Torneio da Corte Brasileira

Autor(a): K. Luz


Volume 1

Capítulo 37: Maldição

As malas são postas no quarto. Traçal, Mirai e Shinsai estão no andar de baixo do hotel.

— Estamos indo! — avisa Mirai.

— Certo! — Shinsai está no balcão, conversando com o dono do estabelecimento. — Se cuidem!

Traçal e Mirai partem do local enquanto encobertos pela luz branda da manhã. O vento passa por eles, balançando o vestido esbranquiçado da jovem e as pontas do seu chapéu de palha, que porta uma flor grande presa ao laço. Traçal está de óculos escuros, caminhando pelo lado da calçada mais próximo da rua.

Quase não há sinais de pessoas pelo caminho, um lugar pacato.

Em certa parte do caminho, latidos soam desenfreados dos estabelecimentos. Uma veia se ressalta na face do Traçal, Mirai também fica incomodada. Apesar disso, logo esse trecho é deixado para trás.

Em uma região de grama à volta da estrada, enfim conseguem desdobrar uma conversa:

— Não queria dizer isso, mas estou ansiosa… 

— Não fique, idiota! Senão vai me deixar ansioso também! — Ele ajusta a posição dos óculos.

— Hehehe! Faz tanto tempo que não visito o túmulo da minha avó, espero que esteja bem conservado.

— Por que a enterraram nessa cidade distante?

— Foi um pedido dela por ser sua terra natal.

— Ah… 

— Eu era muito apegada a ela… Tenho boas lembranças, sou grata a isso. 

Traçal fica surpreso ao ter sua manga puxada. Ao olhar para Mirai, ela lhe diz:

— Se importa de pegarmos um atalho?

 

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Eles chegam em um túnel de concreto, ambiente que transparece de velhice apesar dos cuidados. Lâmpadas laranjas clareiam o caminho mais extenso que o esperado, demarcando os limites da calçada entre duas vias; pilares sustentam o alto.

— Agora que penso nisso, foi um erro ter escolhido essa rota — anuncia Mirai, quebrando o silêncio cavernoso.

— Fala sério, Mirai! Por quê?!

— Hehehe! Não fique bravo. É só que… se a gente tivesse continuado no caminho longo, passaríamos mais tempo sozinhos.

Racha uma das lentes dos óculos do Traçal.

— Ei! Não diga algo assim do nada!

— Hahaha!

— Tch! Relaxa, temos bastante tempo ainda. Shinsai é mais tagarela do que parece, e aquele balconista é amigo dele de longa data. É capaz de voltarmos antes dele chegar no cemitério.

— Isso é verdade… Que tal irmos em uma churrascaria à noite?

— Você realmente me entende. Ótima escolha.

Passos vão e vão, a saída do túnel está próxima. Afora há um caminho modesto com bordas cobertas de grama rasteira.

Os ruídos da movimentação dos dois soam cada vez mais altos; o caminho se expande. Uma estranha apreensão toma Traçal, fazendo-o parar para olhar os arredores em busca de qualquer coisa errada. Mirai se vira ao notar suas ações, e, quando ia perguntar o problema, é interrompida por um terremoto.

Estremece, tudo estremece.

A imagem deles e do ambiente é distorcida pela força absurda do tremor, que amassa as formas dos jovens em um borrão e lhes tira o equilíbrio até o súbito breu de um desabamento.

Escuro abissal.

Gradualmente um olho se abre. A imagem borrada que capta se torna nítida com o passar dos segundos, saindo de um negro para a silhueta de um amontoado de rochas.

— Finalmente acordou — fala Mirai. Neste instante Traçal percebe que está com a cabeça sobre o colo dela, levantando-se de uma vez, assustado.

Ambos estão com marcas de sujeira, estando uma bagunça o cabelo do jovem.

— O que está acontecendo?! — Ele olha o redor, notando que estão numa espécie de pequena cúpula de rochas empilhadas, com o teto sendo mantido estável por um pilar dobrado.

— Para resumir… Estamos presos em um desabamento. É um milagre que estejamos vivos.

— Hã!?

Traçal está pasmo, a realidade ainda não cai sobre sua consciência mesmo que o mundo já tenha. Ele passa os dedos na testa, notando sangue com o tato.

— Não pode ser…

O lugar está escuro, mas seus olhos conseguem ver ao menos as formas e rastros de cores à volta pela concentração de aura nas pupilas. Ele se vira devagar, deparando-se com a expressão pálida da jovem.

— Mirai?... — Traçal se agacha ao se aproximar rápido dela, ficando a um passo de segurar seus ombros abruptamente. — Você está bem?! Por que… sua respiração está densa?!

