Volume 1 – Arco 2
Capítulo 15: Mais a Fundo
BLÉÉÉÉÉÉM!
Era madrugada, quatro da manhã.
O jovem levantou os braços e bocejou ao esticar os músculos — lesionados devido aos dias de árduo trabalho e dormir no chão gélido — após uma curta noite de sono. Galdino fez o mesmo, revigorado após descansar sobre seu colchão, era o verdadeiro privilegiado.
— Ae, Lotus! — Seu olhar foi direto na perna d’água, totalmente exposta. Não havia mais o que esconder. Em seguida, o fitou. — Sobre o que cê me contou… cara! Tive até pesadelo! Ainda não me desce que cê passou por essas coisa!
— É a vida, né? — ironizou Lotus.
— Infelizmente — respondeu. — Enfim, ontem já comentei tudo o que eu achava. Bola pra frente. Pelo menos cê tá de pé e… olha só! Até matou meu pai! O que a vingança não faz…
— Espera — disse o jovem e franziu a testa —, essa história é realmente verdadeira? Tipo… você é realmente filho do Rudá?
— É óbivio que eu sou! — retrucou. — Por que eu inventaria uma coisa dessa?
— Ah… — Lotus desviou o olhar. — Pensei que tinha dito isso só pra dar uma boa desculpa pra me deixar vivo.
— Hahaha! — gargalhou. — O mundo não gira ao seu redor não, rapaz!
— Huh… — Fitou Galdino de novo. — Não tem vontade de vingá-lo..?
A câmara na cela abriu após um ruído sobressalente. Certamente estava enferrujada. Hora da gororoba da manhã.
— Finalmente!! Vamo comer! — Galdino entrou na câmara. Seu estômago reclamava silenciosamente pela falta de comida, assim como o jovem indagava-se silenciosamente sobre a postura “pacífica” do colega de cela, afinal, entendia bem o sentimento de ter o pai assassinado.
(...)
De volta ao refeitório, o distante de opulência. As aberrações, com suas bandejas em mãos, famintas.
Para Lotus, o dia anterior foi o último dia de punição por se atrasar no trabalho, o que significava que trabalharia menos hoje. Ai dele se atrasasse novamente… Foi impossível não reparar na entrada da área de tempo livre, reconstruída pelos presidiários. Entretanto, não era mais uma porta de aço comum: era um primaz vão curvado, com bordas de tijolos sombrios. Acima, estava o título “Rinha dos Marginais”, escrito em letras grandes e brancas. Simplório, mas chamativo.
O jovem ficou admirado com a obra, contrastava com o terror e a escuridão desse lugar — e de quando foi arremessado por ali. Como que esses prisioneiros animalescos foram capazes de executar esses detalhes? Não podia subestimar ninguém.
— Caramba… os cara tá empolgado pro torneio, hein?! — falou Galdino ao também fitar a obra.
Além de ser uma arte de roubar a atenção, tinha a adicional função de baixar a guarda do Lotus.
Phfpt!
Dom Tardígrado não perdeu a oportunidade. Pela boca na testa, cuspiu ácido gástrico nas costas do jovem.
Aaaaaaaargh!
Assustados com o grito, todas as cabeças menearam para o estopim de um confronto. Uma plateia de condenados.
— Ruuuuuuuuuuuuia! Vital! — Dom perambulou até o alvo, enquanto se satisfazia com os bramidos de sofrimento. — Olha só! — O líquido cor de musgo e viscoso escorria pelas costas do Lotus, a fumaça da corrosão subia como de uma panela de pressão. — Meu ácido já digeriu até barras de ferro, mas, você, ele não conseguiu! Hahaha!
A parte traseira do macacão foi desintegrada, deixando as costas do jovem quase em carne viva. No entanto, um fluído azul e rosa deslizou pela ferida: era o prana de seu estoque exacerbado se manifestando, utilizado em larga escala para curar os ferimentos. A energia fluía suavemente, fechando as lacerações e regenerando a pele com rapidez impressionante.
Galdino cerrou os punhos e — novamente — o brilho roxo e triangular reluziu abaixo da sua nuca, preparado se alguém ousasse em quebrar o acordo sobre a vida do seu colega de cela.
Quando o ácido finalmente parou de escorrer, revelou uma tatuagem azulada nas costas do jovem. Era o famigerado rosto que ele encontrara ao longo de sua jornada, com olhos proeminentes e dentes afiados à mostra. Atrás desse rosto, seis braços musculosos emergiam, com as mãos abertas.
