Volume 1

Capítulo 5: Corra

 

 

(Pov: Anzu Hanashiro.)

HAVIAM SE PASSADO TRÊS DIAS desde que Kaoru e eu nos encontramos para almoçar no café. Eu estava sentada na minha cama, abraçando os joelhos e mexendo no meu celular. Minhas palmas estavam um pouco suadas apesar do ar-condicionado, talvez um sinal de que eu estava mais nervosa do que imaginava. Abri minha agenda telefônica e rolei até o nome de Kaoru, então respirei fundo.

"...Vamos lá. Você consegue fazer isso."

Apertei o botão de chamada. 

Então esperei.

1

Três dias antes, eu tinha comprado a última edição da Giorno Mensal na livraria local logo de manhã cedo e descobri que havia perdido a competição de primavera. Embora, honestamente, eu não tivesse ilusões sobre meu trabalho ser merecedor de prêmio desde o início, então não foi uma grande decepção. 

De certa forma, foi um pequeno alívio, permitindo-me focar totalmente na expedição do Túnel Urashima sem dúvidas persistentes.

Pouco depois, recebi uma ligação de alguém que se apresentou como editor da revista. Após verificar brevemente minhas credenciais, ele expressou suas condolências por eu não ter vencido o concurso, mas disse que havia sentido "uma centelha de algo" em meu trabalho. 

Não foi a avaliação mais específica, com certeza, mas me fez fazer uma pequena dança feliz idiota. Aquela empolgação emocional não durou muito, pois ele prosseguiu listando uma série de maneiras em que minha submissão estava muito aquém

(N/T: Aquém significa que algo não chegou ao nível desejado ou esperado, ou seja, ficou abaixo do esperado em qualidade ou desempenho.)

Você não pode fazer X, deveria ter feito Y nesta parte, por que diabos você não fez Z, e assim por diante. Eu fiz o meu melhor para responder às suas perguntas, embora estivesse desorientada, e no final ele sugeriu que nos encontrássemos pessoalmente em algum momento para discutir os detalhes, então desligou. A ligação durou mais de trinta minutos, mas para mim, pareceu piscar de olhos.

Então me dei conta: eu tinha uma escolha a fazer. Eu seguiria essa nova oportunidade e trabalharia para criar mangás profissionalmente, ou entraria no Túnel em busca de um propósito maior na vida, independentemente? 

Era um dilema difícil, com certeza. 

Depois de pensar muito e não chegar a uma conclusão, decidi procurar a orientação de Kaoru. Isso também não ajudou. Tudo o que fez foi adiar a expedição, e agora eu estava determinada a tomar uma decisão final antes de atrasá-lo ainda mais. Passei todas as horas acordada deliberando comigo mesmo. 

Três dias depois, na manhã de 4 de agosto, finalmente tomei minha decisão.

Eu iria entrar no Túnel afinal. Não podia deixar Kaoru na mão. Entrei em ação. Primeiro, liguei para o editor e agradeci sinceramente a oferta, mas tive que declinar por motivos pessoais. Estava preparada para ter que me explicar bastante, mas ele simplesmente disse "ok" sem perguntar o porquê. Fiquei grata por a ligação ter corrido bem, embora isso me fizesse questionar se ele tinha me enrolado com toda aquela conversa sobre meu "potencial", o que foi um sentimento bastante ruim, para ser honesta. Pelo menos agora eu não tinha mais nada com que me preocupar. Queria compartilhar essa notícia com Kaoru o mais rápido possível, então respirei fundo e liguei. Mas então...

 

2

[Pedimos desculpas, mas o número que você discou está atualmente indisponível. Ou foi desconectado ou está fora do alcance do provedor de serviços local.]

Então ou o celular dele estava descarregado ou ele estava fora de alcance. Dado o quão terrível era o sinal de celular geralmente em Kozaki, eu tendia a presumir que era o último. Meu telefone perdeu sinal enquanto eu estava no ônibus pela rua principal, então não era tão incomum. Mas por algum motivo, eu me senti incomumente apreensiva. 

Esperei três minutos, então liguei novamente.

[Pedimos desculpas, mas o número que você discou está atualmente indisponível. Ou foi desconectado—]

Esperei mais três minutos.

[Pedimos desculpas, mas o número que você discou está atualmente indisponível. Ou—]

Esperei trinta.

[Pedimos desculpas, mas o número que você discou—]

Levantei da cama. De jeito nenhum. Ele não faria isso. Cenários pessimistas escorriam um por um da minha cabeça, preenchendo lentamente minha mente com uma enxurrada de dúvidas. O nó no meu estômago se apertava enquanto cada respiração ficava mais superficial que a anterior. Liguei para Koharu o mais rápido que pude.

"Ei, o que foi?"

"Kawasaki? Você sabe onde fica a casa do Tono-kun? Se sim, poderia me dizer?"

"Huh? Sim, sei onde ele mora. Por que está perguntando?"

"Desculpe, não posso explicar agora. Você poderia apenas me dizer? É extremamente urgente."

"C-Caro, sem problemas. Uhhh, acho que vou mandar o endereço dele por mensagem, e você pode ir de lá?"

"Legal, obrigada."

Desliguei, e a mensagem de Koharu chegou rapidamente. Tinha o endereço de Kaoru, além de uma linha abaixo dizendo que ela estava preocupada comigo e que deveríamos conversar em breve. Odiava não oferecer a ela uma explicação mais detalhada, mas realmente não tinha tempo. 

Peguei minha carteira, calcei minhas sandálias na entrada e saí correndo pela porta da frente. Enquanto corria pelo corredor do condomínio, verifiquei meu celular para ver quando o próximo trem para a estação perto da casa de Kaoru passaria. Parecia que seria pelo menos uma hora.

Caramba, odeio viver no interior.

Peguei minha bicicleta no bicicletário e ergui uma perna sobre ela, então saí disparada na direção do bairro de Kaoru. Era um trajeto reto por um tempo, seguido por uma subida íngreme. Embora eu geralmente tivesse confiança em minhas habilidades atléticas, essas estradas rurais cheias de colinas podiam ser bastante desgastantes às vezes. 

O pavimento irregular aos poucos minava minha resistência, e o suor escorria por todo o meu corpo. Meu cabelo se recusava a ficar longe dos meus olhos enquanto eu pedalava pela inclinação íngreme. Quando finalmente cheguei ao topo, pude ver até o outro lado do oceano aberto. Era uma vista linda, mas eu não tinha tempo para apreciá-la, então desci a encosta oposta da colina. 

Depois de passar por uma antiga estação de bombeiros com uma luz vermelha de emergência desgastada sobre a garagem, avistei uma grande casa antiga. 

Era ali.

Estacionei minha bicicleta na borda da propriedade e coloquei o descanso lateral, então corri para tocar a campainha. Depois de cerca de um minuto de espera, um senhor mais velho atendeu à porta com uma mão enquanto coçava a parte inferior das costas com a outra. Assumi que era o pai de Kaoru, embora os dois não se parecessem em nada.

"Olá, posso ajudar?" 

Ele perguntou.

"Olá, senhor. Eu sou Ton... Sou uma das colegas de classe do seu filho. Ele está por aqui?"

O homem parou de coçar as costas e me olhou com suspeita.

"Não... Receio que ele não esteja em casa no momento." 

"Há quanto tempo ele saiu?"

"Uhhh... Desde anteontem, acho?"

Senti o sangue drenar do meu rosto. Em seu lugar, veio outra onda de ansiedade e urgência. 

"Para onde ele foi?! Por favor, você precisa me dizer!"

"Sei lá. Imaginei que estivesse passando a noite na casa de um amigo. Ele tem feito isso com bastante frequência ultimamente."

"...Tudo bem. Obrigada pela ajuda, senhor." 

Eu me curvei rapidamente antes de correr de volta para pegar minha bicicleta mais uma vez. Se ele está fora há dois dias, isso só pode significar uma coisa... 

Eu fiz o meu melhor para afastar esse pensamento angustiante da minha mente. Não adiantava me estressar ainda mais. Eu só precisava me apressar. E rezar.

Enquanto eu pedalava o mais rápido que podia pelas estradas sinuosas em direção ao Túnel Urashima, senti um umidade na minha bochecha. Pensando que era uma gota de suor, limpei, apenas para ser rapidamente substituído por mais uma dúzia de gotas rápidas. Meu Deus. Estava chovendo; e há apenas um minuto estava tão agradável lá fora. 

O chuvisco rapidamente se transformou em um aguaceiro completo, e eu estava encharcada da cabeça aos pés. A cada rotação das rodas, sentia a sensação extremamente desagradável das minhas roupas molhadas grudando e depois se soltando da minha pele repetidamente. 

Então, antes que eu percebesse, estava chorando — embora não tivesse certeza do porquê. Acho que simplesmente não conseguia mais segurar tudo. Mesmo assim, continuei pedalando, tão rápido quanto minhas pernas podiam me levar, mesmo que estivessem queimando. Mesmo depois de começar a doer tanto que pensei que tinha torcido ambos os tornozelos. Continuei pedalando.

"Vamos lá, Tono-kun... Por favor...!"

 

3

Depois do que pareceu uma eternidade, finalmente parei na entrada do Túnel. Tinha jogado minha bicicleta no chão mais para trás na estrada e corrido o resto do caminho a pé, minhas sandálias tinham caído em algum lugar ao longo do caminho. As solas dos meus pés latejavam de dor por serem perfuradas por centenas de pequenos seixos. Eu precisava alcançar Kaoru o mais rápido possível, então engoli a dor e entrei no túnel mesmo assim.

Um pouco adiante, notei uma garrafa de vidro no chão. Após uma inspeção mais detalhada, vi um pequeno papel dentro. Uma mensagem em uma garrafa? Só podia supor que Kaoru tinha deixado para mim, então peguei e tirei a rolha. 

Certamente, eram algumas folhas de papel de caderno dobradas, todas preenchidas com lápis. Limpei a chuva e o suor das minhas mãos nas minhas roupas para não estragar o papel e comecei a ler a carta desde o início, devagar e cuidadosamente.

Para Anzu Hanashiro.

Se você estiver lendo esta carta e seu nome não for Anzu Hanashiro, por favor, coloque-a de volta na garrafa e devolva-a ao local onde a encontrou. Embora isso sendo dito, não consigo imaginar ninguém além dela se aventurando aqui e tropeçando nela, então vou continuar presumindo que a pessoa que está lendo isso é, de fato, Anzu Hanashiro.

Primeiro as coisas: Eu devo te pedir desculpas. Sinto muito mesmo por ter entrado no túnel sem você. Você provavelmente se sente muito traída agora. Caramba, não te culparia se nunca me perdoasse. Mas se você pudesse ao menos ler esta carta até o fim antes de me abandonar para sempre, eu realmente apreciaria.

Agora então. Tenho certeza de que você está se perguntando por que decidi deixar você para trás e entrar no túnel sozinho. Então vou te dizer agora. A resposta curta é: Eu acho que você realmente precisa aproveitar essa oportunidade de fazer mangá imediatamente. Seja lá o que você acha que pode encontrar aqui, você realmente não precisa disso. 

O que você realmente precisa é fazer um nome para si mesma como artista de mangá o mais rápido possível. Aquela história que você escreveu foi envolvente, e merece ser lida por uma audiência muito mais ampla do que apenas eu. Vou admitir, fiquei um pouco surpreso no começo ao ouvir que estavam prontos para designar um editor só para você, mas sinceramente? Com o quão boa você é, eles seriam totalmente estúpidos em não fazer isso. Você merece tudo isso. Eu realmente quero dizer isso.

