Volume 1 – Arco 2
Capítulo 14: Motivos
Dias se passaram.
Era uma tarde chuvosa.
Lotus carregava o pesado armazém de prana e manuseava a picareta na procura de fósseis — não porque queria. Ele e Galdino passaram grande parte dos seus dias na mina, trabalhando dobrado. Punição para quem chegou atrasado uma única vez. Ao menos, serviu como válvula de escape, fora que dificilmente dava as caras com o restante dos prisioneiros. Era da mina para a cela e da cela para a mina, sem desvios.
Mesmo assim, tentaram lhe sabotar diversas vezes. Um dia, certo presidiário tentou atingir seu armazém de prana com a picareta. Não teve sucesso e, logo após, dois Raobatons apunhalaram o meliante e o trocaram de turno. Nenhum remorso por ele.
Para a sorte do jovem, a Rinha dos Marginais foi adiada até os responsáveis consertarem o estrago na parede que fizeram. Haviam de limpar os destroços no refeitório e arrumar o vão que ficou entre o refeitório e a área de tempo livre. Bagunças sem fim.
As horas monótonas na mina passavam eternas…
Galdino precisava conversar para não ser consumido pela rotina.
— Ei! — Fitou Lotus. — Ultimamente cê anda meio quieto, eu imagino o porquê… Só que eu já tô começando a ficá louco com a chatice que é esse trem!... Enfim, tem algo que quero saber sobre você.
— E o que seria?
— Por que que cê veio pegá a Pirâmide Vital da Tempestade?
Os presidiários ao redor, ao ouvirem esse nome, olharam de soslaio e diminuíram o ritmo.
— Não tem porquê eu te contar isso — respondeu o jovem.
— Eu mereço saber! — replicou. — Te salvei naquele dia que os cara tudo queria te matá! Cê me deve essa! E, apesar de não me importar, esqueceu de quem é o pai que matou?
— Tsc… — Lotus respirou fundo.
— Aff! Num quer falar então, num fala.
Alguns minutos se passaram. Lotus foi bombardeado pela monotonicidade, e os ruídos das ferramentas chocando contra as rochas passaram a lhe incomodar. Questionou se ser antipático realmente valia a pena.
Necessitava se distrair.
— Ruff! — bafejou e cedeu. — Vou falar.
— Aí sim!
----------
Era um fim de tarde ensolarado.
Em uma rua esburacada, havia várias casas lado a lado. Uma vizinhança simples.
Entre duas das residências, havia um bar, um com uma porta vai e vem, estilo faroeste. Toda vez que alguém adentrava, um sino tocava. Sua estrutura era toda feita de madeira, uma arquitetura rudimentar. No alto, estava seu título: “Bar do Kruggelor”.
Apesar da noite ainda não ter caído, o local já estava prestes a lotar. Por dentro, luzes incandescentes clareavam as mesas arredondadas que preenchiam o salão, junto com uma mesa de sinuca e uma fila para pegar as cartelas do bingo. Era a última chance de ter alguma sorte na semana.
Também tinha um balcão, com estantes atrás repletas de licores e conhaques. Na frente, uma mãe parda de calças jeans e blusa cinza ficou sentada numa banqueta redonda; tinha um olho castanho e o outro verde. Estava cansada, cortou e tingiu muitos cabelos durante esse dia.
Ao lado dela, um garoto assistia a televisão, uma presa no teto. Beirava os 15 anos e estava fascinado com o documentário sobre os “Vitais”. A maioria dos clientes eram adultos, não lhe restava outra diversão ali. Vestia uma camisa cinza e uma bermuda preta, a contrastar com seu olho azul e o outro verde.
O bartender conversava com a mãe.
— Eae, Prismana, como tá o Edson? — indagou Kruggelor, o dono do bar. Era um homem branco de bigode encaracolado. Seu avental preto era sujo de bebida, mas protegia a camisa branca do mesmo destino.
— Ah… Não sei — respondeu Prismana, mãe do garoto. — Ele deve estar cansado, acredito que vai chegar e capotar no sofá.
— Haha… Tá certo — Secava um copo. — Fiquei sabendo que ele vai se aposentar.
— Hum? — Ela arqueou as sobrancelhas. — Como descobriu?
— Ele veio aqui há uns dias. Contou pra mim e pra mais alguns caras que estavam sentados aí. Cê tinha que ver… hehe! — Colocou o copo secado na pia.
