Volume 1
Capítulo 36: Devoto
— Que conversa é essa? Hahahaha! Tá achando que ainda consegue sobreviver às investidas?! Que seja! Vou te fazer ver as estrelas!
Traçal caminha na direção do adversário. Tal imagina uma área triangular à frente se fechando a cada passo, visualizando constantes tentativas do rival fugindo para os lados — uma simulação perfeita. A cada fuga o rapaz é facilmente alcançado e destruído por socos; a zona imaginária segue fechando.
“Pode ser verdade que você se adaptou ao meu ritmo”, pensa Traçal, “mas não me subestime, meus olhos vão descobrir a verdade por trás desse truque de criança! Ao menos…”
Ele investe, virando o corpo na projeção do punho direito.
“...se você sequer aguentar mais algum tempo!” O vento gerado estremece a ambos.
Apesar da pressão da situação, Kaon suspira, e, desfere uma palmada no próprio peitoral; seu coração para. Os sons ao redor somem, o rapaz é inebriado por uma sensação de agonia, que escurece tudo à volta na perca súbita dos sentidos. Sua frio; a expressão se torna pasma e cansada em um instante. Uma pequena luz surge no centro do coração… estourando, e, como consequência. ocorre o retorno dos batimentos, que aceleram continuamente numa frenesi.
“Atualmente”, considera Kaon , “meu limite é um ‘aumento de duas vezes’...”
Terra é levantada numa explosão; a cabeça do Traçal vira para o lado com a bochecha amassada, sofrendo de um impacto que o deixa incrédulo.
“Hã?!”
Ao se recuperar do espanto, Traçal gira a face de volta à frente, deparando-se com Kaon. O rival está emitindo vapor do corpo, sua pele fica levemente avermelhada, havendo um contraste notável entre o tom agressivo exposto nos físicos de Jay e Ury quando estavam dopados — ainda sim, semelhantes ao agora. Sua postura é a pós-golpe, obviamente o causador do acerto recente.
“...Além disso, perco a precisão, então é inútil”, conclui Kaon, balançando a mão ferida pela força no golpe; a terra é suja com as gotas de sangue.
Traçal pondera a situação por um instante; seu sorriso se expande ao limite. Ele avança contra o oponente, gritando:
— AINDA CONTINUA LENTO!!!
Seu balanço lateral — pesado como um bloco de rocha — levanta uma onda de poeira, falhando em acertar algo. Três impactos são dados no seu torço, mas não surtem efeito. A luta prossegue e, mesmo com sua velocidade e tamanho superior, ele não consegue acertar o adversário.
“Hahahaha! O que é essa luta?”, pensa, indo à frente numa perseguição. “O que é… esse cara? Chegando a esse ponto da manipulação do corpo só para poder lutar mesmo tendo essa aura medíocre! Qual o seu problema… Kaon?!”
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É de manhã. Água escorre de uma torneira, enchendo um balde.
Kaon chega ao local. Esta época o separa poucos anos do presente — quando não tinha cicatrizes, as tantas —, agora vestido com uma roupa mais casual.
Ele se abaixa para pegar o balde, parando ao ouvir a porta do dojo abrindo.
— Estou indo! — diz a moça que acaba de sair, saltando pelos degraus antes de passar correndo até a entrada. Ela possui cabelos brancos; sua roupa é a de um uniforme escolar. Apesar de apressada, percebe que sua mochila está torta, quase perdendo o equilíbrio nas tentativas de arrumá-la.
— Tenha cuidado. — Kaon acena.
— Sim! Até mais tarde!
O silêncio toma o local com a saída dela; o vento balança o jardim de grama. Algum tempo se passa.
Dois cadernos estão abertos sobre uma rocha, que se localiza abaixo de uma árvore. Nas páginas que expõem residem os desenhos de movimentos marciais: como a postura de luta que Kaon usa no futuro e o seu soco reto de direita com a base aberta semelhante ao do karatê. Não muito longe dos cadernos, segurando um jarro em cada mão pelo contorno das suas bocas, está o rapaz em uma pose ereta com os pés juntos. Seus músculos estão enrijecidos ao limite pelo peso da água que os preenchem, ficando por horas nesse estado que o leva ao limite.
A posição do sol muda. Atualmente o rapaz está batendo com o lado da mão em uma tábua enrolada em palha — uma repetição sem fim; seu suor se espalha a cada balanço junto do som de expiração. O material tem marcas escuras pelo longo tempo de uso e, algumas vermelhas, também causadas pelo uso excessivo.
Ele começa a socar e chutar um amontoado de bambus cobertos de cordas. Se vê ser encoberto constantemente pelos dias de treino do passado, recordando-se das inúmeras vezes em que quebrou os dedos nesse treino. Mesmo nos dias de chuva ou de calor extremo, se lembra de que esteve lá com sua inabalável rotina de treino.
Dentro do dojo, Kaon chuta alto, criando uma correnteza fraca de ar no cessar da perna. Há dois espelhos pelo local refletindo sua imagem, ele os olha, fazendo ajustes no seu posicionamento a cada balanço.
