Transcendendo a Existência Brasileira

Volume 2

Capítulo 120: A Peça; Juntos Nesse Objetivo

 

Imersa em seus sentimentos sombrios e sua incapacidade, de compreender a nojeira que eram essas pessoas, Qin Xa continuou ouvindo a música. 

Uma hora, seu ritmo frenético que expressou a brutalidade da batalha acabou, e assim, foi substituído por um ritmo melancólico.

Após a guerra, veio o pesar. Irmãos que foram perdidos caíram aos prantos, pais que perderam seus filhos cambaleavam instáveis. Os homens que antes estavam matando com ferocidade, ao recolherem os corpos se mantinham em um silêncio vergonhoso. Medroso. Patético. 

A música descrevia o quanto era vergonhoso sucumbir aos seus demônios, apenas para se arrepender disso depois. O que aconteceu com toda aquela vontade indomável que eles mostraram durante a batalha?

Por que pareciam tão abatidos após terminarem ela? 

Qin Xa viu o cantor chamar a plateia para cantar junto dele, descrever o ridículo da bravura cega. Porém, ele foi obrigado a cantar sozinho, porque ninguém teve a coragem de assumir sua vergonha.

Todos se mantiveram em silêncio. Cabeças foram abaixadas e resmungos de insatisfação vindo de todos os lugares foram as respostas da plateia.

O cantor não pareceu se importar, e ao fundo, o cenário ficou limpo do sangue. Enquanto Vermelho caminhava, solitário, segurando a espada de Branco — que ficou para trás enquanto seus soldados recuavam com seu general caído. 

O homem carregava uma desolação sem tamanho, fazendo Qin Xa, que antes focava na música, sentir um arrepio com a morbidez da mente de quem projetou essa peça. 

Essa atuação era tão intensa, que a expressão de confusão e dor daquele ator no papel do General Vermelho, não era nada menos que genuína. Ele realmente estava vivendo um personagem? 

Ele lutou meses em uma guerra cujo resultado era imprevisível. Batalhou uma vez após a outra contra seu maior amigo, viu inúmeros dos seus soldados leais morrerem um após o outro...

E agora, ali estava ele, caminhando sobre o sangue do amigo, aquele grande e insubstituível amigo — que ele mesmo tirou a vida.

Mas ao abaixar os olhos, Vermelho juntou as pernas e levantou os ombros. Enquanto a música comandava os soldados para se prepararem para atacar o inimigo, por mais que ninguém mais quisesse sacar sua espada.

E com toda a confusão de uma música no meio de uma batalha, as cortinas fecharam-se para o público, com o som de respirações ofegantes soando logo em seguida, tão intensas que era fácil imaginar o esforço físico que... Zhao Piao estava fazendo.

Zhao Piao caminhava, cambaleava, com uma pedra amarrada nas costas. Porém, sua situação era duas vezes pior, porque ele estava caminhando sobre uma corda suspensa a uns 3 metros do chão. 

Cair dali não era diferente de ter as pernas quebradas, ou metade do corpo esmagado. Com azar, cair de cabeça era um dos piores resultados prováveis.

Era o mesmo que morrer, e se não morresse, passar o resto da vida estirado em uma cama, em estado vegetativo — seria o seu cruel e inevitável destino, se ele não fizesse seu melhor para não despencar dali.

E Zhao Piao tinha que manter o equilíbrio naquela corda, ao mesmo tempo que brandia sua lâmina de um lado para o outro. 

Ao chegar do outro lado da corda, Zhao Piao, cujo rosto estava roxo, encarou o velho que manteve o olho nele. — Pelo menos equilíbrio é algo que você tem de bom. Desça e vá descansar, o treino de hoje acabou.

Deixando o lugar, o velho fez com que Zhao Piao tivesse que desamarrar a pedra sozinho, o que ele não fez — já que cortou a corda e deixou o peso cuidar do resto. 

Tuk! A pedra afundou na terra ao cair.

Qiao Xu, com um olhar cheio de preocupação, entrou no lugar segurando uma toalha e um balde de água. Seus passos ligeiros o levaram até seu senhor em pouco tempo.

— Jovem senhor, chegou notícias de que a batalha na fortaleza estava prevista para acabar ontem... acho que hoje teremos um resultado...

— E daí? É apenas mais uma de muitas batalhas que só nos condena ainda mais... — se secando, Zhao Piao também limpou as manchas de sangue.

— Entendido... quer ir ao banho agora, ou irá continuar com o treinamento? — Zhao Piao saiu do pátio, dizendo que iria descansar. Ao chegar no quarto, banhou-se, e completamente esgotado, foi dormir. Ignorando o garoto que o encarou até vê-lo adormecer.

Qiao Xu, que viu isso, chegou ao lado da cama... e ficou observando. Ele não saiu do quarto, ou tocou em Zhao Piao. Tudo o que Qiao Xu fez foi sentar e observar, como uma boneca sem vontade. E nisso, as cortinas se fecharam.

...

