Torneio da Corte Brasileira

Autor(a): K. Luz


Volume 1

Capítulo 8: Sobrevivente

Omnislai está deitado de costas para o chão com uma respiração pesada, seus olhos estão abertos ao limite, visualizando os holofotes no teto. Um pé tampa a passagem da luz até ele,  se tornando maior à medida que desce de uma vez, forçando-o a girar para não ser pisoteado. A terra explode no golpe, engolindo parte da perna do atacante.

Os tênis e as mãos do rapaz deslizam pelo chão, usando-as para se levantar. Ele está incrédulo, olhando para o adversário como se estivesse vendo uma assombração.

Após instantes de apreensão, ele decide avançar, abaixando o centro de gravidade ao investir, visualizando o sorriso do Traçal se desfazer em um borrão, sucedendo de surgir com os braços arqueados na frente do Omnislai, buscando-o.

“Não!”, exclama em sua mente, enxergando os braços cobrirem o redor. “Vai estar tudo acabado se eu for pego num agarrão!”

Ele se abaixa subitamente, evitando ser pego; seus pés arrastam pela terra, abrindo a postura e montando uma base firme para atacar. O gatilho é puxado, a pistola dispara: um soco é lançado contra a barriga do Traçal.

Omnislai solta um “huh?” ao perceber que seu punho não entrou em contato com nada, pois o oponente havia se empurrado alguns centímetros para trás, exatamente o suficiente para não ser tocado.

Ao pisar à frente, o robusto move as mãos de um lado para outro na busca do adversário, que, mesmo que esteja dando tudo de si, só consegue desviar por pouco de cada balanço. Tanto a forma do Omnislai quanto as dos braços se tornam falhas e transparentes pela velocidade; o rapaz não ousa tirar os olhos dos balanços, virando o rosto constantemente para os ver e então evitá-los, rangendo os dentes pela pressão lhe imposta.

Os tênis deixam o solo, ele consegue uma brecha para saltar e sair da “tempestade”, sendo recepcionado pelo robusto surgindo na frente enquanto lança um golpe com o braço direito. Omnislai consegue esquivar jogando-se para mais atrás, sentindo o vento da passada abalar sua existência por um instante, como se um raio passasse levando suas cores.

Ele pula para o lado, procurando conseguir distância; terra explode, Traçal o alcança em um instante, mantendo-se cara a cara com ele.

“Como...? Como você consegue me acompanhar com esse corpo grande?!” Omnislai se abaixa por pouco de um soco cruzado. “É pela diferença de aura? de físico?...”

Ele continua transitando pela arena, sendo constantemente alcançado pelo oponente. Suas costelas trincadas espalham uma dor eletrizante pelo corpo, atrapalhando seu foco.

Um corte é feito na bochecha dele na passada de um soco, fazendo-o se enfurecer ao ponto de avançar contra o turbilhão de ataques — o estopim —, uma decisão que surpreende os narradores e o público, mas não o oponente. Apesar de pegarem só de raspão, Omnislai sente sua carne ser amassada por cada contato, como se os seus membros superiores e o tronco estivessem tocando vigas de metal enquanto está em uma queda de vários andares para a morte. Será esmagado na queda? ou pelas vigas?

O rapaz grita ao conquistar a distância que deseja, girando as articulações para disparar o soco impulsionado, um que não vai longe: a ofensiva para na metade do caminho com um freio repentino, causando surpresa ao Traçal, que não fica congelado, voltando do pequeno recuo que havia dado para esquivar, aproximando o punho da face do oponente; suas íris sumiram, estando determinado em acabar com isso ali.

A perna direita do Omnislai sobe como um vulto de luz verde, rotacionando um chute alto que estoura na cara do Traçal, amassando-a. Os arredores ficam brancos para o atingido, o impacto explode em uma chuva de vapor e partículas negras; seus sentidos ficam entorpecidos.

“Entendo…”, considera o robusto. “Parou o ataque no meio do caminho para emendar um chute lateral quando eu investisse na curta distância. Esse deve ser seu trunfo, é ao menos duas vezes mais forte que o soco impulsionado, mas…”

A sua palma bate sobre o peitoral do Omnislai, envergando-o antes de repeli-lo para longe.

“...ainda é inútil.”

O rapaz tem as costas batidas no muro, rachando-o, sendo refletido de frente para o chão, por onde evita uma queda total com os braços.

Seu oponente põe as mãos nos bolsos, caminhando no rumo do derrubado sem esboçar mais nenhum abalo com o impacto que levou no rosto.