O sol está se pondo, Kaon senta no meio do lugar com os olhos fechados para se concentrar. Sente o pouco de aura que possui mover-se por seu corpo, em contraste a quando era mais jovem, em que isso acontecia devagar e com a energia tremendo pela falta do seu controle, ameaçando romper-se da condensação a qualquer segundo.
— Desculpe a demora. — A porta é aberta, a jovem de cabelo branco adentra no lugar, pois já é noite. Senta-se de uma vez numa queda, deixando a bolsa cair para o lado. — Que dia terrível… Hoje teve um evento em que tínhamos que cuidar de estandes, e valia nota em todas as matérias.
“Está na personalizada ‘branda’ agora…” pensa Kaon, que em seguida a responde: — Não havia o que fazer, afinal se tratava de conseguir sua nota, e isso é importante para um estudante se formar.
— Mesmo assim, Kaon… É um porre, você saberia se fosse para a escola.
— Não se divertiu nenhum um pouco por lá?
— Bem, um pouco. Minhas amigas estavam comigo.
— Ótimo.
Os segundos passam. Subitamente um sorriso selvagem se molda no rosto da moça junto do afiar do seu olhar.
— Querido, mas e aí?! Ao que interessa: treinaremos hoje também?! — Ela levanta irradiando hostilidade. — Já que daqui a pouco você vai sair, que tal um round?!
— Tudo bem. — Ele também se ergue.
Os dois se encaram tomando suas posturas de lutas, que são semelhantes.
Mais horas se passam.
Kaon agora está trabalhando como atendente em um restaurante noturno, interagindo com um cliente sem desfazer sua expressão impassível de sempre. E assim sua vida segue, algo atemporal independente de quantos dias se passem. Outono, inverno, primavera e verão, um ciclo interminável, que está sempre mudando o aspecto do dojo, mas não seus hábitos.
As veias de um braço endurecem, a mão se torna firme como uma rocha, os bambus são estourados em milhares de pedaços com um único acerto. Kaon recua o punho direito, refazendo sua postura de luta.
Entendi a “verdadeira força”.
Dá passos lentos de frente para o espelho, notando a formação de uma imagem residual — mas ainda falha — do seu tronco.
Entendi como mover o corpo.
No tempo da meditação, Kaon coloca sua aura no cérebro, analisando a sensação da energia agindo por lá, conduzindo-a até conquistar uma liberação de endorfina.
Entendi o propósito da minha aura.
O tempo continua passando.
Seus pés pisam no concreto de uma arena, sua vista observa os brados do público à volta. O lugar não é grande, nem limpo, havendo várias marcas vermelhas pelo solo.
Sai do meu conforto e consegui experiência.
Em um quarto de descanso, seu rosto está todo enfaixado e sujo de sangue. Apenas um dos olhos fica exposto encarando o brilho da lâmpado no teto.
Se eu tivesse que me avaliar, só resultaria em uma definição: defeituoso. Contudo, usarei da melhor forma as minhas “ferramentas quebradas”, e não terei nenhum arrependimento com os resultados.
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Meses antes do Torneio da Corte houve seus testes de qualificação. Se tratam de quatro etapas, nomeadas respectivamente: Força, Velocidade, Técnica e Alma. Neste ponto, é óbvio para os lutadores o propósito das três primeiras, mas a quarta se tornou uma incógnita.
No primeiro teste os lutadores socam, chutam e erguem peso enquanto avaliado por máquinas que medem seus valores. No segundo teste eles correm, onde estimam o poder de suas arrancadas e aceleração seguinte; também acontece de ser anotado os dados sobre seus pulos e velocidade na projeção dos ataques. No terceiro teste são postas suas precisões e reações à prática contra obstáculos e alvos que surgem do nada ou que se movem demasiadamente rápido.
Apesar do desenrolar dos três testes… nenhum participante é desclassificado.
E então é chegada a hora do quarto teste — o simples e decisivo. Se trata de um confronto contra avaliadores selecionados a mão por Holliver: lutadores profissionais — literalmente os mais fortes do país — convocados que assustam um por um dos alunos nos encontros para os duelos. Contra tamanha surpresa não houve tempo de preparo, apenas um chamado para o tatami que decide tudo.
Em algum momento, Shinsai fica contra Kaon, sendo o responsável pela avaliação final dele.
— Ei! garoto. — Estão no centro do tatami, esperando o juiz terminar de conversar com um jurado no fundo. — Não estou sentindo nenhum abalo na sua aura, você tem um ótimo controle mental. Não pareço uma ameaça para você?
— Não se trata disso… — Kaon responde, já imerso na hostilidade de uma batalha arriscada, direcionando um olhar penetrante à frente. — Ouvi dizer que é o homem mais forte do mundo.
O juiz se posiciona, prestes a dar o sinal de começo com o braço; Kaon assume sua postura de luta.
— Isso significa que é a muralha perfeita para eu testar meus limites como um desafiante. Sendo sincero, não vejo mais relevância de passar nos testes com você diante de mim.
— Então quer que eu lute a sério?