Mas você sabe melhor do que eu que as tendências de mangá mudam rapidamente com o tempo, certo? Praticamente tudo que é popular hoje vai parecer ultrapassado em quatro ou cinco anos, e é difícil dizer se algo que ressoaria com as pessoas hoje ainda seria popular muito mais adiante. Sinto que os gostos e sensibilidades do leitor médio flutuam e amadurecem junto com a indústria como um todo. 

Não que eu seja um especialista ou algo assim, entende? Meu ponto é que realmente acho que você precisa começar com o pé direito e fazer sua grande estreia o mais rápido possível. Nisso, tenho quase certeza. Se você realmente sente que mangá é sua verdadeira vocação na vida, então não deve perder mais tempo perseguindo fantasias como eu. Você tem o talento — o seu sonho está bem ali, esperando para ser alcançado.

Nesse sentido, há mais uma coisa que gostaria de dizer. Você me disse há algum tempo que sua motivação para explorar o Túnel Urashima era porque você "queria ser alguém extraordinário", lembra? E, bem... se esse é realmente o seu sonho, então não vou ficar aqui e cuspir em cima dele. Para ser honesto, porém, não tenho tanta certeza se você realmente precisa estar aqui fora perseguindo o extraordinário só por causa disso. Porque você me parece o tipo de garota que é totalmente capaz de aproveitar a vida e encontrar realização de todas as maneiras normais também. Reconheço que só nos conhecemos há um mês, mas ainda sinto que te conheci muito bem nesse curto período de tempo.

Quando você se agarrou à minha camisa como se fosse sua vida naquela primeira vez que exploramos o túnel à noite, pude ver o quão assustada e vulnerável você pode ser. Quando você me mostrou o seu mangá e eu exaltei o quão incrível era, pude ver o quão extasiada você pode ser quando percebe que criou algo com valor artístico genuíno. Quando nós três fomos ao festival juntos, pude ver o quanto você pode se divertir quando relaxa. E quando eu disse que acho você bonita (o que eu quis dizer, aliás), pude ver o quão adorável e vermelha você fica quando está envergonhada.

Você quer saber o primeiro pensamento que me veio à mente, cada uma dessas vezes? "Nossa, ela realmente é apenas uma garota comum por dentro." Sim, percebo que para você, isso provavelmente é o maior insulto imaginável. Deus nos livre de alguém se sentir contente em ser normal, certo? Mas, como eu disse acima, realmente não estou tentando menosprezar seus sonhos aqui. Quero que você pense muito sobre essas coisas, é só isso. 

Sobre o que você realmente quer da vida.

Se você seguir meu conselho e decidir não entrar aqui, quero que saiba que não espero que me espere. Quero que faça toneladas de novos amigos, viva sua vida ao máximo e ria tanto, que tenha cãibras abdominais todos os dias. Quero que escreva o mangá dos seus sonhos e deixe o mundo inteiro ver o quão incrível a contadora de histórias Anzu Hanashiro é. E quando finalmente sair daqui, espero ver seu nome listado lá em cima junto aos grandes de todos os tempos. Acredite quando digo que sinceramente, de todo o coração, mal posso esperar para ver quais mundos maravilhosos você vai inventar.

Por fim, gostaria de dizer mais uma coisa, caso ainda esteja aí do outro lado da cerca.

Você já é a pessoa mais extraordinária que já conheci, Hanashiro. E sim, percebo que isso não é realmente a mesma coisa que ter seu nome registrado na história. Mas talvez o nome Anzu Hanashiro não precise significar algo para cada pessoa.

Talvez seja o bastante significar o mundo para apenas uma.

 

4

(Pov: Kaoru Tono)

Verifiquei meu relógio de pulso enquanto corria pelo corredor. Dezoito minutos após meia-noite. Eu havia feito questão de passar pelo primeiro torii exatamente à meia-noite, o que significava que eu estava no tempo do túnel há pouco menos de vinte minutos — quase um mês em tempo do mundo real. Lá fora, minhas férias de verão haviam acabado. 

Eu presumia que Anzu provavelmente já tinha lido minha carta também. Considerando que ela era uma corredora muito mais rápida do que eu, o fato de eu não tê-la ouvido me perseguindo era praticamente prova positiva de que ela tinha seguido meu conselho e decidido não entrar no túnel, o que foi um alívio. Um enorme alívio.

Desculpe, Hanashiro. Desculpe por te forçar a tomar uma decisão tão dolorosa. Não sei como vou conseguir te recompensar. Eu sei que você tem sentimentos por mim. Eu consigo perceber. Também consigo perceber que estou me apaixonando por você também. Mas seus sentimentos por mim são diferentes — são fruto de um desejo equivocado de interpretar o papel de heroína trágica por procuração. Você anseia pelo drama e pela intensidade emocional que acha que estão faltando em sua vida, e pensa que eu posso fornecer realização ou crescimento para você nesse aspecto, como alguém que experimentou muitas perdas próprias. Mas eu não posso te dar isso. Literalmente não tenho.

Se você realmente quer ser alguém extraordinário, não perca seu tempo se envolvendo com um desastre como eu. Apenas concentre-se em ser a melhor versão de si mesma que puder ser. Não saia procurando por atalhos sobrenaturais ou uma história trágica que lhe renderá rápida notoriedade ou simpatia barata. Você tem que se dedicar e trabalhar duro para subir essa escada como todos os outros. Eu sei que você odeia fazer as coisas do jeito normal, mas posso prometer que a vista do topo será muito mais doce quando você sentir que realmente a conquistou.

E você vai chegar lá. Eu sei que vai.

Veja há quanto tempo você está criando seu próprio mangá, e sem nunca compartilhar nada disso com ninguém antes de me conhecer. Tenho certeza de que houve momentos em que você se sentiu desencorajada porque a história não estava se desenvolvendo e pensou em abandonar o lápis de vez. Ou talvez você realmente ame desenhar com todo o seu coração, e nunca tenha considerado desistir disso, não importa o que o resto do mundo possa dizer. De qualquer forma, você não desistiu desse sonho. 

E aqui você está hoje, tendo seu trabalho oficialmente reconhecido por profissionais da indústria. Isso, para mim, parece muito extraordinário. Muito mais do que tropeçar em um túnel mágico poderia ser, e muito mais significativo também. Então, por favor, Hanashiro, não deixe essa oportunidade escapar. Viva sua vida enquanto pode, porque o amanhã nunca é garantido. Especialmente quando você tem a chance de ser alguém aqui mesmo, hoje.

Saia por aí e viva como se realmente importasse.

E não importa o que faça, nunca acabe como eu.

 

TEMPO TOTAL DECORRIDO: 1 HR 25 MINS (FORA: 141 DIAS)

 

Parei abruptamente. 

"Nossa, o que é isso..." 

Um pouco mais à frente, vi o túnel se curvar para cima em uma inclinação íngreme. Ainda era um caminho reto, então não havia motivo real para hesitação, mas certamente isso iria cobrar um grande pedágio da minha resistência, e minhas panturrilhas já estavam tremendo como pernas bambas. 

Eu não podia me dar ao luxo de machucar um ligamento ou algo assim nesta fase do jogo, então decidi fazer uma pausa de cinco minutos, para garantir. Me agachei no chão e peguei minha garrafa térmica da mochila para tomar um bom gole de água.

Eu devia ter corrido pelo menos dez quilômetros, então realisticamente, deveria ter saído do outro lado do túnel. O fato de eu ainda não conseguir ver a saída parecia sugerir que havia alguma confusão espaço-temporal acontecendo. 

Eu sentia que estava fazendo um monte de progresso, mas, honestamente, não havia como saber se eu estava nem mesmo a décima parte do caminho pelo túnel ainda. Curiosamente, desta vez, ainda não tinha encontrado nada estranho do meu passado que não deveria existir dentro deste espaço. Não que eu não estivesse grato por isso, entende, mas estava começando a me deixar ansioso. As coisas estavam indo muito bem.

 

5

Sentindo-me inquieto, verifiquei meu relógio de pulso. Apenas dois minutos haviam passado desde que me sentei para um breve descanso, e já estava ansioso para levantar e seguir em frente. Era impossível realmente descansar com o pensamento de quanto tempo do mundo real eu estava desperdiçando a cada minuto pensando constantemente na minha mente. Cada segundo gasto parado fazia muito mais para me desgastar mentalmente do que o cansaço da corrida jamais poderia. Levantei, dei um grande suspiro, e então comecei a subir rapidamente a inclinação íngreme.

 

TEMPO TOTAL DECORRIDO: 5 HRS 20 MINS (FORA: 1 ANO, 168 DIAS)

 

"Uf... uf..."

Minha corrida leve havia oficialmente se transformado em uma caminhada pesada. Com cada passo pesado, as solas dos meus sapatos raspavam alto no chão rochoso do túnel. Eu não tinha ideia de quanto já havia avançado. Tudo o que eu sabia era que todas as articulações e músculos das minhas pernas doíam como o inferno. Durante as primeiras três horas ou mais que estive no túnel, eu gritava o nome da Karen a cada dois minutos, mas agora não conseguia reunir energia. 

Já era difícil tentar me impulsionar para a frente. Até agora, um ano e meio havia passado no mundo exterior, mas eu não tinha visto nem sinal da minha irmãzinha. Tudo o que eu tinha visto eram um número infinito das mesmas tochas exatas e os mesmos torii exatos — embora tenha havido algumas mudanças, como as subidas ou curvas repentinas no curso do túnel. 

Por um tempo, estava preocupado que a primeira subida íngreme pudesse durar para sempre, mas logo se reverteu em um passeio fácil morro abaixo, e também houve um momento em que enfrentei várias curvas de noventa graus em rápida sucessão. Meu senso de direção estava completamente desorientado neste ponto, e eu não tinha ideia se deveria estar mais subterrâneo ou acima do solo, ou se estava indo na mesma direção horizontalmente. 

Felizmente, ainda não havia ocorrido nenhuma bifurcação ou interseção, então pelo menos eu sabia que ainda estava fazendo algum progresso.

"Argh... droga..."

Minha garganta estava seca, e eu já havia consumido quase metade da minha reserva de água. Considerando que ainda tinha que voltar todo o caminho que tinha percorrido, realmente não queria beber mais do que isso. Por que diabos eu decidi escolher o Calorie Mate, talvez o maior provocador de sede, como minha única fonte de nutrição nesta jornada? 

Cara, mataria por um Lifeguard gelado agora mesmo, pensei. 

Mesmo assim, continuei, tentando suprimir minha sede insatisfeita, quando de repente ouvi um barulho alto à frente, como o som de uma grande pedra sendo virada de lado. Um vago sentimento de déjà vu me fez parar exatamente onde estava. Eu sabia que tinha que ser algum tipo de presságio. Uma das estranhas manifestações do túnel estava prestes a aparecer diante dos meus olhos. Um arrepio percorreu todo o meu corpo, e um zumbido baixo soou nos meus ouvidos.

...Não. 

Não era apenas na minha cabeça. Era um som real. O som de milhares de passos e vozes humanas, cada uma tão animada e cheia de vida. No entanto, por mais que eu tentasse, eram tão numerosos e confusos que não conseguia distinguir uma única palavra. Mesmo assim, havia pessoas ali. Pessoas além de mim, bem à frente. Muitas delas. Umedeci a garganta com uma nova camada de saliva e chamei.

"Karen...? Você está aí...?"

Dei mais um passo à frente — mas então algo se estendeu e agarrou meu braço direito, e meu coração quase saltou para fora do peito. Aterrorizado, virei-me para olhar por cima do ombro, e minha mandíbula caiu. 

Era meu pai.

 "Aqui está você, Kaoru", ele disse. "Estive procurando por você por toda parte."

Meu Deus. Meu Deus, meu Deus, meu Deus. Estou ferrado agora. 

