Torneio da Corte Brasileira

Autor(a): K. Luz


Volume 1

Capítulo 38: A Besta e o Caçador

“Chegar nesse ponto por um torneio em um fim de mundo”, pensa Shinsai, “você está se esforçando bastante, Traçal. É compreensível, afinal, mesmo que o Torneio da Corte não tenha influência no circuito profissional, ganhar nele vai te dar prestígio o suficiente para desafiar os grandes nomes, porque eles vão querer testar seu nível e mostrar para o público o quão acima estão. De fato, uma oportunidade de ouro.

“Então essa é sua centelha... A maioria das pessoas não sabe, mas existe uma diferença crucial entre aura e as yrais: ‘alma’. É verdade que as yrais são várias vezes mais poderosas que as auras, porém não deixam de ser apenas um grande volume de energia dependente da influência delas… Como uma armadura.

“As auras são algo que nascem com os humanos e os acompanham até seus últimos dias, agindo com base nas suas personalidades, e é nesse polimento excessivo da alma que pode nascer a centelha, uma habilidade capaz de mudar ou acrescentar algo no desempenho do usuário. Contudo, pouquíssimos indivíduos conseguem usá-las sem o abastecimento de uma yrai.

“Traçal, eu nunca coloquei a culpa em você por causa daquele dia, mas, se existia rancor no meu coração sem que eu soubesse, ele sumiu por completo quando vi a ‘encarnação da sua alma’. Antigamente eu dizia isso a você, mas agora só direi para ‘ela’ com uma leve adaptação: ‘proteja meu filho’.”

 

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Gotas de sangue caem sobre a terra. O tempo passa devagar para Kaon, que está com as íris brilhando pela concentração de aura. Vê claramente a presença do espectro acima do rival, pensando:

“É uma projeção impressionante. Se tivesse um pouco mais de aura embutida, olhos comuns também poderiam a ver. Mas e então? Tudo o que ela faz é te fortalecer, Traçal? Se for, é um trunfo inútil para essa situação em que já está desacordado.”

Traçal cospe sangue, continuando a enrijecer os músculos enquanto as veias engrossam e a pele fica arroxeada.

Um monstro nasce.

Kaon passa o dedão no sangue que escorre pelo seu nariz, lançando-o para o lado; ele assume sua postura de luta. Na arquibancada, a moça de cabelos brancos está com as mãos juntas, tendo saído da sua oração pela surpresa com a situação atual da luta — um sentimento compartilhado pelo restante do público.

“Em todo caso, só me resta um minuto nessa forma. Será uma batalha de resistência ou uma decidida por um golpe de sorte? Vamos resolver isso, Traçal.”

O robusto respira pesadamente, sangue escorre pelos dentes; Kaon se torna o foco da sua atenção. Ao se empurrar à frente com uma pisada, surge à frente do Kaon como uma aparição, surpreendendo-o com a investida; veias se ressaltam nas pernas do rapaz, que esquiva com um salto para o lado, deixando-o prosseguir até se chocar contra uma parede. Traçal desaparece na nuvem de poeira.

“Rápido… Mais que o esperado.”

Kaon se vira por ter acabado de pousar, deparando-se de imediato com o oponente que deveria estar colado no muro. O gigante o faz pular novamente para sair do seu avanço imparável, um evitado por poucos centímetros.

Em outra busca pelo adversário, Traçal cai sobre ele junto de um golpe de marreta formado com os dois punhos. O chão estremece com o impacto que o esburaca junto de metade do corpo do Kaon, que tem seu sangue misturado com o estouro de poeira; a previsão do rapaz acaba, é repelido para longe por desviar por pouco do impacto, parando só ao bater as costas na parede.

Um braço é jogado para trás, o robusto imerge em outra perseguição já com preparando um ataque. O soco esmaga a cabeça do rival sobre o concreto; a previsão acaba, Kaon vai para o lado antes do impacto e — assim como várias pedras — é repelido para longe, batendo a cabeça no solo antes de rolar para trás contra sua vontade. A parede racha por todas as direções, agora com uma cratera maior que uma pessoa.

A poeira se espalha, e, se dispersa.

Kaon se levanta, sofrendo de uma cambaleada para o lado; sua consciência desaba junto, imergindo em um poço de escuridão que o congela numa postura de luta torcida.

Terra vai ao alto; ao se aproximar, o robusto o encobre com sua sombra. Lança o braço direito contra ele; Kaon não tem reação por estar desacordado.

Batidas altas soam. No fundo da mente, em meio a tamanho escuro, demora para reconhecer os barulhos: se tratam das memórias do seu treino, de quando chutava o saco amarrado no galho de uma árvore, ação que repetiu por toda a vida. Mais uma vez sua perna sobe na memória, ato que ela repete no presente como na lembrança, subindo num giro denso até amassar a face do Traçal com o acerto, afundando-a no vermelho preso à boca. O balanço do gigante é contido.