— Eu ia perguntar isso: se teria a convicção de entrar em um combate mortal. O que fará, Shinsai? Posso lutar com intenção de matá-lo?
— Se tenho convicção?... Bem, faz alguns anos que fiquei apático sobre viver. Faça o que quiser. Se puder me matar, o meu título será seu. Não que ele vá valer de algo para um lutador sério como você, afinal só é algo comercial não real.
O juiz abaixa o braço, dando início a luta.
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De volta ao presente do torneio, Shinsai sorri.
— Você que avaliou ele?! — questiona Holpos, representando as emoções do grupo após ouvirem essa história.
— Sim… Ainda estou vivo e aquele garoto está lutando neste torneio, com isso vocês já sabem o que aconteceu. No fim o maldito ainda conseguiu me tirar sangue.
— O quê!? SÉRIO?!!
Omnislai abaixa a cabeça, se recordando de poucos dias atrás…
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…Está em um supermercado fazendo suas compras até, em determinado momento, ver Kaon pelos vidros. Tal acaba indo para a calçada do outro lado da rua, com isso Omnislai corre atrás do rapaz para conversar, chamando-o enquanto acena com uma mão, porém não obtém resposta.
Kaon só é alcançado em um beco no caminho, por onde adentra até certo ponto e para; Omnislai, que acaba de o alcançar, estranha essa visão. O rapaz ligeiro chega a tentar puxar assunto de alguma forma, com a única resposta que recebe ser o formar de uma postura de luta, enchendo-o de surpresa. Seu corpo não tarda em entender a situação, seu sangue começa a ferver, fazendo-o também se preparar para a batalha: com um sorriso no rosto, coloca as mãos no chão para disparar igual um velocista.
Omnislai avança como uma bala tão rápida quanto é interrompida: uma pancada no meio do peitoral o entorta por completo, suas costelas quebram; é jogado à frente de costas para o chão. Ele cospe sangue, olhando embasbacado para o alto com uma mão no amasso por onde foi atingido.
O oponente passa por ele, não o atacando por saber que o confronto já acabou, afinal Omnislai não pode mais se mover.
Depois de algum tempo uma ambulância chega no local e o leva. Como ninguém na calçada havia o notado caído por lá, ele entende que Kaon tinha a chamado.
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A memória acaba. Omnislai se foca no telão assim como o grupo, ouvindo Shinsai dizer:
— Depois da luta que tive com ele, não consigo mais chamar Kaon de “garoto”, afinal ele já alcançou o patamar de um profissi- não, de um mestre.
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Kaon está rodando pelo chão novamente, parando ao bater as costas na parede; é refletido para o lado dela, onde fica estirado.
Em um campo de terra, um broto atravessa a terra úmida até ficar de pé, reluzente pelo seu aspecto claro está no alcance do sol.
O rapaz levanta, começando a correr. Ele desvia de um balanço lateral do adversário, mandando o seu punho contra o rosto dele.
“Droga! de novo!”, reclama Traçal, vendo de relance o aproximar do ataque. “Já consigo diferenciar as silhuetas falsas, mas nos golpes dele o tempo é curto demais para fazer uma distinção! Esse é o real?! Ou o verdadeiro está vindo por baixo?!”
Ele aperta os dentes, mostrando partes da mandíbula.
“Com certeza vai ser embaixo!”
Boa parte da sua aura se concentra na lateral do corpo, sucedendo do punho amassar sua face no impacto, inclinando-o para o outro lado igual o balanço de um pêndulo.
O broto está maior, agora uma muda repleta de folhas, molhada por uma chuva recente. Seus galhos pequenos balançam na passagem do vento, resistindo para não serem despedaçados.
Embates e mais embates. Uma ajoelhada acerta Traçal na barriga; seu rosto é amassado por um chute; seu plexo solar é acertado por um direto de direita; as cores ficam negativas quando ele sente seu joelho ser atingido, o que quase o faz cair. O robusto não está parado, sempre se movendo enquanto tenta atacar com socos ou chutes compactos, nunca decaindo de seu refinamento, ainda sim, sem sucesso.
“Isso é ruim! Eu não consigo prever nada do que ele faz! Esse cara… é mais forte do que eu! Preciso fazer algo, senão vai ser eu quem vai acabar beijando o chão!”
A realidade se torna azul de um lado pelo formar de um sabre com a mão, o outro lado se torna vermelho no enrijecer do punho. Traçal mostra suas presas.
Traçal ataca com um corte diagonal do azul, que é evitado com um passo para trás; o vermelho vai à frente como um tiro de canhão, enchendo o ar de vapor, mas não consegue tocar o oponente; o queixo do robusto é atingido por um gancho, causando um estrondo, jogando seu semblante pasmo para cima.
— Não use esse estilo incompleto contra mim — fala Kaon. Ele volta a atacar, dominando o oponente com uma sequência sem fim de ataques.
Uma árvore robusta — sua força. Cheia de raízes que se alastram profundamente no solo, com um tronco alto que tampa o sol, destacando-se na floresta pelo seu tamanho e vitalidade.
As íris do Traçal somem pelo peso dos danos acumulados. Sua consciência se foi… na derrota.