— Tsc… — Colocou a mão na testa. — É a cara dele fazer isso! Adora comemorar antes da hora… haha!
— Pois é! Disse também que hoje seria o último dia de trabalho, e precisaria ficar até mais tarde. Mas, ele fechou o rosto depois disso e comentou que iria fazer algo “importante”... No fim, parecia apenas um devaneio de bebum.
— “Algo importante”?
(Começa daqui em diante a nova história)
TRIM!
De repente, uma investida com o ombro quase arrancou as portas. Um homem forte de pele escura entrou correndo no bar, um de coturno preto e macacão azul sujo de graxa e... sangue. Puniu o chão de madeira com passos desesperados, que tinham Prismana como destino.
Todos cessaram suas atividades após essa surpresa, naturalmente curiosos. O desfecho renderia fofocas duradouras.
O homem chegou à mãe do garoto em um frenesi aflito, apoiou as duas mãos na perna dela e seu olhar espantado a encarou. Sufocante.
— Prismana... Ahrf! — Ofegava igual uma presa exausta. — Temos que... Temos que sair daqui...!
— Edson?! — disse ela. Seu aspecto atônito a motivou a averiguar o físico do marido e confirmar se havia alguma adversidade. Uma análise instintiva de saúde. Ah! Ela viu duas fendas no tronco, uma no peito e outra na cintura. Tinham sangue ao redor. Tiros!
O garoto esqueceu da existência da televisão e travou em choque. Seu pai foi baleado!
— Não temos tempo! — Ele apertou o antebraço do filho e da esposa e os puxou em direção a saída, o que fez ambos saírem dos assentos e serem arrastados.
— Para! Me solta!!! — bradou Prismana. Tentou puxar contra o fluxo, mas a força do Edson era incomparável a dela. Entretanto, ela tinha uma alternativa.
CRAK!
— Aaaaaaargh! — bramiu o marido e se encurvou após a esposa quebrar um copo no seu antebraço. Cacos de vidro penetraram na sua pele, essa que foi banhada pelo rubro medonho. Rasgaram seu músculo e o condenaram com uma dor escaldante.
Foi efetivo: ele soltou os dois, sua família.
— Desgraçada! — xingou no impulso. Fitou-a em seguida, a ranger os dentes.
— Qual é o seu problema?! — Ela colocou o braço na frente do garoto, que não hesitou em derramar lágrimas. — O que tá acontecendo?!
— Precisamos sair da cidade! Grr! — grunhia de dor, difícil era não fazer. — Qual parte você não entendeu?!
— Ei! Ei! Ei! — Kruggelor interrompeu o casal e se retirou do balcão. — Basta! Se vão se matar, que seja fora do meu bar!
— Fica na sua, seu barista imundo! — Edson estava fora de controle.
O silêncio prevaleceu por alguns segundos, o suficiente para o marido perceber os holofotes. Todos ficaram boquiabertos com seu comportamento agressivo.
— Ruff! — Inspirou e expirou fundo. — Olha... Prismana... ele tá vindo pegar a gente... temos que ir logo!
— Ele quem, Edson?! Do que está falando?!
— O ditador, car@#$%! — No mesmo instante, ele ajeitou a postura e avançou para cima da Prismana. Sua mão calejada tinha um objetivo: apanhar o braço da esposa e do filho, de novo. Mas, o que de fato foi apanhado, foi o seu.
Uma mão robusta infestada de pelos esmagava seu pulso. Fedia a pinga. Quando fitou o responsável, notou que era um homem com o dobro do seu tamanho, tanto para cima quanto para os lados. Tinha uma barba desleixada e sua regata branca estava encharcada, provavelmente de álcool.
O garoto — que presenciava o horror — teve o campo de visão tomado por esse homem. Apesar do medo, não queria tirar os olhos do pai. Era a única coisa capaz de fazer, afinal. Ficou de pé sobre o balcão para ter uma visão ampla. Arteiro.
O homem destinou um olhar severo ao Edson.
— Você... Fora! — falou, com uma voz ríspida. Arrastou o enlouquecido, esse que tentou se soltar a todo custo.
TRIM!
As portas do bar abriram… não, foram derrubadas. O cliente não era um vodariano…
O homem soltou o pai do garoto, pois uma linha de vidro cruzou o bar e transpassou pelo seu nariz. Morte certa.