"Tá... isso definitivamente é esquisito. Por que ficar olhando tanto assim?" Qin Xa se questionou, achando até estranho que toda essa cena tenha se passado tão rápido. 

O que essa pessoa queria ao ficar observando tanto Zhao Piao? E por que ele estava usando um vestido de empregada, sendo homem? E por que a plateia parecia aceitar isso?

Esse mundo era bastante retrógrado, coisas como travestis não deveriam ser tão aceita assim... não é? Sim, definitivamente era estranho... tinha que ser estranho, afinal a terra que era muito mais pacífica não aceitava isso!

"Hmm? Eu não estou vendo isso da perspectiva errada? Num mundo onde você pode morrer se encarar a pessoa errada, servir de ingrediente para algum maníaco ou ser um deus entre os homens, a percepção de gênero é praticamente inútil em todos e quaisquer sentidos... O que essa peça quer apresentar com esse personagem transvestido? Lógica... lógica... lógica... espera, lógica? Esse personagem literalmente serve para ser o que ele é!"

Qin Xa ficou abismada ao perceber porque parecia que ninguém se importava com o personagem. Porque aquilo era natural! Entregar um homem que se vestia de mulher para seus filhos, para que fossem cucubinas era algo natural!

Talvez ele nem fosse homem para começo de conversa, mas definitivamente não nasceu mulher. 

Desde o começo Qiao Xu era mais do que apenas um empregado, mas menos que um familiar. Qin Xa só foi lerda demais para perceber a posição social dele... mas qual a razão para essa prática esquisita?

Ela se virou para a velha ao seu lado, querendo realmente saber qual o papel dessa prática na sociedade desse mundo... mas deixou essa questão para lá. Ela já mandou a velha se calar, seria muito imbecil da parte dela perguntar isso.

Ela era um pouco imbecil, mas importunar quem ela mandou se calar era um pouco demais. Até para Qin Xa.

Com a abertura das cortinas, a porta do quarto de Zhao Piao foi batida e Qiao Xu a atendeu, revelando um guarda que olhou para ele com algo semelhante a... pena. 

Seu olhar se demorou um pouco na figura não tão viril, e começou a falar:

— Diga ao jovem mestre que vencemos a batalha e o General Branco foi morto. Nosso senhor irá retornar em alguns dias para celebrar essa vitória! 

Qiao Xu arregalou os olhos, engoliu seco, e assentiu. — Sim. Irei fazer isso agora mesmo... 

O guarda saiu, e Qiao Xu exalou, visivelmente incomodado. Chegando a cama, ele sacudiu o ombro de Zhao Piao até acordá-lo. — Jovem senhor, há uma notícia que eu preciso contar...

Zhao Piao se irritou ao abrir os olhos, mas não disse nada, esperando o inconfortável Qiao Xu falar mansamente. — Um guarda veio me falar... que o General Branco morreu em combate...

— O quê?! — Zhao Piao arregalou os olhos, levantando com um salto. — O meu pai fez uma coisa dessas mesmo?! 

Mais alarmado do que qualquer coisa, Zhao Piao caminhou ao redor do quarto, fazendo Qiao Xu ficar confuso. — É uma notícia muito triste, senhor. Mas você deve ficar calmo. O General Vermelho chegará em alguns dias para comemorar essa vitória e não será bom se o senhor parecer tão abalado...

Zhao Piao lançou-lhe um olhar, mas havia irritação em sua voz. — Você ainda não entendeu, Qiao Xu? Branco era um dos únicos amigos do meu pai, e mesmo assim ele teve a coragem de tirar sua vida. O que você acha que vai acontecer comigo, que já não sou nem de longe considerado um filho?

Qiao Xu não soube responder, mas entendeu. Sim, essa notícia definitivamente não era um bom sinal para a família Zhao. E pensar nisso mais a fundo era uma questão de sobrevivência... por que seu mestre de repente se tornou um homem tão cruel e desleal?

Enquanto ficavam em silêncio, ponderando, Zhao Piao chegou a uma conclusão e encarou Qiao Xu. — Eu preciso da sua ajuda para escapar da mansão! Agora que o General Branco foi morto, não há mais o que me impeça de casar com Lin Xi. E agora que seu pai morreu os nobres com certeza irão tentar se unir a ela em casamento, querendo suas terras e o exército. Eu não posso deixar isso acontecer! 

Qiao Xu abriu a boca para falar, mas Zhao Piao já estava pegando roupas e vendo o anoitecer cair. Ele abaixou a cabeça. — Tudo bem... irei ajudá-lo a sair daqui. O que eu preciso fazer?

— Agora que todos estão eufóricos com a notícia dessa vitória, as defesas vão se afrouxar, mas os soldados ocultos ainda precisam de uma distração extra, para que eu possa escapar com segurança pelo lado leste da mansão...

Zhao Piao pegou algumas pedras de um canto do quarto e as deu para Qiao Xu, que encarou isso com confusão. — O que são essas coisas? — Zhao Piao de repente parou. 

— Ah, verdade. Você não sabe disso. Isso são pedras explosivas usadas nas minas. Você só precisa colocar elas perto de uma coisa bastante quente e elas irão explodir, por isso você precisa ser rápido ao entrar e sair da mansão do pai.