Apesar do estremecer da sua cabeça, o robusto continua avançando até se chocar no rival, carregando-o consigo na corrida para o muro, onde batem em alta velocidade, abalando-o com um tremor.

A plateia se estarrece.

Kaon e Traçal caem graças ao dano do choque, separando-se. O primeiro cospe sangue; repleto de novas feridas, porém, ainda segue consciente; seu pé está em pura carne viva devido à força que colocou no chute de um instante atrás.

Vendo que o robusto está com mais dificuldades em se erguer, aproxima-se enquanto fortalece os braços, acertando-lhe no rosto com socos laterais, fazendo-o sangrar.

Traçal reage jogando a mão esquerda contra ele, encontrando o nada; Kaon desaparece da arena. O robusto gira em alta velocidade na sua procura, parando ao reparar em duas marcas de sangue na parede, posicionadas em uma altura considerável com um formato que lembra mãos. Os seus instintos entram em alerta e, quando uma sombra começa a o cobrir, levanta o rosto, deparando-se com o rival em queda com a perna para o alto; o chute atravessa o espectro e cai sobre a face do Traçal, amassando-a. Não sendo o bastante para o derrubar, Kaon coloca a outra perna sobre seu rosto, empurrando-o com um chute reto.

O rapaz cai de costas no chão; Traçal é inclinado bastante para trás devido ao empurrão, mas não cai, subindo de uma vez. Mirai se refaz acima, arroxeando mais com a energia que passa por seus fios, literalmente a força que ainda o mantém de pé.

Os dois lutadores estão ofegantes ao máximo, sujos dos próprios sangues; a torcida grita de pé, sendo a primeira vez que o edifício alcança uma algazarra tão grande. Kaon empurra suas costas do chão, erguendo-se em seguida com o braço e o firmar das pernas; seu suor e sangue escorrem pelo rosto, misturando a sujeira antes de cair para o chão. Ele também fica de pé, trocando encaradas com o rival que possui a mesma dificuldade em se sustentar.

Segundos passam, suas respirações pesadas formam laços de vapor.

E, quem faz o primeiro movimento, é Kaon. Soca-o no rosto, criando um estouro de vermelho; um círculo de vapor surge no peitoral do robusto quando ele tenta revidar, vendo o adversário o evitar caindo de costas com o impulso fraco, ficando com os membros estendidos sem resistência no chão.

Sem forças para ações mais complexas, passam mais segundos presos em suas posições.

Traçal achega-se e desfere um pisão contra ele, que é evitado com um giro para o lado. Kaon se levanta com os braços caídos, sentindo as pernas tremerem pela dificuldade em o manter de pé.

Ambos dão passos lentos, fechando os punhos para uma troca. Pernas deslizam à frente, os impulsionando, resultando no rosto do robusto sendo jogado para trás no soar de um baque. Kaon abre os olhos ao máximo, inspirando fundo, avançando enquanto desfere uma cascata de socos fortalecidos, notando suas fibras musculares partirem a cada impacto.

 

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É noite, uma escura. Kaon, quando tem a idade de uma criança, é arremessado para longe no piso do dojo, parando próximo de um velho caído e coberto de sangue.

Um homem musculoso adentra no local pelo buraco na parede, sendo encoberto pelas sombras do interior enquanto a luz da lua bate em suas costas.

— Eu disse, Klay! — Ele se aproxima do velho, o pegando e levantando pelo pescoço. — Esse seu estilo de merda não serve para nada! É uma porcaria completa! Seja para autodefesa ou ganhar uma luta entre homens…

Um estalo soa alto; o pescoço do idoso é quebrado, caindo para o lado. 

— …É inútil!! E FALHO!!!

Em seguida joga o corpo para o canto, onde quebra as tabúas com a colisão.

O garoto fica aterrorizado, molhando as calças, o que chama atenção do homem.

— O que foi, bebê chorão?! Quer brigar?! Ha! O que estou dizendo? Como se um mijão como você tivesse coragem! (...) Consigo sentir sua aura medíocre. Esse velho tinha mesmo chegado ao fundo do poço… pegando um aluno com 2 II!! HA HA HA HA!!!

 

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Para Traçal os cantos da sua visão estão inundados de estouros brancos, visualizando no centro a expressão do adversário. O espectro se foi e… sua consciência voltou.

Kaon se recorda de uma conversa que teve com seu mestre na frente do dojo:

— “Como derrotar alguém muito mais forte”, é? — diz o idoso.

— Sim. Tem alguma técnica ou algo do gênero?

— As artes marciais surgiram com o propósito de serem usadas para derrotar pessoas mais fortes, porém, “muito mais fortes” é uma distância grande demais, é melhor fugir do que lutar nessas condições.

— Então não tem como?

— Na teoria, tem… 

Traçal gira a cintura, mandando — de uma postura inclinada — um soco de esquerda que perfura o ar na direção do rival, sendo parado no meio do caminho pela colisão no punho direito dele. Poeira levanta à volta pelo atrito de força entre os dois, estremecendo-os ao ponto de seus traçados se tornarem hachurados, torcendo-se nas bordas como chamas.