Seu sapato desliza em um líquido; uma sensação que o paralisa e estremece cada centímetro da sua alma. Um terremoto interno o abala com milhares de vezes mais força do que o anterior.

— Desculpe, não estou… Um pedaço de ferro perfurou minha perna.

Traçal nota a forma do metal que se estende até o teto. Após um preparo rápido da postura, dá um golpe lateral com a mão em forma de sabre, dividindo-o ao meio. O pedaço arrancado fica preso à parede.

— Obrigada… Você realmente dominou a “Lâmina da Serenidade”, nem senti a vibração do metal, ou talvez seja por eu ter perdido muito sangue… 

— AAAAAAAAAAHH!!!

— Traçal?... 

Ele se levanta desesperado, indo apressado contra a parede que assimila como a rota em que se encontra a saída para o exterior, trocando em sua mente pela passagem limpa. Soca a rocha à frente com toda sua força, causando um estrondo. Mirai fecha os olhos; Traçal cerra a outra mão, a usando para o mesmo propósito.

Linhas de poeira caem do teto, os sons de impacto seguem soando. Ele golpeia a pedra continuamente, torcendo sua expressão de dor ao sentir os metacarpos quebrarem no último contato sobre o concreto, o que o faz dá um passo para trás, eenfim sofrendo com o acúmulo de danos. Os seus dedos estão virados para direções distintas — que não deveriam alcançar —, sujos de sangue com pedaços dos ossos transpassando a pele.

 

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Em outra parte da cidade, Shinsai está correndo pelas ruas a procura dos dois. Enquanto sujo e desesperado, passa por inúmeros cenários reduzidos a destroços. Bombeiros e ambulâncias transitam apressados de um lado a outro, resgatando o máximo de pessoas que podem.

“Desgraça! Se minha yrai não tivesse sido soterrada eu já teria os achado!”

O lutador chega ao cemitério, vendo inúmeras covas maculadas pelos desastres. Não há ninguém fora ele ali.

“Onde vocês estão?!”

 

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No túnel, Traçal está gritando por ajuda, usando frases como: “qualquer um que seja, nos ajude!”, ou “tem uma pessoa ferida aqui!”.

Nenhum sinal de resposta chega. Em decepção mista a raiva, o rapaz torce sua expressão ao limite, branqueando os olhos.

— Pare!! — pede Mirai, evitando que ele comece a socar a parede mais uma vez. Ela tosse por causa do esforço, fazendo com que Traçal se aproxime para checar sua situação. — Tudo bem gritar, mas vai causar um deslizamento se continuar batendo na parede.

— Temos que cuidar do seu sangramento!

— Não temos nada aqui para isso. Estou fazendo meu melhor para o conter com a aura, então apenas se acalme por agora. Retirar o ferro iria causar um sangramento maior, por isso deixe-o aí.

— Mirai…

— Haha! E se possível não grite mais por agora, isso faz minha cabeça latejar, e talvez nosso ar seja limitado, temos que o conservar.

— Mas que droga…! Como você está tão calma?... 

— Não é óbvio?

— Hã?...

— É porque você está aqui comigo.

Algum tempo se passa.

Traçal está senta ao lado dela. Limpa, com a mão que ainda está inteira e parte da roupa, o sangue de algumas feridas menores espalhadas pela jovem, ignorando por completo as suas. Apertando ataduras com a ajuda dos dentes; é terminado o apoio no possível.

“Maldição… maldição…” Repete em sua mente, praticamente esperando que os céus o ouça.

— Traçal, você ficou bem forte, hein? Pelo barulho que fez naquela hora, deve ter conseguido rachar o concreto. Acho que nem o pai consegue fazer isso facilmente.

— Conserve suas forças, podemos falar sobre isso quando sairmos daqui!

— Nah… É o contrário. Na verdade isso está ajudando a manter minha consciência.

— Argh…! Me perdoe, Mirai…

— Não sei pelo que está se desculpando, mas tudo bem, está perdoado.

O rapaz se encolhe ao lado, incrédulo em desespero.

Se eu tivesse sido sincero antes, dizendo que queria que continuássemos pelo caminho longo, nada disso seria assim!”

— Se lembra da conversa que tivemos no outro dia? — fala Mirai, sorrindo.

— Qual?

— Aquela em que você me contou que lhe falta uma motivação forte, como a do seu pai, para lutar. Disse que gosta de treinar e seguir os passos dele, mas que sente que nunca poderá o alcançar pela falta de uma poderosa ambição.

— Eu não sabia o que estava falando… foi uma conversa infantil. A maioria dos profissionais não tem uma grande motivação para estar onde estão.

— Interessante… Isso significa que você teria uma vantagem sobre eles.

— Quanta bobagem! Pare! Você está me fazendo ficar tão nervoso quanto antes!