Como diabos ele me encontrou aqui? 

Minha cabeça era uma bagunça confusa de pânico e medo. Foi um choque tão grande para o meu sistema que meu cérebro ainda estava tentando acompanhar.

"O que houve? Você parece que viu um fantasma. Não está se sentindo bem?"

Isso me fez finalmente voltar aos meus sentidos. Não havia tensão na voz do meu pai. Ao observar melhor, vi que ele estava usando um yukata de verão, e seu rosto parecia um pouco mais jovem também. Algo não estava certo aqui. Não, nada estava certo. Como diabos ele chegou aqui? Se ele tivesse me seguido até aqui, com certeza eu teria ouvido seus passos ou sua voz me chamando. 

Enquanto ponderava esse pequeno enigma, notei o buraco enorme atrás do meu pai, através do qual uma multidão animada de pessoas podia ser vista. Aparentemente, essa era a origem das vozes que eu vinha ouvindo.

Fiz o meu melhor para reunir meus pensamentos e analisar a situação racionalmente. De ambos os lados da multidão, também consegui distinguir dezenas de lanternas de papel vermelho e barracas de comida. Era como se um festival inteiro estivesse acontecendo através de um pequeno portal no lado do Túnel Urashima, e uma versão mais jovem do meu pai acabara de entrar do outro lado.

Não, isso é impossível. 

A explicação muito mais provável era que isso era uma ilusão conjurada pelo próprio túnel. Ainda era um fenômeno "impossível", em certo sentido, mas pelo qual eu tinha pelo menos motivos para acreditar que era plausível devido à experiência anterior.

"O tumulto está te incomodando, filho? Se quiser, podemos ir para casa."

A realização de que este não era o mesmo pai que eu havia deixado para trás foi um grande alívio. Esse alívio foi rapidamente seguido por uma onda de raiva. Por que o túnel me deu ele e não a Karen? Mesmo que fosse sua versão mais jovem e gentil, eu não queria mais nada com esse cara. Nem mesmo queria ver sua cara feia novamente.

Ainda assim.... por alguma razão inexplicável, senti uma estranha sensação de tranquilidade e pertencimento. Isso me irritou além da conta, mas lá no fundo, uma parte de mim ansiava desesperadamente se agarrar a esse homem que deveria ser minha figura paterna, mesmo que ele tivesse falhado miseravelmente nesse aspecto. 

Era uma emoção que eu pensava ter descartado anos atrás. Eu podia lidar com ele me ignorando, ou me maltratando fisicamente ou verbalmente, mas isso eu não conseguia suportar. Isso me lançou a uma confusão total. Fiquei parado, congelado no lugar.

"Kaoru? Você está bem, querido?"

Então veio outra voz que reconheci muito bem, enquanto minha mãe biológica aparecia de trás do meu pai. Era a mãe que eu lembrava de quando a Karen ainda estava viva, quando cada dia era um presente, e nós éramos a imagem de uma família feliz. Aquela versão dela estava bem diante dos meus olhos, sorrindo para mim com o calor acolhedor que apenas uma mãe poderia proporcionar.

"Sim, ele não parece muito bem", disse meu pai. "Talvez uma soda ou algo assim o anime."

"Boa ideia. Passamos por uma barraca de bebidas há um minuto. Você gosta de Lifeguard, não gosta, querido?"

"Vou querer uma cerveja, enquanto você estiver nisso."

"Oh, você não vai. Ainda tem que nos levar para casa, senhor..."

"Bem, valeu a tentativa! Hahaha..."

Não... Pare com isso. Não aguento mais essa porcaria.

"Ahhhhhh!"

Gritei com todas as minhas forças, depois arranquei meu braço livre enquanto os dois estavam muito surpresos para reagir. Então saí correndo o mais rápido que pude. Eles me chamaram, mas eu me recusei a virar ou olhar para trás. Apenas corri e corri, até que eventualmente lágrimas escorreram pelo meu rosto.

"Maldição... Pare de tentar mexer com a minha cabeça!"

Como eu poderia não me sentir conflituado depois de ser mostrado uma cena tão idílica da minha infância? Era como se o Túnel Urashima estivesse deliberadamente tentando jogar sal em feridas antigas. Lutei contra a vontade de vomitar e continuei correndo, olhando furiosamente para o fundo do túnel enquanto enxugava as lágrimas dos meus olhos.

Além disso, irritante como era, aquela visão só serviu para apoiar minha hipótese sobre a verdadeira natureza do túnel, aquela que eu tinha formulado no quarto da Anzu. Se minha teoria estivesse correta, seria apenas uma questão de tempo até que eu fosse reunido com Karen novamente. Então continuei correndo, esse pensamento como minha única motivação. Contanto que eu pudesse ver minha irmã novamente, tudo valeria a pena. Nunca mais pediria nada na vida. 

 

TEMPO TOTAL DECORRIDO: 9 HRS 56 MINS (FORA: 2 ANOS, 263 DIAS)

 

Maldição... Droga. 

Até onde diabos vai este maldito túnel? Eu estava correndo há quase dez horas agora, e ainda tudo o que eu podia ver eram tochas e torii. Onde diabos estava Karen? Quanto tempo havia passado no mundo exterior? Tipo, quase três anos? Eu teria me formado no ensino médio, se estivesse vivendo lá em velocidade normal.

Mesmo que eu desistisse e voltasse neste instante, ainda seriam pelo menos cinco anos passados no túnel até que eu conseguisse sair.

Todo mundo que eu conhecia estaria terminando a faculdade ou bem encaminhado para construir uma carreira frutífera. Eles estariam estudando duro para o trabalho de conclusão de curso, ou trabalhando em tempo integral, encontrando novos hobbies e se casando. E então havia eu, correndo em círculos pelo escuro, indo de dezessete a vinte e dois sem realizar absolutamente nada.

Eu praticamente não tinha mais água neste ponto, talvez o suficiente para mais um ou dois grandes goles. Minhas pernas estavam se aproximando rapidamente de seu limite também. Cada passo à frente enviava uma dor aguda e ardente pelos meus joelhos. Se eu fosse muito mais longe, sabia que não seria fisicamente capaz de fazer a jornada de volta. Mas o que eu deveria fazer? Apenas voltar?

Ou deveria continuar agarrado àquela última e remanescente faísca de esperança e seguir em frente?

"…Haha."

Não pude deixar de rir. Aquela era uma pergunta estúpida. Se voltasse agora, tudo isso teria sido um gigantesco desperdício de tempo. Eu teria dado mais de cinco anos da minha vida por nada, quando Karen poderia estar logo na próxima curva. Ou até mais perto. Desistir agora seria a escolha mais estúpida imaginável. Apenas um completo idiota faria isso. Eu tinha que continuar e ter fé de que ela estava me esperando logo à frente.

"Karen!" 

Gritei pela enésima vez, minha voz rouca e áspera ao passar pela minha garganta seca. Mesmo assim, continuaria chamando seu nome até encontrá-la. Não importava o que acontecesse, eu me recusava a descansar minhas pernas até que ela e eu nos reuníssemos.

Eu estava certo de estar fazendo a coisa certa?

Não havia algo melhor que eu pudesse estar fazendo com minha vida?

Isso tudo acabaria sendo um desperdício ainda maior de tempo quando finalmente desistisse?

Tentei não pensar muito nessas perguntas.

Obviamente, estava assustado até a medula com as possibilidades, mas me recusei a pensar nelas. Ou quando o fazia, lutava para não ceder a esses medos. O futuro de ninguém era certo, afinal de contas. Todos nós estávamos apenas correndo, tateando no escuro enquanto o tempo e a morte se aproximavam lentamente de nós. Eu não era o único com medo dessa incerteza. O mesmo poderia ser dito para Anzu, ou Koharu, ou qualquer pessoa. Tudo o que podíamos fazer era seguir em frente, mantendo a crença de que um dia chegaríamos onde queríamos — antes que o mundo nos arrancasse. Então, tomei o resto da minha água de uma só vez e continuei andando, arrastando os pés pelo chão.

 

TEMPO TOTAL DECORRIDO: 14 HRS 20 MINS (FORA: 3 ANOS, 338 DIAS)

 

Continuei subindo mais uma íngreme elevação. Não conseguia mais ver à minha frente, e estava praticamente rastejando com o quão lentamente estava arrastando as pernas. Descartei todas as coisas que havia trazido comigo — até mesmo joguei fora meus sapatos. Voltar agora não era mais uma opção que eu estava disposto a considerar.

"Grrrgh…"

Não conseguia me lembrar há quanto tempo estava escalando esta colina, apenas que parecia ter durado uma eternidade. Sem dúvida, foi a subida mais longa que já fiz na minha vida inteira.

"Argh…"

Caramba, isso estava sendo excruciante. Meu corpo inteiro doía de exaustão, e minhas pernas haviam se reduzido a dois pedaços de carne macia e sem vida, capazes apenas de enviar sinais de socorro aos meus receptores de dor a cada passo. Até mesmo minhas pálpebras estavam começando a ficar pesadas. Eu precisava dormir. Queria parar e descansar. Estava certo de que deitar me ajudaria a me recuperar um pouco e me dar um intervalo muito necessário desta subida interminável.

Não podia me permitir fazer isso. 

Sabia que se me deitasse, havia uma boa chance de nunca mais me levantar. Eu tinha que seguir em frente e chegar ao topo desta maldita colina...

...Mas e se eu desistisse? Isso parecia absolutamente impossível, e eu estava chegando ao meu limite. Não, isso era uma mentira: já havia muito tempo que eu o ultrapassara. Estava usando todos os truques do livro para manter minha mente longe da dor, e de alguma forma tinha funcionado até agora. No entanto, mesmo que encontrasse Karen agora, não haveria realmente nenhum ponto nisso. Eu não tinha o menor fragmento de força de vontade ou resistência para fazer a jornada de volta para casa.

Caramba, estou tão cansado.

Talvez devesse desistir.

...Mas primeiro.

Vamos um pouco mais longe. Apenas no caso.

Vou continuar andando só um pouco mais, e se não encontrar nada, vou desistir.

Só um pouco mais. Apenas um pouco mais.

Só um… pouco… mais…  

Parei bruscamente. 

Não porque minhas pernas finalmente entraram em greve, mas porque algo estava diretamente no meu caminho. Erguendo minha cabeça cansada para dar uma olhada, vi uma porta de madeira antiga. Meu coração deu um baque audível. Uma onda de esperança renovada percorreu meu peito. 

Esta era a primeira vez que encontrava um obstáculo ou beco sem saída de qualquer tipo no túnel. Karen muito bem poderia estar logo atrás desta porta. Embora se ela não estivesse, e tudo o que me aguardasse do outro lado fosse mais uma subida íngreme... Não, não queria considerar essa possibilidade. Decidi naquele momento fazer desta porta o ponto final da minha jornada. Se minha irmãzinha não estivesse atrás dela, então eu pararia e descansaria. 

Agarrando a maçaneta de ferro, inclinei todo o meu peso na porta na tentativa de abri-la, já que meus músculos não tinham força suficiente para fazê-lo por conta própria.

"Ngh!"

Assim que a porta se abriu, minhas pernas cederam e eu desabei para frente, minha testa batendo contra o chão. No entanto, não doeu, porque minha queda foi amortecida por um cobertor macio e brilhante de areia.

"O quê...?"

A areia estava quente contra meu rosto, e senti raios de sol brilhando pelas minhas bochechas. Será que finalmente havia chegado ao exterior? Erguendo a cabeça, senti um forte cheiro de sal e brisa, enquanto uma rajada de vento passava, fazendo meus cabelos balançarem na brisa. Por mais impossível que parecesse, eu me vi deitado de bruços em uma praia de areia branca com um oceano sem fim diante dos meus olhos, suas águas eram do mais profundo azul, mas cristalinas até o horizonte.