“Que forte…”, pensa Omnislai. Ele cospe sangue, a marca da palma do Traçal está estampada em sua pele. “Até em técnica e estratégia de batalha ele me supera!”

As mãos o ajudam a se erguer, mesmo que ainda o faça com dificuldade.

O robusto tira a mão direita do bolso, levantando-a para mostrar o enrijecimento dos músculos — “acaba no próximo soco”, é a mensagem transmitida a todos. Omnislai corre na direção dele, sentindo o seu corpo ser preso por várias correntes que tentam puxá-lo para trás — para o chão. Traçal gargalha, iniciando um golpe com aquele braço, rompendo as barreiras do ar; seu oponente vê a ofensiva como uma grande rocha se aproximando, prestes a esmagá-lo.

“Mesmo um cabeça oca como eu consegue perceber o quão acima você está! Aura! força! agilidade! resistência! técnica! experiência! Até na velocidade!” Suas íris se contorcem, o traçado que forma seu rosto é deixado para trás como tinta pelo seu aumento de velocidade na sua investida. “É intocável em tudo...!”

Um estrondo soa por toda a arena, deixando o público e os narradores de olhos bem abertos. Laerte olha pelo vidro com um sorriso à mostra, estático ao ponto de esquecer de quebrar o pedaço de chocolate entre a fileiras de dentes. Os lutadores da competição observam atentamente o confronto.

As correntes foram reduzidas a pedaços que giram pelo ar sem propósito.

Sangue escorre para o mundo de claridade à volta, saindo pelo nariz do Omnislai, que está de pé com o punho estendido à frente. Por outro lado, Traçal sente um buraco enorme no seu tronco, estando com a postura quebrada, virada da posição original. Algo como um sorriso não existe mais em seu rosto, só espanto.

“Mas nem no inferno vou aceitar que você é mais rápido!!”, pensa Omnislai.

Ele sobe os olhos para encarar a face do adversário, apertando-os para ressaltar o foco no objetivo.

“Essa luta está longe de acabar, Traçal!!”

 

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Há muitos anos, em uma época que o mundo estava imerso na guerra, havia um esquadrão que era conhecido por feitos sobrenaturais que abalavam toda a compostura dos inimigos no campo de batalha. Era simples, mas absurdo: eles corriam, sim, corriam; atravessavam uma chuva de balas e bombas vestindo uma roupa repleta de granadas e os inimigos não conseguiam matá-los. As granadas à mostra nos seus uniformes não serviam para suicídio e sim para desestabilizar os atiradores quanto mais se aproximassem, tornando-os presas fáceis.

Esse esquadrão era usado principalmente em campos de batalha menores, distraindo e matando muitos soldados inimigos com qualquer sucesso de aproximação, usando um estilo de corrida bastante eficiente, sendo gravado nos livros de história como as “Raposas”.

Porém, havia uma exceção nessa nomeação, que era a do líder do esquadrão. Ele era conhecido por sempre optar pelo avanço mais inconsequente, chegando até os rivais para os abater sem nenhum rastro de receio. Apenas distrair não estava no seu vocabulário. Devido a tudo isso era o único chamado de “Lobo”, um que não podia ser parado.

Com o passar dos anos a guerra acabou, e todos os sobreviventes dela tiveram que tomar seus rumos.

Em uma cidade fria — que sempre esteve coberta de neve —, uma academia foi aberta, nomeada como Lobos de Shinjicai. Com o passar dos anos, alguns lutadores dela se tornaram famosos no mundo profissional pela velocidade, reconhecidos por todos os países pelos feitos de derrubarem grandes nomes com uma demonstração extraordinária de jogo de pés. Simplesmente nada podia tocá-los, punhos eram ineficazes ao ponto das pessoas pensarem que só se podia acertá-los com armas de fogo.

Os anos passavam, a academia crescia em glória, mas o fundador não se importava com isso, o prazer dele estava em treinar seus aprendizes, desde o sparring ou a praticar os golpes, eles os conduzia para os melhores resultados.

O seu método de treino que mais se destacava era o de correr por horas, os citados anteriormente não davam metade do tempo que os lutadores gastavam nesse. Seja fazendo um frio de gelar os ossos ou não, lá estavam eles, correndo pela cidade dia após dia, sem falta, o que tomava a atenção dos moradores. Ao menos, foi assim por muito tempo até um fatídico dia chegar.

