzenta; passos reverberavam dos andares inferiores.
As escadas acabaram, achou a porta do terraço… derrubada. Os residentes a arrombaram para conseguir chegar ao terraço, que por algum motivo não era permitido o acesso.
Saiu.
Obteve uma ampla visão da cidade, inundada desses mesmos tipos de prédio. Teve a sorte de subir em um dos mais altos.
Escutou choramingos e rezas, todos se escondiam na lateral da estrutura que abrigava as escadas. Preferia não dar as caras.
Ao olhar para o litoral, seu queixo caiu.
Quê…?!
O tsunami era, com certeza, uma montanha aquática que tomaria toda a cidade. Era colossal, a verdadeira fúria do oceano. A comunidade se tornou minúscula; o templo se tornou insignificante.
Os moradores desse prédio seriam, de fato, engolidos pelo desastre natural.
Lotus finalmente chegou onde precisava. Era sua hora de bancar o herói…
— Como vou parar isso?!...
…ou não.