— Hum? — Tardígrado semicerrou os olhos. “É a face de Tlaleel, a marca dos Vitais da Tempestade.”, pensou.
Durante esse drama, Lotus se recusou a cair no chão, embora estivesse envergado.
Dom continuou:
— Por causa do furdúncio que você fez lá fora, a “Fase no Céu” da Rinha dos Marginais não poderá ser no estádio.
Após escutarem, os presidiários ficaram boquiabertos.
— Ruff! A “Fase no Submundo” começaria hoje… porém você foi o responsável por Raoni ter barrado! — Os monstros envolta vociferavam. — Silêncio!... Mas, nem tudo são canivetes, e eu já dei um jeito nisso.
Abriu um sorriso de canto.
— A “Fase no Céu” será migrada pra cá, enquanto a “Fase no Submundo” acontecerá no local onde nós, monstros, fomos produzidos.
A tensão no clima… Os prisioneiros arregalaram os olhos, principalmente os bizarros. Era um lugar que não gostavam de se recordar — isso quando se recordavam. Contudo, relevaram, pois o torneio que dava o mínimo significado às suas vidas iria acontecer de um jeito ou de outro.
— Glaumanter! — chamou Dom. — Retire os barris de comida daí!
Mesmo que fossem pesados, o cozinheiro também tinha uma força sobre-vodariana. Removeu cada um dos barris de gororoba e deixou um espaço aberto, um vassalo leal ao rei Tardígrado.
— Raoni! — Dom fitou as câmeras de segurança. — Perdão pelo prejuízo!
Após dizer isso, ele saltou até o teto, estremecendo todo o salão. O imponente estava no topo, e os demais presidiários estavam nos seus devidos lugares: abaixo.
TRRRRUM!
Caiu como um meteoro no chão e destruiu o piso. Despencou até o andar debaixo, junto com os destroços. Os Raobots sequer impediram, seria apenas mais prejuízo. Toda a estrutura da cadeia vibrou, mostrou sua verdadeira força.
Os prisioneiros ficaram perplexos — mesmo que o conhecessem. Era uma discrepância descomunal de poder.
A fumaça dos escombros se esvaiu pela fenda aberta, chegou a vez de todos pularem ali.
— O que estão esperando? — praguejou Dom, lá debaixo. — Pulem logo! Se não conseguirem sobreviver à essa queda, não são dignos de participar da Rinha dos Marginais!
Apesar de relutantes, não tinham outra escolha, era obedecer ou morrer. Se direcionaram ao buraco.
Lotus ficou ofegante, com as mãos nos joelhos. Suas costas ardiam igual a pele de um boi ao receber uma marcação de ferro quente. Entretanto, não sobraram os resquícios visuais da corrosão, seu prana conteve o pior. Aprimorava-se a cada dia.
— Vamo lá, rapaz…! — Galdino arqueou as sobrancelhas.
— Eu vou matar ele! Ahrf! Eu vou matar ele! — murmurava rapidamente o jovem. Sua raiva por Dom Tardígrado crescia, uma massa de ódio que se expandia no cérebro.
— Deixa de palhaçada! — Galdino apertou seu pulso e o arrastou até os portões do inferno: o temível subsolo da cadeia.
Monstros e indivíduos comuns se jogaram. CRAK! Ruídos de ossos a quebrar reverberavam do limbo. Dom ficou parado, esperando receber uma chuva de condenados. Os pesados que despencaram em cima dele, foram transpassados pelas suas garras; os mais leves, eram simplesmente esmagados pela sua cabeça dura. Ficou banhado por sangue.
Ninguém podia detê-lo.
Boa parte dos vodarianos normais se agarraram no homem com corpo de gorila e patas de elefante, benevolente ao permitir carona. Sobreviveram.
Lotus e Galdino ficaram a um passo da queda. O jovem ainda estava aturdido, seu coração retumbava de forma que o som ao redor se abafou.
— Ei! — Galdino apertou seu ombro e o chacoalhou. — Se não conseguir chegá lá embaixo, nunca será capaz de pegá o assassino do seu pai. É tudo ou nada! — Ele pulou.
Durante o trajeto, o brilho roxo e triangular reluziu abaixo da sua nuca. Diferente dos outros trogloditas, teve uma queda cautelosa, reduzindo a gravidade do seu corpo e caindo lentamente, um astronauta a visitar um satélite natural.