Levantei-me de joelhos e olhei para trás. Uma cabana antiga e deteriorada encarava a costa, sua porta da frente era feita da mesma madeira envelhecida que aquela pela qual eu havia saído. No entanto, não havia nenhum túnel atrás da cabana, apenas um prado gramado coberto de vegetação verde exuberante. 

Não dei muita atenção. Qualquer parte do meu cérebro responsável por dar sentido às coisas havia entrado há muito tempo em um estado de paralisia entorpecida. No momento, a única coisa que importava para mim era se minha irmã estava aqui. 

Espremendo até a última gota de energia remanescente do trapo velho e esfarrapado que meu corpo se tornara, chamei pelo seu nome aos berros.

"Karen!"

"Aqui em cima," ouvi uma voz desinteressada responder.

Virei a cabeça na direção de onde veio a resposta.

Uma garota estava parada ali na praia. Seu rabo de cavalo balançava para fora de seu boné de beisebol. Sua regata folgada pendia até a metade de seu shorts jeans. Suas sandálias vermelhas brilhantes estavam meio enterradas na areia dourada.

Era ela. Era Karen.

"Você finalmente conseguiu, Kaoru", ela disse com um sorriso que poderia ofuscar mil estrelas.

De repente, meu corpo ficou mole e minha visão escureceu quando minha mente finalmente soltou sua frágil aderência à consciência.

Eu estava no meio de um sono tranquilo. Enquanto eu estava deitado de costas, uma brisa suave soprava contra meu corpo, seu ângulo mudando de um lado para o outro em um padrão lento e metódico enquanto o pequeno motor do ventilador oscilante zumbia suavemente. Um futon estava estendido sob mim. 

Quando tentei virar um pouco a cabeça, ouvi o barulho das sementes de trigo sarraceno dentro do meu travesseiro se mexendo e raspando umas nas outras. O doce e terroso aroma dos tatames sob meu corpo acalmou minhas narinas. 

Parecia que eu estava afundando lentamente em uma piscina espessa e viscosa de conforto líquido. Senti todo o meu cansaço, todo o meu estresse sendo purgado do meu corpo por aquelas águas purificadoras. Eu não queria levantar. Eu não queria abrir os olhos. Eu queria ficar ali e dormir para sempre... 

E, sinceramente, por que não me permitir fazer isso? Eu tinha me esforçado tanto que certamente ninguém pensaria menos em mim por isso.

Caramba, a brisa do ventilador está gostosa... Espera. Pelo que eu estava me esforçando, mesmo?

"Oh, certo!"

No momento em que lembrei meu propósito, me sentei na cama.

Através da porta de tela aberta, vi o oceano além da varanda. Eu observei ao redor. Eu estava deitado no meio de um quarto revestido com tatames desbotados pelo sol, com um rolo de parede pendurado no recanto com uma cena tranquila de montanha. Era um quarto que eu já tinha estado antes. Muitas vezes, na verdade... Espere um minuto.

"Estou de volta em casa...?"

Como poderia ser? Eu tinha me esgotado tentando atravessar o Túnel de Urashima, e agora eu estava dormindo tranquilamente em minha própria casa? Eu não estava usando as roupas que havia usado no túnel também — apenas uma camiseta velha e alguns shorts. Poderia ser que... tudo não passou de um sonho? Será que nunca houve um Túnel de Urashima para começar? Não, isso não podia ser. Eu nunca adormeceria assim na sala de estar. 

Além disso, havia duas grandes diferenças entre este quarto e o da minha casa. A primeira era que não era possível ver nem um pedacinho do oceano da minha casa, apenas o quintal abandonado e a montanha atrás dele. A segunda era que algo importante estava faltando neste quarto: o altar memorial de Karen. Ele não estava em lugar nenhum...

"Oh, ei! Você está acordado!", disse uma voz.

Uma voz que pertencia à minha irmãzinha Karen.

Ela veio correndo até mim, seus pés descalços batendo contra o piso de tatame.

"Poxa, você desmaiou do nada! Tive que te arrastar até aqui sozinha. Você ficou bem pesado, sabia?"

Ela estava bem na minha frente. Falando, rindo. Nem o rosto nem a voz dela haviam envelhecido desde a última vez que a vi, quando ela tinha dez anos.

"Você estava todo suado, então eu fui e troquei você por uma roupa limpa! Você me deve uma, malandro!" 

Karen colocou as mãos nos quadris e estufou as bochechas em sua pose característica de bico. 

"Ei, você está me ouvindo?!"

Ela aproximou o rosto do meu, e finalmente voltei ao meu juízo.

"K-Karen? É... realmente você? V-Você não é só... uma criação da minha imaginação ou algo assim?" 

Eu balbuciei, tropeçando em cada outra palavra.

"Nossa, que rude! Veja por si mesmo, por que não? Aqui!" 

Karen caiu de joelhos e pegou minha mão, então colocou minha palma contra sua bochecha. Seu rosto era suave e quente, mas, acima de tudo, inegavelmente real. 

"Viu?"

Karen sorriu e inclinou a cabeça, procurando acordo da minha parte, então eu assenti debilmente. Definitivamente não era uma ilusão, mas tudo estava acontecendo tão rápido que ainda não estava registrando completamente em meu cérebro. 

Ver Karen de carne e osso, então acordar nesta estranha versão de universo alternativo da minha casa... Ter que processar todos esses estímulos impossíveis tinha levado meu cérebro a um colapso nuclear, e ele se recusava a reconhecê-los como reais. Então eu simplesmente fiquei ali, olhando para Karen atordoado, até que eventualmente meu estômago soltou um rugido poderoso.

"Oh? Você está com fome, Kaoru?"

"Nah, não se preocupe com isso. Eu não estou, tipo…"

Justo quando eu ia dizer "morrendo de fome ou algo assim," senti uma intensa dor em meu estômago vazio e uma sede feroz em minha garganta. Eu os tinha esquecido brevemente porque o choque e a confusão com tudo o que estava acontecendo tinham atordoado meus outros sentidos. Para ter certeza, eu estava absolutamente faminto, e mais do que isso, eu precisava de água.

Desesperadamente. No final, eu tinha corrido por várias horas sem nem uma gota.

"D-Desculpe, Karen... mas você poderia me trazer algo para beber?"

"Claro. Temos muitas opções para escolher, porém. O que você gostaria?"

"Qualquer coisa está bom, só... traga bastante…"

"Qualquer coisa, você diz? Hummm... Bem, ok!" 

Ela respondeu animadamente, então se levantou e foi para a cozinha com um pulinho no passo. Enquanto isso, eu estava começando a sentir uma leve dor de cabeça, então esfreguei vigorosamente minhas têmporas. 

Isso era mais sobrecarga de informação do que meu pobre cérebro podia suportar. Eu não sabia por onde começar a tentar entender tudo isso. 

Enquanto olhava em branco para o oceano, ouvi um zumbido mecânico agudo vindo de dentro da cozinha. Karen devia estar usando o liquidificador. 

O que diabos ela estava misturando para mim?

 

6

"Ok, pronto!" 

Karen entrou na sala com um copo grande e o recipiente removível de nosso antigo liquidificador elétrico. Havia um líquido esbranquiçado espesso dentro. Espera, é isso...

"Você fez suco de banana?"

"É claro que sim!"

Ela ergueu o recipiente triunfantemente, sorrindo de orelha a orelha enquanto o líquido se agitava no recipiente e quase transbordava da borda. Agora isso me levou de volta — ela e eu fazíamos suco de banana juntos o tempo todo. No entanto, desde que ela morreu, eu não tinha feito isso uma vez sequer, usando a justificativa conveniente de que o liquidificador dava muito trabalho para limpar.

"Aqui está, Kaoru!"

O doce cheiro de banana passou pelas minhas narinas enquanto eu pegava o copo de Karen e começava a beber. Em nossa casa, sempre adicionávamos muito leite por banana, então saía extra suave. Eu bebi tudo, nunca baixando o copo dos lábios até que ele estivesse vazio de cada última gota.

"Ufa…"

Tudo o que eu podia fazer era soltar um suspiro de contentamento. Eu não tinha certeza se uma bebida já tinha me deixado tão satisfeito. Minha garganta formigava com a doçura açucarada.

Enquanto eu me preparava para me servir de outro copo, ouvi o ding do micro-ondas na cozinha.

"Oh, yay! A comida está pronta."

"Nós vamos comer?"

"Sim. Ou, bem, você vai, pelo menos. Mas eu fiz! Vá esperar na sala de estar, e eu vou trazer isso logo." 

Karen saiu correndo para a cozinha mais uma vez.

Caramba, a pequena Karen está fazendo comida sozinha, hein...? 

Eu achei isso extremamente bizarro, mas me levantei do futon mesmo assim, levando o copo e o recipiente comigo para a sala de estar. Lá na mesa de jantar baixa, encontrei uma grande tigela de macarrão instantâneo chique, além de três bolinhos de arroz grelhados (aquecidos no micro-ondas) alinhados. Karen estava sentada em um dos almofadões no chão, olhando para cima para mim com orgulho. Não pude deixar de sorrir. Sim, isso é mais ou menos o que eu deveria esperar.

"Bem, aproveite!"

"Obrigado... Vou fazer isso."

Sentei ao lado de Karen e peguei meus hashis, bati palmas juntas e mergulhei direto na tigela de macarrão. Mergulhei um pouco o biscoito crocante de tempurá desidratado no caldo, deixando-o absorver o saboroso sabor de camarão, e dei uma mordida. Então experimentei o macarrão. Normalmente, o sabor seria um pouco demais para mim, mas no meu estado atual de exaustão, era como o néctar dos deuses. Meus botões de gosto saboreavam cada gota do caldo salgado. 

Caramba, eu não me lembro dessas coisas terem um gosto tão bom...

Continuei devorando os noodles como se não houvesse amanhã, só parando para dar uma mordida em um dos bolinhos de arroz frito ou para esfriar a boca com um gole de suco de banana. 

Não era a melhor combinação de bebida para uma refeição como essa, admito, mas eu mal podia reclamar quando estava preparado para devorar tudo o que via sem nem me lembrar de respirar. Senti meus cinco sentidos ficando mais claros a cada mordida de matéria de comida mastigada que engolia. 

Isso estava além do reino da deliciosidade — eu me sentia como um cadáver ressuscitado.

Depois de sorver a última gota do caldo restante, coloquei a tigela na mesa. Satisfeito, abri os olhos novamente e, finalmente, pude realmente apreciar a bela vista diante de mim. Era uma cena que eu havia tentado recriar por uma eternidade: Karen e eu, simplesmente existindo no mesmo espaço, desfrutando de nossas vidas despreocupadas juntos.

"Então, como foi?" 

Ela perguntou com um sorriso. Esta foi a primeira vez que fui consciente o suficiente para reconhecê-la e apreciá-la verdadeiramente como Karen, minha irmãzinha. No momento em que o fiz, uma enxurrada de emoções que eu havia engarrafado por anos veio à tona, me inundando em ondas. 

Cada pequeno detalhe sobre ela era tão vívido, tão exatamente como eu me lembrava. Tudo, desde seu sorriso, até a forma como respirava, até suas maneiras delicadas, até mesmo como cada fio de cabelo em sua franja balançava para frente e para trás a cada movimento leve de sua cabeça. 

De repente, minha visão embaçou, e ouvi uma única gota d'água cair no recipiente de macarrão vazio. A represa se rompeu, e aquela primeira gota foi seguida por um fluxo interminável de lágrimas enquanto eu desabava em um choro soluçante e incontrolável. As lágrimas queimavam minhas bochechas, e era tudo o que eu podia fazer para me impedir de soluçar alto e inconsolável.