— Hehehe! Desculpe, Traçal.

Ele fica surpreso ao olhar novamente para Mirai: a enxerga em uma claridade ofuscante — várias vezes mais que a do sol —, discernindo claramente as manchas de vermelho, os rasgos no vestido e o seu sorriso modesto. Repara que ambos os olhos entreabertos dela estão repletos de serenidade.

As horas passam, mais do que os sentidos abalados do jovem podem contar, e então — finalmente — o teto foi aberto em uma escavação.

Traçal ergue o olhar cansado, sendo exposto à luz do sol, que está se levantando para começar uma nova manhã.

Vou te deixar com uma maldição…  

Traçal é levado ao hospital, onde tem suas feridas tratadas. Devido à lotação, recebe alta rápido mesmo com dificuldades para ficar em pé.

...por que quero sempre estar presente em sua vida.

Antes de sair, o rapaz fala com um médico, sendo esse o motivo da sua espera atual na calçada do lado de fora, ficando posicionado do outro lado da rua que leva ao edifício. No anoitecer. Shinsai chega correndo ao lugar, e, logo encontra o rapaz. Traçal mexe os lábios secos, lhe contando o que aconteceu enquanto não ousa tirar os olhos do chão. O semblante do homem escurece, numa forma lisa de negro que não expõe nenhuma das suas características; ele põe as costas na parede, também parando para aguardar o tratamento da filha.

Durante a noite, os dois ainda estão lá nas mesmas posições, sem terem trocado nenhuma palavra. Traçal continua encarando o solo, lembrando-se das últimas horas em que esteve olhando na companhia da Mirai, que já estava desacordada… com a cabeça caída para baixo, em um sono eterno.

Um médico chega correndo até a dupla, chamando suas atenções. Ele está nervoso, mas se apressa em falar, empalidecendo o jovem com suas palavras, e em seguida, se curva com uma expressão amargurada. Após isso, volta para o prédio.

A realidade à volta se desfaz como uma ilusão que nunca deveria ter existido, restando apenas o silêncio mórbido destroçando o interior de ambos no que resta da maldita noite.

O dia fatídico se conclui.

Mirai morreu por falta de sangue. Quando ela perdeu a consciência, eu tentei conter o sangramento com minha aura, mas foi inútil. Dias depois, após o enterramento da Mirai, Eu e Shinsai voltamos para casa, entregando a notícia para os familiares e, logo depois, fui enviado para o meu pai.

 

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De volta ao presente, Traçal está caindo; listras do seu sangue vão para o alto.

Após aquele dia, dizem que eu fiquei com alguns parafusos a menos na cabeça! Hahahaha! Eles que são loucos, minha sanidade é como a de qualquer pessoa normal!

Ah! “Qual foi a tal da maldição?”, foi uma tosca, digna dos moleques que éramos, e eu já disse, mas vou repetir por estar de bom humor: o “topo”! Ela disse que queria as suas cinzas  espalhadas no prêmio do maior cenário competitivo de artes marciais desse mundo! E que por pirraça não me deixaria em paz até que eu realizasse! Podia só ter dito que era um pedido qualquer, mas enfeitou daquela forma…  Idiota.

Hã!? “Como vou levá-la se foi enterrada?” Que invasivo, o que te deu hoje, pai? A resposta é óbvia, não?!

O espectro de Mirai surge e abraça o pescoço dele, em seguida levanta as mãos, sendo de onde começam as linhas interligadas ao corpo dele.

Vou levar o maldito caixão dela no lugar das cinzas quando eu for o campeão!

Traçal range os dentes com a dor das lembranças. Determinado, desliza uma perna à frente; seus músculos se encontram fortalecidos ao limite, com inúmeras veias ressaltadas suportando o forte fluxo o sangue. Ele gira pesado o tronco na projeção de um soco, enfrentando uma ventania, sentindo faíscas largas saírem no atrito entre ela.

Kaon pula para trás enquanto perseguido pelo avanço do punho, que para subitamente. A terra à volta explode; toda a arena — fora o centro onde estão — atira poeira ao alto no soar de um estrondo que vibra as arquibancadas como em um terremoto. Kaon não tem contato com o punho, mesmo assim seus olhos clareiam com sangue escorrendo de suas bordas e do nariz.

“Então você também consegue quando tenta, Traçal… Chegar ao território dos mestres é um grande feito.”

O robusto ainda está sem consciência. Seu corpo segue fortalecido além dos limites humanos, o que torna sua pele demasiadamente arroxeada. O espectro está no alto o controlando, sorrindo em negro — o que o desacordado copia, expandindo a meia-lua de branco ao máximo.

A luta prossegue para a decisão.



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