Chegou ao subsolo, com classe. Pousou nos lagos de sangue, junto com a minoria dos que pularam.
Restou Lotus e outros presidiários no refeitório. Alguns tentaram fugir, mas os Raobatons eram uma parede impenetrável, obrigando-nos a saltar.
Após balançar a cabeça, o jovem voltou à realidade e teve uma ideia. Era tudo ou nada para sobreviver nesse local. Envolveu os braços com água, rodopiava-os.
Pulou.
No alto, entrelaçou os dedos e as correntes aquáticas braçais se convergiram. A tática de sempre. Mirou o golpe no Dom Tardígrado, não tinha intenção de só sobreviver. Disparou.
Ao perceber o ataque, Dom saltou para trás. Esquivou-se! Entretanto, Lotus já contava com a falha. Não custava tentar.
A implacável bomba hidráulica alvejou o solo e, no contra-fluxo, fez surgir uma enorme coluna de água. Em um movimento ágil, Lotus ajustou a trajetória da queda, preparando-se para o impacto iminente. Submergiu na estrutura líquida, que se moldou perfeitamente ao seu corpo, absorvendo uma parte da energia da queda. Entretanto, não saiu ileso dos ferimentos: afundou o cóccix no solo, mas não se espatifou. Sobreviveu!
A coluna se dissipou, misturando-se com as poças rubras e inundando os escombros. Um lago de sangue.
O odor de esgoto logo invadiu suas narinas, que arderam e coçaram. Quando se ergueu, visualizou um ambiente deplorável: era um laboratório espaçoso abandonado, irradiado por uma branda luz bege. Máquinas quebradas poluíam o arredor, enquanto um córrego estreito banhava-as com uma água verde. Além disso, havia poucas celas — provavelmente — abandonadas, com as grades tomadas pela natureza.
Menos da metade dos presidiários sobreviveram à queda. Apenas os mais trogloditas e aproveitadores foram capazes. Processo seletivo e tanto.
— Muito bem! — parabenizou Dom. — Agora… afastem-se e formem um círculo, pois a primeira luta da Rinha dos Marginais irá começar!
Quando o jovem decidiu acompanhar a manada, Tardígrado o segurou. Era incrível como ele cabia na palma da mão do monstro.
— Você fica, Vital — disse, sedento para esmagá-lo. — Será o primeiro a lutar. Ah! E nunca mais tente me atacar daquela forma! — Ele o apertou até as articulações contraírem. Lotus agonizou com um ardido escaldante, suas costas ainda choravam com as sequelas.
Dom o soltou e andou até a plateia. Seu cabelo e barba estavam ruivos, manchados pelo sangue dos que caíram acidentalmente.
Lotus ficou sozinho no improvisado campo de batalha.
Seu oponente apareceu.
Hum?
Era um vodariano comum, branco e no máximo um pouco mais alto. Vestia uma regata branca, bermuda verde e chinelos. Estava estranhamente tranquilo, mesmo sabendo que iria enfrentar o Vital da Tempestade. O jovem era mais subestimado que um semelhante normal.
AU! AU!
Um latido perspicaz ecoou pelo laboratório.
Ao fitar a direção, Lotus viu que havia uma cela com as grades mordidas… não, comidas. GRR! A aberração rosnava feroz.
— Fiu-fiu! — assobiou o adversário. — Tá na hora de comer, Arranca Vísceras!
Subitamente, um cachorro voraz voou, grande a ponto da sua sombra cobrir o jovem. Era branco, pintado por sujeira e fendas sangrentas abertas. Tinha três cabeças, cada uma com olhos de mosca; possuía asas do inseto. Sua espécie era conhecida como moscachorro.
Posicionou-se na frente do Lotus. Seus dentes banhados em baba ácida pingavam seu desejo. Emanava destruição.
— É tão bom poder ver você de novo… — O oponente acariciou as costas do animal. — Pensei que isso nunca mais ia acontecer! — Em seguida, abriu um sorriso maléfico. — Hora de lanchar Vital.
Lotus estava apavorado, diante de um monstro maior até mesmo que Dom Tardígrado.
— Que Tlaleel te proteja… — cochichou Galdino.
— Ruuuuuuuuuuuuuuia! Lutem! — ordenou Dom. — Hahahaha!
Era o momento de se provar.