Então Karen estendeu a mão e passou os dedos pelo meu cabelo, traçando suas mãos delicadas para cima e para baixo no comprimento do meu couro cabeludo. 

"Você tem se esforçado tanto por tanto tempo, onii-chan."

Havia uma gentileza maternal em seu tom, quase como se as palavras irradiasse calor real que derretesse algo frio e duro dentro de mim. Eu balancei a cabeça. Balancei repetidamente.

Após agradecê-la pela refeição e limpar após mim mesmo, finalmente consegui me acalmar. Aquela foi a refeição mais satisfatória que já tive em toda a minha vida até agora. Meu peito ainda estava agitado com um contentamento eufórico. 

"...Ei, Karen."

"Sim?"

Eu tinha que perguntar algo a ela, agora que estava novamente em um estado de espírito são. Algo que eu absolutamente tinha que verificar, mesmo que não gostasse da resposta. 

"Você... é realmente a verdadeira Karen?"

Karen gemeu, apoiando os cotovelos na mesa e descansando a cabeça nas mãos. 

"Isso de novo? Você realmente não consegue dizer, huh? Eu pensei que que havia dito, eu sou—" 

Ela começou, então parou abruptamente enquanto seus lábios se curvavam em um sorriso travesso. 

"Bem, o que você acha, Onii-chan? A verdadeira Karen ou uma impostora?"

"Ei, não responda minha pergunta com outra pergunta."

"Mas é mais divertido assim!" 

Karen mostrou os dentes caninos. Para ser sincero, era difícil sentir-se irritado quando eu sabia que tudo era apenas brincadeira para ela. 

"Bem, Onii-chan? Vamos lá, me diga. Qual você acha que eu sou?"

Parecia que eu não tinha escolha a não ser entrar no jogo dela. 

"Eu acho..." 

Eu inspirei uma respiração superficial. Karen olhou para mim com olhos inocentes, esperando ansiosamente minha resposta. 

"Eu acho que você é a verdadeira."

"Essa é sua resposta final?" 

"S-Sim."

"Bem, pronto! Não me deixe te convencer do contrário."

Eu tinha previsto a piada anticlimática, mas ainda assim rendeu um gemido meu. Surpreendentemente, essa resposta de brincadeira realmente ressoou comigo, e eu fiquei bastante satisfeito com ela. 

No final, não havia realmente como saber se esta Karen era uma farsa elaborada conjurada pelo túnel para me enganar, nem qualquer definição clara do que "real" significava em uma situação sobrenatural como esta. Nesse caso, tudo o que eu realmente podia fazer era acreditar no que queria acreditar. Era isso que eu presumia que Karen estava tentando me dizer.

"Você está certa. Tudo o que importa é que você seja real para mim..."

Concordei, esperando que ao dizer em voz alta, pudesse fazer parecer mais verdadeiro.

"Chega disso! Temos melancia na geladeira, Onii-chan! Devíamos comer um pouco!"

"Parece uma boa ideia."

Decidi que me preocupar com isso não me levaria a lugar nenhum, então me levantei, e fomos para a cozinha. Ao abrir a porta da geladeira, vi que dentro havia de fato um prato de melancia cortada coberto com plástico filme. Abaixo disso, havia uma variedade de outras guloseimas, além de uma grande variedade de bebidas, exatamente como Karen tinha dito, incluindo algumas garrafas de Cheerio e Lifeguard. 

Eu não sabia de onde ela tinha tirado todas essas coisas, mas algo me dizia que seria inútil perguntar.

Sentamos na varanda e mordemos a melancia suculenta, sua polpa gelada jorrando néctar doce diretamente em nossas bocas. Tinha que ser a melhor melancia que eu já tinha provado. Quando Karen começou a cuspir as sementes no quintal, eu fiz o mesmo. Logo, uma guerra total começou enquanto lutávamos para ver quem conseguia cuspir as sementes mais longe. 

Foi tão divertido que eu realmente comecei a chorar.

"Puxa vida, Onii-chan! Desde quando você virou um chorão? Não deveria ser o irmão mais velho aqui?"

"Yeah... você me pegou," eu respondi, fungando. "Mas você não pode me culpar. As pessoas realmente choram mais quando são mais velhas, sabe. Porque ficam mais sentimentais com coisas bobas."

"Elas fazem?"

"Yeah. Tenho certeza que li isso em algum lugar."

"Huh. Pensei que as pessoas só ficavam mais duronas quando cresciam." 

Karen balançava as pernas para frente e para trás enquanto pendiam sobre a borda da varanda.

"Bem, algumas ficam, com certeza. Conheci uma pessoa que era muito durona."

"Yeah? Como ela era?"

"Oh, cara... Por onde eu começo?"

Curiosamente, foi Anzu quem imediatamente veio à minha mente.

"Ela era a garota mais bonita que eu já vi, mas sabia se defender em uma briga de socos como os melhores. Uma vez, ela enfrentou um cara super intimidador que era muito maior e mais velho do que ela, mas mesmo quando ele começou a dar tapas em seu rosto e chutá-la no estômago, ela não se curvou nem quebrou... Ela manteve a calma e esperou uma abertura para contra-atacar. Esse era o tipo de garota que ela era. No começo, honestamente, eu tinha um pouco de medo dela, mas uma vez que começamos a passar tempo juntos, percebi que ela é realmente muito fofa quando você a conhece..."

"Você gosta dela, Onii-chan?" 

Karen perguntou, olhando para cima para mim com pura curiosidade inocente.

Coloquei meu pedaço de melancia meio comido no prato e olhei para o oceano. 

"...Sim. Eu acho que sim, na verdade."

Karen soltou um guincho agudo de alegria escandalizada, então se aproximou. 

"Bem, se você gosta tanto dela, por que vocês não estão juntos?"

"Bem, ela tem suas próprias coisas com as quais precisa se concentrar agora." 

"Você ainda quer estar com ela, né? Não é solitário estar aqui sem ela?"

".... Sim, definitivamente é. Mas veja..."

Karen me encarou com total atenção, aguardando minha resposta.

Eu não consegui me esquivar ou mentir sobre isso. 

"...A verdade é que eu... Eu não sinto que deveria ser permitido amar alguém assim, verdadeiramente."

Só depois que as palavras saíram da minha boca é que percebi que provavelmente era a primeira vez que eu dizia a palavra "amor" sobre uma pessoa específica, em um contexto romântico, e que realmente significava. 

Agora que tinha dito, não pude deixar de sorrir timidamente para suavizar o quanto era embaraçoso admitir. Ainda assim, eu queria dizer o que disse. No final do dia, foi minha negligência que matou Karen. Além disso, fui eu quem causou a fissura original entre minha mãe e meu pai, o que a levou a nos deixar e ele atingir o fundo do poço. 

Eu teria que ser um ser humano bastante repugnante e egoísta para ignorar toda a dor e sofrimento que causei e sair por aí em busca do meu próprio final feliz.

"Concedido, sei que isso parece bobo", continuei. "Não é como se alguém estivesse me obrigando a carregar essa cruz. É um sofrimento auto infligido nesse ponto. Acho que é a única coisa que não consigo superar, por qualquer motivo... Mas sei lá. Talvez tudo isso seja um pouco demais para você entender."

"Não-ah!" 

Karen fez beicinho, franzindo o rosto. 

"Eu entendo totalmente! Ser permitido é tipo... quando você precisa que seus pais assinem um pedaço de papel para fazer uma excursão, né?"

"Haha. Bem, isso também, sim."

"Mas você realmente precisa de uma permissão para amar alguém?"

"Oh, não, eu não diria isso. Acho que todo mundo nasce com esse direito. Mas também acho que é possível perdê-lo, sob certas circunstâncias... Eu não sei. É meio difícil explicar..."

"Hrmm... Bem, nesse caso, vou ter que te dar uma nova!"

Karen se levantou e correu para o corredor. Ouvi seus passos rápidos batendo no chão enquanto subia as escadas. Menos de um minuto depois, ela irrompeu na varanda com um conjunto de marcadores e algumas folhas de papel branco na mão.

"Pra que é isso?" 

Perguntei.

"Hehhehheh... Espere e veja! ...Na verdade, não! Você não pode olhar ainda! Vire-se para o outro lado!"

Caramba, decida-se, sua criança maluca.

Fiz como mandado mesmo assim. Tudo o que pude ouvir foi o som dos marcadores dela rangendo alto contra o papel, só parando ocasionalmente quando ela parava e ponderava em voz alta como escrever um certo caractere ou percebia que tinha cometido um erro. 

Quando terminei o que restava do meu pedaço de melancia, ela me informou que eu finalmente podia olhar. Quando me virei, vi Karen em uma posição formal, de frente para mim com as mãos nos joelhos e o traseiro nos calcanhares.

"Ok! Permita-me apresentar sua nova permissão!" 

Ela começou, então segurou a folha de papel na frente do rosto enquanto lia o que tinha escrito. 

"Ahem. Grande Oni— quer dizer, Kaoru Tono, em homenagem ao quão duro você trabalhou vindo até aqui me encontrar, eu te concedo o direito de amar novamente! Se você quiser, é claro! De qualquer forma, parabéns!"

Ela segurou a folha de papel em minha direção com ambas as mãos. Olhei para baixo e vi as palavras "PERMISSÃO DE AMOR" escritas em letras grandes e redondas no topo, cercadas por todos os tipos de pequenos desenhos coloridos: flores, um cachorrinho e assim por diante. Era muito fofo. Ainda assim, me vi incapaz de estendê-la e aceitá-la.

"O que foi, Onii-chan? Vamos, pegue."

Uma sensação calorosa borbulhava do fundo do meu estômago. Desde o dia em que perdemos Karen, eu estava me arrastando. Angustiado. Constantemente atormentado pelo fato de eu ainda estar aqui, mas ela não estar.

Eu queria desesperadamente ser punido por não ter conseguido salvá-la, mas não conseguia pensar em uma única maneira de me redimir adequadamente. Então, simplesmente me recusei a permitir-me sequer um pequeno vislumbre de felicidade, esperando que isso aliviasse uma pequena fração da minha culpa. 

Eu estava preparado para viver o resto dos meus dias assim, como um monge que havia renunciado aos desejos mundanos. 

No entanto, agora, graças a Karen, eu... Eu...

Claro. Tudo ficou tão claro para mim agora. Não havia mais um fio de dúvida em minha mente. O Túnel de Urashima não tinha o poder de conceder desejos.

Tudo o que podia fazer era ajudar você a recuperar as coisas que havia perdido.

Essa era a verdadeira habilidade do túnel. A sandália de Karen, nosso antigo periquito de estimação, os dias em que minha mãe e meu pai e eu vivíamos felizes juntos, até mesmo a própria Karen. E agora minha capacidade de amar outro ser humano. 

Todas essas eram coisas que eu havia perdido em algum lugar ao longo do caminho, e que o túnel me deu a chance de recuperar.

"Um, Onii-chan? Se você não quiser isso, eu vou jogar fora." 

"E-Espera, não! Eu quero. Eu realmente quero..."

Eu alcancei freneticamente e peguei a Permissão de Amor com ambas as mãos. Ao tocá-la, uma sensação elétrica excitante percorreu meus dedos, depois subiu pelos meus braços e pelo meu corpo inteiro. 

Era apenas uma folha fina de papel de impressora, mas tinha um valor emocional profundo que ia além da avaliação. Fiquei lá congelado por um tempo, absorvendo a sensação de tê-lo em minhas mãos. Parecia que eu finalmente estava livre, depois de todos esses anos passados cativo ao meu próprio auto desprezo.