O braço do Kaon estoura em vermelho; seu ombro e parte do peitoral são cobertos de rompimentos da pele. E, assim como seu membro vai para trás graças ao impacto, o do adversário também vai, deixando-o com a guarda aberta.

A chance.

…Se você não errar nada e conseguir ler o oponente na palma da sua mão, alguma oportunidade deve surgir. É uma questão de sorte e ímpeto, Kaon; não seja o primeiro a cair.

Uma perna vai à frente encoberta em laços de poeira, girando o pé em pura carne viva na terra, impulsionando o balanço do Kaon, que braveja enquanto desfere o punho esquerdo contra o oponente, afundando o nariz dele junto do restante à volta da cara.

Uma explosão de luz e vapor acontecem a partir do impacto, sucedendo do robusto ter suas costas jogadas no chão. O grupo de lutadores no andar VIP e também todas as pessoas por lá ou nas arquibancadas estão pasmos, com exceção do Shinsai, que fecha os olhos, inclinando levemente a cabeça para baixo.

Kaon se vira, a poeira está baixa. A boca do Traçal se abre, lhe faltando forças para mantê-la cerrada, o que também diz sobre seu destino naquele chão.

“Esse confronto… será uma boa referência”, pensa Kaon, caminhando para a saída da arena enquanto é coberto pelos gritos das arquibancadas.

[14° Luta (3°F) - Kaon vs Traçal

Duração - 16 m 33 s

Vencedor - Kaon]

 

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Na sala do Lorde, ele está com a cabeça deitada sobre o alto da cadeira, suspirando densamente.

“Então acabou como o esperado… Ainda bem.”

O homem se recorda de quando assistiu uma luta do Kaon no passado, em uma arena subterrânea. Tempos após isso ele foi visitar o dojo, entregando-lhe um panfleto do Torneio da Corte.

O rapaz lhe disse:

— Então quer que eu derrote o seu filho nessa competição. Por quê?

— Ele está apressado demais. Seu talento conseguia acompanhar até certo ponto, mas nesse ritmo irá se destruir no circuito profissio- não, no submundo, que é para onde eu sei que ele vai em algum momento. Se ele perder agora, irá aprender mais do que se estivesse ganhando, por isso estou pedindo para o frear. 

— Preocupação paterna, huh? (...) Certo.

— Irei transferir o dinheiro para sua conta.

— Não precisa, o prêmio dessa competição será o suficiente. Vai ser uma boa oportunidade para divulgar o estilo do velho.

— Você quer alunos para herdarem o estilo?

— Não. Quero provar que ele é forte.

O vento passa pelo local. A confiança do rapaz é algo que surpreende o Lorde.

— Entendo… Parece que o peso sobre seus ombros não é pequeno.

— Talvez.

Com o pedido feito, Lorde parte dali.

A memória acaba. De volta ao presente, pensa:

“Acabei o abordando antes da luta por ter ficado com receio de que ele matasse meu garoto, mas vejo que fiquei preocupado em vão. Traçal acabou me mostrando uma força que eu não tinha notado que ele possuía, e ficou a um passo da vitória… Me pergunto se tomei a decisão correta em chamar um tigre como esse… Em todo caso, já é tarde para chorar pelo leite derramado… Coloque essa experiência no fundo da sua alma, Traçal.”

 

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No salão, o grupo de lutadores ainda seguem incrédulos, cansados como se tivessem acabado de escalar um morro. Murmúrios soam pelo ambiente.

“Caramba… Ele ganhou mesmo…” considera Omnislai. Se vira, olhando para a televisão do outro lado do lugar. “Então aquele valor era sério?!”

A tela mostra os valores apostados em Traçal e Kaon, respectivamente: “33.867.090” e “1.000.350.100”.

“Nas lutas anteriores, os valores estavam equilibrados, com exceção de quando Laerte e Traçal lutavam, mas não chegava a ser uma diferença tão gritante. Shinsai tinha dito que não devíamos dar importância para os valores dessa luta, que era uma brincadeira envolvendo todos os empresários nesse andar… Ele sabia que isso ia acontecer?! Mas como puderam ter tanta confiança?!”

— Não fique tão confuso, Omni — fala Shinsai, quebrando suas divagações. — A situação não é tão complicada. Na verdade, Kaon é um lutador do submundo, possuindo um histórico impecável de seis lutas e seis vitórias; apesar de ter ficado a beira da morte em algumas. Antes desse segundo dia do torneio, todos os membros da sala VIP haviam tomado ciência de que o verdadeiro favorito era ele.

— Um cara com 2 II?... 

— Sim, um cara com 2 II, que é o mais forte da sua geração. Gravem bem em suas memórias tudo o que aconteceu hoje, para que se tornem bons lutadores.

O grupo é pego em um clima depressivo.

O torneio continua.



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