— O quê?! — Edson fitou a saída.
Prismana, quase com o mesmo destino que o homem largo, o ataque repentino passou de raspão sobre sua cabeça. Houve um sangramento brando. Sobreviveu.
Aaargh!
Um brado ecoou por trás. Ao olhar, a mãe viu que seu filho teve sua barriga perfurada pela linha de vidro, essa que atingiu as bebidas e cravou na parede. Um espetinho de vodarianos.
— Não! Não! — Prismana se abaixou para se livrar da tangente do corte. Subiu em cima do assento e, dominada pelo temor de perder Lotus, apertou com destreza a linha de vidro para quebrá-la. Remexeu de cabo a rabo, mas só ganhou feridas escarlates nas palmas. Sem sucesso.
Hehe!
Um homem riu de fora do bar e entrou lentamente. Ruiu a madeira com sua bota tratorada. Estava com os dedos entrelaçados nas costas, enquanto seu sobretudo branco dançava ao rogar do vento. Possuía ombros largos, um aspecto forte. Poder.
— Ah não… — cochichou Edson, no chão.
Quando parou, os demais clientes e o dono do bar abaixaram a cabeça. Seu olhar era amedrontador o bastante para todos se curvarem. Quanto ao rosto: era branco, com uma barba arrumada e um rabo de cavalo jogado na testa; tinha um olho vermelho e outro roxo.
O próprio mau.
— Sharkgar… — Era assim que o chamavam. — Não era o que… — falou o pai do garoto. Tentou, na verdade.
— Nã-não. — Sharkgar pisou na sua cabeça e colocou o dedo indicador próximo à boca. — Shiii…
Ao mesmo tempo que Lotus gemia em sofrimento, uma tempestade de dúvidas e sentimentos assolavam a mente de Prismana. O que estava acontecendo?
— É sério que você achou que aquele plano da “bomba no tanque do avião” ia dar certo? Hahaha! Tenha dó.
A mãe do garoto arqueou as sobrancelhas. Obviamente sabia que seu marido era mecânico aeronáutico do exército, mas que história era essa de “bomba”?
— Como…!
— Quieto! — ordenou Sharkgar. — Submeta-se ao rei!
Aaaaaargh!
De repente, a linha de vidro se movimentou para cima, terminando de partir a cabeça do bêbado largo e soltando-o no chão, junto com seus miolos. Não só isso… Expandiu a fenda na barriga do Lotus, que arregalou os olhos e berrou em uma tortura abrasante.
Enquanto a linha se movia, algo triangular brilhou um pouco abaixo da nuca do Sharkgar. Era uma luz bege que, mesmo coberta por roupas, não deixou de reluzir.
— Não!!! — Prismana não se conteve ao ver o filho sofrer.
— Escuta aqui… — O tirano apoiou o cotovelo no joelho e se abaixou. Cochichou no ouvido do Edson: — Se falar mais alguma coisa, seu filho vai ser partido ao meio.
O pai assentiu em nome da misericórdia. Após, o tirano aproveitou o alto número de clientes e prosseguiu:
— Hoje, esse lixo debaixo do meu pé tentou me matar… na verdade, iria matar um batalhão inteiro. No entanto — Ele pressionou a sola. —, mal sabia ele que estava sendo usado por um grupo de rebeldes, os mesmos que lhe ordenaram a executar esse plano mirabolante! Hehe!
Edson Sutol fechou os olhos e uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Internamente, pediu incontáveis desculpas à Prismana e, principalmente, ao seu filho Lotus.
— Meu povo! — continuou Sharkgar. — Os atos dessa escória são abomináveis. Me digam, o que ele merece?
Todos sabiam o que responder, mas permaneceram em silêncio. Era algo que não queriam carregar a culpa de profanar…
— Por favor… poupe ele… — Prismana chorava aos prantos.
— Última vez: o que ele merece?!
…mas se não fizessem, seriam os próximos.
— A MORTE! — profanaram em uníssono.
Da palma de Sharkgar, uma outra linha de vidro saiu e transpassou as costas do Edson. Por fim, liberou milhares dessas e perfurou cada centímetro do corpo dele, até não sobrar nada. Uma tempestade de vidro.
Esse horror o garoto jamais iria esquecer.