"...Obrigado, Karen. Prometo que vou guardá-lo para sempre." 

"Mm-hmm! Por favor, faça!"

"E, um... Desculpe, sei que acabei de chegar, mas..." 

Eu sorri timidamente, esperando mais uma vez que isso amenizasse a linha extremamente constrangedora que eu estava prestes a dizer. 

"Sinto que... Estou pronto para tentar amar alguém novamente."

Quando subi para o meu quarto, descobri que minha mochila já estava pronta para mim, quase como se Karen tivesse previsto essa reviravolta dos eventos. Coloquei-a sobre o ombro e fui para a cozinha. Ao abrir a porta da geladeira, peguei comida suficiente para dois e enchi o compartimento principal. 

Agora eu sabia aproximadamente quanto tempo o túnel tinha e, portanto, quanto comida e água precisaríamos. Contanto que nenhum de nós sofresse ferimentos no caminho para fora, seríamos capazes de voltar sem muita dificuldade. Estávamos prontos para ir a qualquer momento. Deslizei a Permissão de Amor em um protetor de folha para que não amassasse e a coloquei na minha mochila também antes de ir para a sala de estar.

"Ei, Karen," chamei, e ela virou-se de sua cadeira na varanda, ainda mastigando um bocado de melancia. "Vamos deixar este lugar. Juntos."

Eu tinha que levar Karen comigo para Kozaki. Esse era meu objetivo original, mesmo que o conforto desta casa ilusória me fizesse esquecê-lo momentaneamente. No entanto, até que ambos estivéssemos fora em segurança do outro lado do túnel, eu não poderia considerar minha missão concluída.

"Onde vamos?" Ela perguntou. "Para a praia?"

"Para um lugar ainda melhor. Onde há aquários e zoológicos e todo tipo de coisas diferentes. Eu vou te levar a qualquer lugar do mundo, desde que não seja aqui."

"Mas nós temos aquários e zoológicos aqui. E parques de diversão. E parques aquáticos internos. Tudo o que você poderia querer."

Eu sabia que Karen devia estar dizendo a verdade. Se minha própria casa tinha sido replicada, então o céu era o limite. No entanto, isso não seria o suficiente para mim.

"Não, Karen. Quero dizer, talvez você esteja certa. Talvez esse paraíso realmente tenha tudo o que eu poderia querer. Mas não é onde pertencemos. Temos que voltar para Kozaki."

"De jeito nenhum." 

Karen deu outra grande mordida na melancia. Mastigou. Engoliu. 

"Eu me acostumei a estar aqui. Não acho que tenho o que é necessário para viver lá fora novamente."

"Claro que você tem!" Eu me ajoelhei e fiz contato visual intenso com ela enquanto batia com força no meu peito. "Vou garantir que haja um lugar para você lá fora novamente, eu prometo. Vou encontrar uma maneira de fazer isso funcionar, e não vou deixar ninguém ficar no nosso caminho."

Eu sabia que não seria fácil para Karen, voltar para uma sociedade que havia a marcada como falecida. No entanto, eu quis dizer o que disse, e estava totalmente confiante de que poderia conseguir de alguma forma. Por Karen, eu poderia fazer qualquer coisa.

"Então, por favor, você não vem comigo?" 

Eu implorei.

Karen terminou seu pedaço de melancia e colocou no prato, então soltou um suspiro exagerado, como uma criança travessa que foi pega em flagrante. 

"...Ok, tá bem. Você ganhou, eu acho."

"Legal! Então vamos embora!" 

Exclamei, pegando Karen pela mão e indo em direção à porta da frente. Então eu lembrei de algo. "Ah, droga! A hora!"

Meu Deus. 

Eu estava tão envolvido em me encontrar com Karen que havia esquecido completamente. Eu estava prestes a correr para a sala de estar para verificar a hora... então rapidamente percebi que nenhum dos relógios aqui refletiria corretamente quanto tempo havia passado desde que entrei no túnel. 

Eu tinha que verificar o relógio de pulso que tinha colocado no início desta jornada. Eu não estava mais usando, então onde estava? Talvez Karen o tivesse tirado quando trocou minhas roupas.

"Ei, Karen, você não sabe onde está o meu relógio, né?"

"Oh, você quer dizer isso?" 

Karen enfiou a mão no bolso e puxou-o para fora. Em um misto de ansiedade e alívio, eu peguei o relógio de sua mão e verifiquei a hora. Marcava cinco e meia, e eu tinha entrado no túnel à meia-noite. Na última vez que me lembrei de verificar meu relógio, o ponteiro pequeno apontava para o dois — mas eu sabia que ele já havia dado uma volta completa naquele ponto, então isso implicava que não haviam passado cinco horas e meia, mas sim dezessete e meia... No entanto, até isso parecia um pouco estranho.

"Ei, Karen…? Quanto tempo eu dormi depois de chegar aqui?"

"Oh, você estava apagado por um tempo. Tipo, metade de um dia, provavelmente."

Eu congelei. 

Se eu tivesse dormido por doze horas, então isso implicava que o ponteiro pequeno havia feito duas voltas completas e estava trabalhando na terceira, o que significava… Eu estava no túnel há quase trinta horas agora. 

Um suor frio escorreu pela minha testa.

"N-Nós temos que ir, agora mesmo! Eu estive aqui por tempo demais!"

Eu agarrei Karen pela mão e saímos apressadamente pela porta da frente. Um passo fora da varanda, e meu pé afundou na areia. A casa ficava na fronteira entre um prado gramado e a praia. Não havia estradas ou postes de utilidade à vista. A completa impossibilidade de manter uma residência permanente em um lugar como esse só reforçava o fato de que esse mundo era uma ilusão. 

Eu avistei rapidamente a pequena cabana de onde eu havia emergido originalmente. Não estava longe de casa. Nós atravessamos a praia até ficarmos em frente à sua antiga porta de madeira.

"Ok, Karen... Você está pronta?"

"…Sim." 

Ela parecia pensativa, agarrando a barra inferior de sua regata enquanto olhava ansiosamente para o chão.

"Vai ficar tudo bem. Não precisa ter medo. É um longo caminho de volta, mas prometo que chegaremos lá."

Isso fez pouco para tranquilizá-la visivelmente. De qualquer forma, não tínhamos tempo para ficar parados. O relógio estava correndo, segundo a segundo, hora a hora. Determinado a não perder mais tempo, estendi a mão e abri lentamente a porta. Além dela estava a íngreme descida que eu quase me matara subindo na ida para este lugar.

Felizmente, a viagem de volta seria mais fácil para nossa resistência, embora ainda precisássemos ter cuidado para não tropeçar e cair.

"Tudo bem, vamos fazer isso."

Dei meu primeiro passo pela porta. Assim que o fiz, Karen envolveu seus braços em volta da minha cintura por trás. Virei a cabeça para olhar por cima do meu ombro, mas não pude ver o rosto dela por estar enterrado em minha mochila. Tudo o que eu sabia era que eu estava de um lado da porta, e ela ainda estava com os pés na areia do outro lado.

"Karen? O que foi?"

"Há alguém lá fora que significa o mundo para você, não há?"

"Sim, e eu não posso mais fazê-la esperar. Por isso precisamos sair."

"Estou tão feliz. Você finalmente está pronto para avançar novamente." 

"…Karen?"

Suas pequenas mãos apertaram forte o tecido da minha camisa. 

"Vamos, Onii-chan. Você já sabe o que estou prestes a dizer, não é?"

Senti uma palpitação desconfortável no meu coração, e minhas respirações se tornaram mais raras e espaçadas. Franzi a testa. 

"…Não, Karen. Eu realmente não sei. Por que você não me diz claramente?"

"Bem… pense nisso assim. Peixes-palhaços só podem viver no mar. Se você tentasse pegar um e colocá-lo em um rio, ele só se afogaria e morreria. Eles são fracos desse jeito. Tudo o que eles realmente podem fazer é se esconder em seus pequenos amigos anêmonas e observar os peixes maiores e mais fortes de longe. Como salmões, por exemplo. Eles podem viver no oceano ou em água doce. Eles podem nadar contra a correnteza, depois voltar novamente quantas vezes quiserem. Cara, eles até podem pular cachoeiras. E além de tudo isso, são realmente gostosos de comer."

"Bem, sim. Você está certa sobre isso. Eu realmente não vejo como isso tem a ver com nossa situação atual, no entanto."

"Tem tudo a ver com isso. Você é como um salmão, Onii-chan. Mas eu? Eu sou um fraco pequeno peixe-palhaço, preso aqui em minha—"

"Não diga isso!" Eu gritei. "Você é Karen! Você é um ser humano, não um peixe-palhaço ou um salmão! Você pode ir para onde quiser. Então, por favor, não diga coisas assim… Você está me matando aqui…"

Eu tinha passado tanto tempo — de mais de uma maneira — tentando chegar aqui. Eu não poderia retornar sozinho.

"Está tudo bem, Onii-chan. Eu sempre estarei com você. Sempre que precisar de mim, estarei ao seu lado… Então, por favor." 

Karen soltou sua pegada em minha camisa. 

"Não se preocupe comigo. Vá lá fora e viva como você quer. Assim como você disse a ela."

Ela me empurrou por trás — apenas gentilmente, mas foi o suficiente para me fazer perder o equilíbrio e tropeçar para frente no túnel.

"Karen!" 

Eu gritei, virando-me.

Karen não estava lá. 

Nem mesmo vestígios restavam da porta de madeira, ou do sol deslumbrante, ou da praia de areia branca, ou mesmo do cheiro persistente de água salgada. Era apenas um túnel infinito novamente, se estendendo em ambas as direções. Parecia que todo o ar havia sido sugado para fora dos meus pulmões. Eu comecei a andar mais fundo no túnel, tentando desesperadamente encontrar a porta para aquela praia dos sonhos novamente.

Então ouvi uma voz ecoar em minha cabeça. 

"Vá lá fora e viva como se realmente importasse. Assim como você disse a ela."

Assim como eu disse a ela. 

Era óbvio quem era "ela". Karen estava me dizendo para parar de me deixar arrastar pelo passado e começar a olhar para o futuro — encontrar meu lugar no mundo, ao lado de Anzu. Essa foi a última mensagem dela para mim como minha irmãzinha.

"Nnngh…!"

Eu segurei minha cabeça nas mãos, cavando meus dedos no couro cabeludo. Fechei os olhos o mais apertado que pude, mas ainda assim as lágrimas encontraram uma saída.

"Nnnnnngh…!"

Alguma pequena parte de mim lá no fundo nutria uma suspeita de que as coisas acabariam assim. O verdadeiro poder do Túnel de Urashima era ajudar você a recuperar o que havia perdido, afinal. 

Ele me deu a chance de ver Karen, assim como meu direito de amar outra pessoa. Ele me deu algo a mais também, sem que eu percebesse: minha capacidade de ficar de pé e encarar a realidade de frente. 

De deixar a dor do passado para trás e começar a viver no presente. Para fazer isso, porém, eu teria que realmente aprender a superar a morte de minha irmã, o que era diametralmente oposto ao meu objetivo original de trazê-la para fora do túnel comigo. Eu tinha que escolher um ou outro.

Eu tinha confiança de que o túnel não tinha vontade própria, muito menos má vontade. Minha suposição era de que suas manifestações das coisas que eu havia perdido eram todas automáticas. Então, se uma contradição como essa estava ocorrendo dentro dele, eu tinha que assumir que só podia significar que já havia uma parte de mim, lá no fundo, que havia inconscientemente escolhido começar a enfrentar a realidade novamente. 

Uma parte de mim que havia aceitado a morte de Karen. Eu deveria ter sabido. Eu simplesmente não conseguia deixar de lado aquele último vislumbre de esperança com o qual eu havia me agarrado por tanto tempo — talvez um dia, um milagre acontecesse, e aqueles dias felizes que compartilhamos como uma família voltassem.