— O senhor quer que eu exploda a mansão principal?! Eu não posso fazer uma coisa dessas! — Qiao Xu colocou as pedras numa mesa com urgência. Quase parecia que ele havia feito um mal horrível ao tocar nisso e falar aquelas palavras em voz alta.

— Jovem senhor, podemos fazer isso de outro modo? Se fizermos isso General Vermelho irá agir sem piedade...

Zhao Piao segurou as mãos de Qiao Xu, falando calmamente, mas com uma firmeza certeira e confiança vigorosa, sua voz tão suave quanto uma brisa. — Qiao Xu, não podemos esquecer que o meu pai vai ficar cada vez mais autoritário, agora que o maior general do reino caiu por suas mãos. Assim que as casas nobres virem que não podem lutar contra a rebelião, o poder do meu pai vai superar o poder real... eu não posso ficar aqui e esperar ver isso acontecer. Eu preciso sair e montar minhas próprias forças também. 

Qiao Xu franziu os lábios. — Mas ainda é muito perigoso fazer isso...

— Eu também estou correndo perigo. Muito mais do que você... — Zhao Piao hesitou. — ...mas é preciso fazer isso. Você não quer que fiquemos juntos? Não poderemos fazer isso enquanto meu pai controlar todas as minhas ações...

Qiao Xu encarou Zhao Piao, o fraco brilho da esperança cintilando fracamente em seu olhar, que ao encontrar com o de Zhao Piao, aos poucos se tornou resoluto. Porém, ele tentou se afastar logo em seguida, virando as costas e falando fracamente, enquanto lágrimas cristalinas escorriam por suas bochechas.

— Eu quero... mas o jovem senhor nunca me desejou. — Zhao Piao perdeu Qiao Xu de suas mãos e o encarou, perplexo. Confusão brilhou no seu olhar.

E Qiao Xu falou, mais do que triste... 

— Senhor, eu posso ser seu prometido e ser leal a você, mas isso não significa que eu vou sacrificar minha vida para tentar te deixar escapar daqui... sem nem mesmo ter certeza de que pode sair das garras do general...

Um abraço forte o envolveu por trás, prendendo seu corpo. — Qiao Xu... — a voz de Zhao Piao era fraca, terna e cuidadosa. — Desculpe... desculpe mesmo. Você sabe que em meu coração existe Lin Xi, sabe o que eu sinto por ela. Mesmo que seja meu prometido, eu não posso ceder aos desejos do meu pai. Eu irei me juntar a Lin Xi e estabelecer um lugar seguro para a gente... um lugar onde poderemos viver sem ninguém se intrometer nas nossas decisões...

— Mas você não decidiu nada sobre mim. — Qiao Xu atrapalhou, quase fazendo esforço para se afastar do abraço. 

— Eu estou falando para você agora, Qiao Xu. Eu já me decidi faz muito tempo! Mas para que fiquemos juntos, eu preciso sair dessa casa. Depois disso podemos ficar juntos. Eu prometo que farei isso!

Qiao Xu ficou em silêncio, talvez estivesse pensando que aquilo fosse verdade. Talvez duvidando dessas doces palavras. Quem sabe? 

Mas ele virou o rosto para Zhao Piao, um olhar intenso encarando o homem atrás de si. — Promete mesmo?

— Sim. — Zhao Piao confirmou com resolução e firmeza. — Eu não vou te esquecer ou te deixar para trás. Eu juro pelo meu nome! Eu voltarei aqui e te tirarei dessa mansão, mesmo que eu precise sangrar para isso, ninguém vai me impedir de fazer nossa união acontecer!

Sob o olhar da plateia, Zhao Piao segurou Qiao Xu nos braços, e sem medo, o trouxe para um beijo suave, nervoso e vergonhoso. Qiao Xu travou por um momento, confusão e susto brilhando em seus olhos, mas logo aquilo se transformou em felicidade.

A alegria de finalmente receber a atenção que tanto buscou, levou Qiao Xu a se virar de frente para o outro homem, abraçando ele com força.

— Jovem senhor... eu vou esperar por isso. Então por favor, não minta para mim...

— Não é mentira Qiao Xu. Eu irei sair e juntar forças, e virei buscar você o mais rápido possível! 

E as cortinas se fecharam. 

Qin Xa assistindo isso sentiu-se muito estranha... era de dar pena ver o pobre Qiao Xu cair em um discurso tão manipulador. Pobre garoto que se apaixonou pelo mestre errado. 

"De repente ser homossexual nesse mundo parece 10 vezes pior que no anterior... aqui você é tratado como um animal de estimação, cuja vontade do mestre determina seu destino. Isso no melhor dos casos... eu sou diferente por ter poder. Mas existe quem seja mais poderoso que eu..."

Também... será que ela se encaixava nessa descrição? Qin Xa não sabia... mas resolveu deixar isso de lado. Não importava, ela seria o que fosse preciso ser, no fim, apenas a força importava nesse mundo...