Ocorreu em um salão de festas, onde estava sendo realizado uma comemoração pelos trinta anos de existência da academia. O lugar estava cheio, o público se divertia com os discursos, comida e conversas; era assim até o desastre acontecer. Um terremoto assolou o lugar, derrubando pilares e, por fim, o teto, esmagando todos ali.

O treinador não morreu por seu voo para essa cidade ter atrasado, tendo chegado algumas horas depois do estimado, deparando-se com um cenário de destroços sendo revirados pelos bombeiros e voluntários. Todos os seus mais de 5000 alunos e ex-alunos haviam sido confirmados como mortos, incluindo os que tinham destaques em torneios pelo país, havendo a exceção de um sobrevivente entre os familiares dos lutadores.

O desastre também havia derrubado vários outros edifícios e ruas mais velhas pela cidade, o que gerou um pandemônio em larga escala. A notícia se espalhou pelo país, e o destino da academia foi de reabrir as portas apenas depois de muito anos.

 

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De volta ao presente, o idoso na arquibancada olha para arena, refletindo em suas íris a imagem do Omnislai. Os homens à volta estão paralisados, os tambores não estão sofrendo batidas.

“Então você conseguiu…”, pensa Lobo. “Alcançou o auge do estilo ‘CoVa’. Não… Sempre esteve predestinado a ultrapassar a última barreira.”

Ele se recorda sobre quando alguém lhe informou como o sobrevivente conseguiu evitar ser morto pelo desabamento: “(...) eu estava deitado sobre a calçada por causa do terremoto quando vi o garoto sair correndo pela entrada do prédio pouco antes de quase tudo desabar. Será que foi sorte? Não sei como ele conseguiu se equilibrar no meio daquele tremor…”

“A partir daí cabe a você torná-lo algo único”, continua Lobo, “algo só seu. Espero que possa me perdoar, Omni… Por isso ter sido tudo que pude te dar para compensar aquele desastre. Estarei te assistindo até esse corpo velho cair em pedaços, assistindo para qual ‘lugar’ suas pernas irão te levar. Mesmo que seja para o sol ou os confins do submundo, continuarei te vendo.”

Faz algum tempo que o público voltou a gritar, quase derrubando o lugar com os brados animados, e o narrador não é exceção:

— OMNISLAI CONSEGUIU UM ACERTO!!! UM FORTE O SUFICIENTE PARA ESPANTAR TRAÇAL, O REI DA FORÇA!!! O QUE FOI AQUILO?!! UM VULTO?!! UM RAIO?!!

— Haha… Que absurdo!... — fala Malena. — É como se ele tivesse devolvido na mesma moeda a “demonstração” de velocidade do Traçal que o havia superado!

— Em todo caso, o que podemos confirmar é simples! Omnislai ainda está no jogo!! Foi além dos portões da morte e voltou com uma lança que pode penetrar a armadura robusta do adversário!!

Veias ressaltam na testa do robusto, encarando o oponente com uma expressão de desprezo diferente do normal, desprovida da arrogância do sorriso. Ele bate de leve no local atingido, um que antes sentiu como se tivesse sido esburacado. Omnislai expira forte, ficando parado em uma postura parcialmente aberta.

Um borrão branco corta o ar até ele; Traçal ataca do nada com um cruzado e, antes que estendesse o braço por completo, leva um soco no plexo solar, que o enverga para frente enquanto espalha a poeira ao redor para longe, lançando-o sobre uma parede, rachando-a. Uma dor se espalha como chamas pelo corpo do atingido, queimando pela área acertada e costas, fazendo-o esboçar uma careta com os olhos branqueados.

— ELE CONSEGUIU MANDÁ-LO PARA A PAREDE?!! — brada Gaojung, levantando-se por completo do assento. — COM UM ÚNICO ATAQUE?!! O TRAÇAL?!!

A palma do atingido bate no muro, ele tira as costas de lá, estourando as rochas à volta; sua gargalhada soa. Ele investe sobre Omnislai, desferindo balanços distintos contra ele, provando em todos uma escassez de sucesso, sofrendo em cada um contragolpe que joga seu rosto de um lado para outro.

Não importa quantas vezes ele desfaça as imagens residuais do oponente, nunca consegue achar o verdadeiro, como se esse sequer existisse nessa realidade — mas existe, as mudanças súbitas que Traçal tem na visão pelas pancadas que recebe lhe comprovam isso —, vendo, por causa da última, o teto de holofotes sendo manchado pela passagem de gotas vermelhas.



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