Era um sonho ingênuo, de olhos arregalados, com certeza. Mas finalmente era hora de eu acordar. Eu rangei os dentes tão forte que parecia que eles poderiam fissurar e rachar. 

Eu tensionei meus abdominais, tentando ao máximo selar as emoções que se acumulavam dentro de mim e que ameaçavam explodir. Eu as forcei para baixo, mais e mais fundo, depois fechei a tampa firmemente, tranquei-as atrás de cadeado após cadeado, e joguei fora as chaves. Eu limpei meus olhos com o antebraço de um lado para o outro e gritei com toda a minha força.

"Karennn! Eu estou saindo agooraaaa!"

Com isso, me virei e comecei a correr o mais rápido que pude em direção à saída.

"Ok. Te amo," eu quase podia ouvi-la respondendo.

 

TEMPO TOTAL DECORRIDO: 29 HORAS E 35 MINUTOS (FORA: 8 ANOS, 36 DIAS)

 

Corri desesperadamente pela escuridão, me lançando morro abaixo quase na velocidade máxima que minhas pernas conseguiam alcançar. O peso da minha mochila, as alças roçando nos meus ombros enquanto ela pulava para cima e para baixo, estava definitivamente drenando minha resistência mais rápido do que o normal, mas também me fazia sentir muito mais seguro do que estava quando entrei. 

Eu sabia que tinha água e comida suficientes para sair, então não precisava me preocupar em morrer de fome. Era puramente uma questão de resistência e quão rápido eu conseguia sair.

Meu coração batia tão alto que eu conseguia ouvi-lo nos meus ouvidos. A cada passo, uma dor percorria meus joelhos, me fazendo temer que eles pudessem se quebrar e despedaçar em pedaços. Minha garganta estava rouca e dolorida pela intensa quantidade de ar que eu inspirava e expirava rapidamente. 

Eu estava com dor. Eu estava exausto. No entanto, eu não podia descansar. Talvez em algum momento eu me permitisse parar para respirar um pouco ao longo do caminho, claro, mas ainda era cedo demais para isso.

Anzu estava me esperando lá fora, e eu mal podia esperar para vê-la novamente. Supondo que ela nunca tivesse tentado entrar no túnel, ela tinha vinte e cinco anos agora. Embora eu tivesse dito a ela que não precisava esperar por mim, então eu presumi que ela não tinha. Talvez ela já tivesse um namorado. Talvez ela tivesse me esquecido completamente. Caramba, talvez ela estivesse casada e com filhos. Eu não me importava. Eu queria saber que tipo de vida ela havia levado ao longo dos meses e anos em que passei correndo por essa velha caverna úmida.

Talvez mais do que qualquer outra coisa, eu queria ler quaisquer novas histórias que ela tivesse escrito. Deus, havia tantas coisas que eu queria fazer!

Com um próximo passo firme, eu me impulsionava para fora do chão e aumentava o ritmo. Neste ponto, eu não sentia mais dor ou exaustão — minhas esperanças e sonhos para o futuro serviam como um poderoso anestésico para me entorpecer de ambos. Eu esperava que esse impulso de adrenalina durasse o suficiente para me levar até o final.

Era estranho, porém. Era quase como se quanto mais eu corresse, mais resistência eu ganhasse e mais rápido eu fosse. Esse impulso não durou muito, porque bem naquele momento, enquanto eu corria morro abaixo, minhas pernas se enroscaram uma na outra, e eu fui caindo para frente. 

Minha visão girou em um borrão tonto enquanto meu corpo rolava pelo declive íngreme, machucado e machucado pelo chão rochoso a cada rotação, e só parando quando minha cabeça bateu com força em um pilar de um dos torii. Mesmo assim, eu me levantei e comecei a correr novamente. Um filete de líquido escorreu em meu olho. Pensando que era suor, eu alcancei para limpá-lo — mas meus dedos voltaram vermelhos. Aparentemente, eu estava com um sangramento na cabeça. 

Eu não dei importância. Continuei correndo.

Eu tinha que me apressar. O mundo não ia esperar por mim por mais tempo.

Eu precisava ir mais rápido. Então ainda mais rápido. Eu não me importava o quão roxo e machucado, quão ensanguentado e machucado eu ficasse. Nada iria me parar.

Nada ficaria no meu caminho. Enquanto o fluxo do tempo continuasse avançando, eu continuaria correndo. Mesmo que minhas pernas falhassem, eu continuaria. Eu me arranharia até que minhas unhas estivessem despedaçadas, se fosse preciso.

"Graaaagh!" 

Eu gritei. 

Eu sabia que não era nada além de um desperdício de energia valiosa, mas não conseguia evitar. Eu tinha que deixar sair o furacão de emoções dentro de mim. Ainda assim, minhas pernas continuavam se esforçando freneticamente para frente, mesmo quando minha visão começava a ficar turva e eu não conseguia mais ver para onde estava indo. Eu tropeçava e caía repetidamente. No entanto, cada vez, eu me levantava novamente. Não importava o que acontecesse, eu me recusava a ceder.

Continuei correndo.

 

7

(Pov: Anzu)

Eu tinha corrido por tanto tempo. Para onde, eu não sabia. Para quê, eu não poderia dizer. Talvez eu estivesse perseguindo algo, ou talvez algo estivesse me perseguindo. Tudo o que eu sabia era que eu tinha corrido por um longo, longo tempo. Até hoje, eu não tinha parado. Continuei avançando, balançando os braços para trás e para frente, mesmo quando meus pés ficavam mais machucados e com bolhas a cada passo… Ou pelo menos, eu pensava que estava avançando. Mesmo assim, não importava quanto tempo passasse, parecia que eu não conseguia alcançar a linha de chegada.

"Mmngh…"

Eu acordei com uma terrível torcicolo. 

Descasquei minha bochecha direita da mesa fria e dura e levantei a cabeça. Aparentemente, eu tinha adormecido enquanto trabalhava na minha mesa. Eu sentia minhas articulações rangendo como se eu fosse uma máquina precisando desesperadamente de uma troca de óleo. Lancei um olhar para o relógio digital da mesa — eram três da manhã. 

Levantei da minha cadeira e me estiquei um pouco, estalando minha lombar com um estalo satisfatório. O forte cheiro de tinta e polpa de madeira pairava no ar do meu quarto silencioso e sonolento. Enquanto olhava para as pilhas de papel espalhadas por toda a minha mesa de escrita, decidi que era hora de encerrar o expediente para a noite. 

Eu iria limpar, tomar um banho e depois ir para a cama para descansar de verdade. Antes disso, eu queria terminar uma última cena. Torci meus ombros de um lado para o outro, então me sentei, peguei a caneta e comecei a redesenhar as linhas manchadas do lápis.

 

8

Naquele fatídico dia, quando Kaoru fugiu para o Túnel de Urashima sem mim, eu tentei persegui-lo a princípio, mesmo depois de ler a carta que ele deixou para mim na entrada. Eu imaginei que mesmo se ele tivesse conseguido uma vantagem de vários dias, isso só equivaleria a cerca de um minuto de tempo no túnel, então eu poderia alcançá-lo facilmente.

Então algo me parou.

"Não importa o que você acha que pode encontrar aqui, você realmente não precisa disso. O que você realmente precisa é fazer um nome para si mesmo como artista de mangá o mais rápido possível."

Eu cheguei até o limite onde os torii começavam, mas aquela linha da carta era como uma bola e corrente ao redor do meu tornozelo, me prendendo ao mundo exterior e recusando-se a me deixar entrar. 

De certa forma, era como se ele tivesse me lançado um feitiço, porque agora, parecia que se eu não perseguisse essa oportunidade de mangá, eu estaria traindo Kaoru diretamente. Então, no final, eu não consegui fazer isso. 

Tive que dar meia-volta.

Quando li a carta pela primeira vez, consegui manter uma calma surpreendente sobre toda a situação, embora em retrospecto, fosse apenas porque eu não conseguia me confrontar completamente com a dura realidade de que eu tinha sido deixada para trás. Mesmo assim, graças a isso, consegui manter a cabeça fria e tomar a decisão certa, então ainda foi um saldo positivo.

A primeira coisa que fiz ao chegar em casa naquele dia foi ligar para o meu editor para dizer que havia mudado de ideia e que queria trabalhar com ele afinal. Felizmente, apesar da minha indecisão egoísta, ele me recebeu de braços abertos, e até disse que ficou feliz em ouvir isso.

A partir desse dia, me dediquei totalmente a desenhar mangás de forma profissional. Mesmo assim, o tempo todo, eu estava esperando. 

Esperando que Kaoru voltasse para mim.

Pelo resto da minha vida escolar, continuei frequentando o Ensino Médio de Kozaki e enviando quaisquer projetos que escrevia no meu tempo livre para meu editor pelo correio. No começo, enfrentei muita rejeição, e perdi mais competições do que poderia contar, mas eventualmente meu trabalho árduo deu resultado e eu realmente ganhei uma: consegui publicar uma história curta e autocontida em uma revista. 

Obviamente, fiquei satisfeita com esse resultado, mas na época, era difícil me sentir verdadeiramente eufórica. Eu não estava infeliz com meu trabalho ou algo assim, saiba, eu estava apenas chateada com a maneira como as coisas estavam indo na escola.

Todos os nossos colegas de classe pareciam ter esquecido completamente de Kaoru. Claro, ele foi o assunto da classe por um curto período quando parou de frequentar a escola e se espalhou a notícia de que ele tinha fugido de casa, mas quando nosso último ano começou, todos estavam ocupados demais com exames de entrada e preocupações com seus caminhos de carreira para mencioná-lo além do ocasional "Ah sim, o que aconteceu com aquele cara?"

Eu não pude deixar de ser lembrada do imenso medo primal que senti quando criança quando vi como todos se moviam rapidamente a partir da morte do meu avô — minha primeira experiência com o medo existencial.

No entanto, o pensamento da existência de Kaoru desaparecendo na memória me assustava ainda mais do que isso, então fiz questão de sempre mantê-lo na vanguarda da minha mente, pensando nele mais do que qualquer outra pessoa no mundo. 

Quando me formei no Ensino Médio e meu editor sugeriu que eu me mudasse para Tóquio para tentar obter experiência como assistente residente de um artista de mangá mais conhecido, eu imediatamente o recusei, insistindo em ficar em Kozaki. Aluguei um pequeno apartamento de um quarto na cidade, e assim começou minha vida como autora em tempo integral.

Claro, meus pais eram totalmente contra minha busca por uma carreira em mangá em vez de continuar meus estudos; sempre foram muito rígidos quanto a esse tipo de coisa. Além disso, minha determinação era forte demais para deixá-los me deter. 

Já era tarde demais. Eu tinha feito a escolha de dedicar minha vida inteira à escrita de mangás, sabendo muito bem que eles provavelmente me renegariam por isso. Passei cada hora de cada dia criando mundos, personagens e histórias. Esse trabalho árduo logo começou a dar frutos. Apenas um ano após o ensino médio, consegui fechar um contrato para a minha primeira serialização.

Foi quando as coisas começaram a ficar realmente agitadas. Minha carga de trabalho diária aumentou várias vezes, e eu só conseguia dormir cerca de metade do que dormia no ensino médio, se tivesse sorte. No entanto, por mais extenuante que fosse o estilo de vida de um mangaká serializado, certamente servia como um anestésico potente para distrair das constantes pontadas de ansiedade que me atingiam a cada hora vigília da minha vida. 

Não passava um dia sem que o medo de não saber quando Kaoru poderia voltar não me abalasse até o âmago.

Apesar dos prazos extremamente exigentes do meu cronograma de escrita, ainda conseguia arrumar um tempo esporádico para passar pelo Túnel. Geralmente, eu apenas sentava bem na entrada e começava a murmurar incoerentemente comigo mesmo, talvez falasse sobre como estava progredindo o trabalho no meu mangá atual. 

De vez em quando, tentava chamar pelo nome do Kaoru. Era um pouco como visitar o túmulo de alguém para prestar homenagens, embora nunca chegasse ao ponto de deixar flores do lado de fora ou algo do tipo. Embora eu escrevesse uma pequena carta para ele cada vez que visitava o túnel, relatando o que estava acontecendo na minha vida junto com minhas informações de contato atualizadas, e deixasse em uma garrafa dentro do túnel, como ele tinha feito para mim — embora nunca tenha visto indicação alguma de que ele ou outra pessoa tivesse aberto e lido alguma delas.

Diga-me, Tono-kun. Quanto tempo mais tenho que esperar? Ou será que esperar foi meu primeiro erro?

Eu sabia que era inútil desperdiçar meu fôlego com perguntas que só ficariam sem resposta. No momento em que saíssem dos meus lábios, seriam engolidas pelo abismo insondável que era o Túnel Urashima. Assim como tudo mais.

 

9

Um ano após o meu primeiro contrato de serialização, minha história finalmente alcançou seu ritmo. Eu conseguia ver os contornos gerais de como gostaria que ela se concluísse. Tudo o que eu tinha que fazer era empilhar capítulo após capítulo envolvente e inserir foreshadowing suficiente ao longo do caminho para tornar o grande final o melhor possível. 

(N/T: "Foreshadowing" é quando um autor dá pistas ou sugestões sobre o que vai acontecer mais tarde na história.)

Felizmente, eu finalmente tinha me acostumado com meu rigoroso cronograma de publicação, e até tinha um pouco de tempo livre agora — embora talvez por correlação, isso também significasse que eu passava muito mais tempo pensando no Kaoru. 

Os meses mais quentes sempre eram os mais difíceis; eles me lembravam daquele verão onírico quando ele e eu passávamos quase todos os dias juntos, e éramos cada um o mundo inteiro do outro. Aquelas tinham sido os meses mais plenos e memoráveis da minha vida. 

Todo dia uma nova emoção, uma aventura fresca para descobrir. No entanto, ultimamente, lembrar disso trazia uma dor aguda no peito, como se tivesse sido esfaqueado. Então a ansiedade se infiltrava através da ferida para corroer lentamente meu coração. 

E se o Kaoru tivesse saído do Túnel há muito tempo? 

E se ele estivesse secretamente vivendo uma nova vida feliz em um lugar melhor, sem que eu soubesse? 

E se ele simplesmente não quisesse mais nada comigo, e por isso não tentava entrar em contato comigo? 

Eventualmente, chegou ao ponto em que a ansiedade era tão forte que eu achava que poderia abrir um buraco no meu peito.

 

10

Mais dois anos inteiros passaram. 

Minha primeira série de mangá finalmente estava completa. Não descontinuada ou truncada de forma alguma; consegui colocar toda a história que queria contar no papel. Também estava extremamente satisfeita com como amarrei tudo tão bem. Foi a conclusão perfeita exata que eu havia imaginado antes mesmo da história começar a ser publicada. 

Os leitores pareciam adorar também.

No entanto, minha melancolia depressiva não dava sinais de diminuir. Agora que tinha perdido minha série serializada, não podia passar pela vida apenas com isso. Era como se tivesse sido jogada para fora dos trilhos, jogada de volta para me virar sozinha na selva à noite, sem direção de para onde ir. 

Meu editor disse que eu deveria trabalhar em apresentar um esboço para um novo conceito de história. Isso fazia sentido, obviamente. Como autora, uma vez que terminasse de contar uma história, era hora de passar para a próxima. Era simplesmente o ciclo de ser um artista de mangá profissional. 

No entanto, embora agora tivesse total confiança em minhas habilidades como contadora de histórias, não estava completamente convencida de que era isso que eu, Anzu Hanashiro, o ser humano, realmente queria. Ou para simplificar, eu estava perdida, sem saber para onde minha vida deveria seguir.

Deveria tentar procurar Kaoru de verdade, ou deveria escrever um novo mangá? 

Tenho que admitir, eu havia considerado a ideia de entrar no túnel e persegui-lo várias vezes ao longo dos anos, mesmo com a grande vantagem que ele tinha agora. No entanto, toda vez, eu lembrava das palavras em sua carta e sentia que devia realmente me dedicar à minha carreira de mangaká. Isso, somado ao simples medo de enfrentar o túnel e sua natureza desconhecida sozinha, sempre me deixava reticente.

Além disso, como eu disse, Kaoru estava no túnel há algum tempo — provavelmente já fazia quase um dia, pela minha estimativa. Poderia-se pensar que seria tempo suficiente para chegar ao fim de qualquer túnel, exceto por truques sobrenaturais. O fato de ele estar (até onde eu sabia) ainda dentro parecia implicar que algo realmente ruim havia acontecido. 

Talvez ele tivesse caído em alguma armadilha e não conseguisse sair sem ajuda, então estivesse morrendo de fome. Talvez ele tivesse encontrado alguma abominação horrível e sido gravemente ferido. 

Minha mente elaborava cenários de pior caso um após o outro, e com cada "e se", meu peito se apertava mais e mais. Uma parte de mim queria desesperadamente correr e ajudá-lo. No entanto, toda vez que eu ficava diante daquele primeiro torii, eu ficava com os pés frios e congelava no lugar, incapaz de me mexer.

Eu era uma adulta crescida; se fora o adolescente invencível que eu já fora. Eu tinha responsabilidades reais agora, além da minha estabilidade financeira e bem-estar a longo prazo para pensar. 

A ideia de me colocar em qualquer tipo de perigo era bastante assustadora. Ainda mais assustador do que isso, na verdade, era a ideia de entrar e descobrir que Kaoru não estava em lugar nenhum. E se ele tivesse saído do túnel e deixado Kozaki para trás sem dizer uma palavra? Então eu teria jogado fora todo o sucesso que construí ao longo dos últimos anos por nada.

Eu sabia que deveria desistir de Kaoru e tentar esquecê-lo. Realmente, eu sabia. Eu sabia que ficar constantemente obcecado por ele depois de cinco anos era insalubre, simples assim. Apesar disso, eu não conseguia. Mesmo depois de todos esses anos de esperanças frustradas, toda vez que ouvia meu telefone vibrar, parte de mim não podia deixar de pensar se poderia ser ele. Sempre. Toda. Única. Vez.

Então eu languideci em agonia, incapaz de ir atrás de Kaoru, mas incapaz de seguir em frente com ele, enquanto as semanas e meses se acumulavam como tantas folhas de papel de desenho amassadas. Desde quando eu era tão covarde? Eu me via invejando a garota destemida que eu fui em dias passados, que sempre conseguira manter uma visão otimista sem esforço — sem nem mesmo um bom motivo.

Os dias passaram um após o outro, mas ainda não consegui pensar em nenhuma ideia decente para minha próxima grande série de mangá. E é claro, eu ainda não tinha ouvido nada de Kaoru. Recebi um convite para almoçar com uma velha amiga — uma certa Koharu Kawasaki. 

Nos encontramos um dia no antigo café no centro de Kozaki.

"Hey, Anzu! Quanto tempo, né?" 

"Yeah... Nem me fale."

Não nos víamos desde a formatura. Mantivemos contato por mensagem por um tempo, mas à medida que minha carreira começou a decolar, até isso foi diminuindo aos poucos — e agora não conversávamos há quase um ano. Ao ver o rosto de Koharu novamente depois de tanto tempo, não pude deixar de notar o quanto seu sorriso estava mais suave e amigável. Ela havia deixado Kozaki logo após a formatura para obter sua licença de ensino em uma escola vocacional e, aparentemente, conseguiu um emprego como professora do ensino fundamental na cidade.

Quando Koharu me disse pela primeira vez, lá no ensino médio, que queria ser professora quando crescesse, fiquei genuinamente surpresa. Tão surpresa, na verdade, que quase pensei que ela estava brincando. No entanto, aqui ela estava. Ela havia elaborado um plano claro, seguiu até o fim e agora era uma professora de carteirinha, exatamente como havia dito que seria. 

Todo o desprezo que sentira por essa garota má em um momento havia evaporado completamente e, em seu lugar, sentia apenas respeito genuíno por ela.

Rapidamente começamos a nos atualizar sobre o que havia de novo e empolgante em nossas vidas respectivas, continuando a fazer pequenas conversas informais entre mordidas depois que nossa comida chegou.

"Você tem dormido o suficiente ultimamente?" 

Koharu perguntou em determinado momento.

"Eu? Por quê?"

"Sim, você está com grandes olheiras. Você ainda está tão ocupada agora que sua série finalmente acabou?"

"Não, não tanto, honestamente. Tenho tido dificuldade para dormir ultimamente, eu acho."

"Espera aí, você tem insônia? Tem algo que tem te estressado muito? Talvez bloqueio criativo ou algo do tipo? Não consegue pensar em novas ideias de história?"

"Bem, sim. Isso também faz parte, mas..." 

"Não me diga. É o Tono, não é?"

Fiquei sem palavras. Realmente não esperava que Koharu pudesse me entender tão facilmente. Ela fez uma expressão sombria por algum motivo, então colocou os cotovelos na mesa e apoiou a cabeça nas mãos.

"Meu Deus, onde diabos aquele cara se meteu...?" 

Ela perguntou em voz alta.

Apesar de todas as reclamações que tive sobre Koharu no ensino médio, ela era uma das poucas pessoas que conhecia que permaneceram preocupadas com o repentino desaparecimento de Kaoru após a formatura. Eu tinha que respeitá-la por isso.

"Que tipo de perdedor some e deixa uma garota como você na mão, sabe? Juro por Deus, se eu ver a cara daquele idiota de novo, vou socá-lo bem na boca!"

"Ah, por favor, faça isso. Ele merece," eu disse, rindo.

Comemos em silêncio por um tempo depois disso, aproveitando o jazz suave que fluía suavemente dos alto-falantes do restaurante.

"Ei, Kawasaki?" 

Perguntei casualmente enquanto enrolava um pouco de massa no garfo.

"O quê? O que foi?"

"Se eu te dissesse que estou pensando em desistir completamente da minha carreira de mangá para ir encontrá-lo, o que você diria?"

As mãos de Koharu pararam instantaneamente, e seus olhos se arregalaram quando olhou para mim. 

"Anzu... Você não está realmente ainda apaixonada por aquele cara, está?"

"....."

"Olha, eu sei que realmente não é meu lugar para julgar, mas você não acha que essa obsessão já durou o suficiente? O cara simplesmente sumiu sem nem nos dar uma ligação de cortesia. Tenho quase certeza de que a única maneira de vermos ele novamente é se ele decidir voltar..."

"Sim, eu entendo, mas isso não faz eu sentir menos falta dele," eu respondi, elevando um pouco o tom de voz. 

Eu estava muito séria.

O único problema era que, para mim, meu mangá era quase tão importante quanto ele.

"Você realmente tem que escolher um ou outro aqui? Não pode procurá-lo enquanto continua a escrever mangá?"

"Não. Absolutamente não. Tudo que isso fará é me impedir de dedicar o tempo e energia adequados a ambos. Ninguém nunca chegou a lugar algum sendo indeciso."

Koharu franziu a testa com preocupação.

"Você tem certeza de que não está esgotada, Anzu? Talvez devesse tirar um tempinho, então pensar nisso de novo com uma mente fresca..."

"Eu não posso fazer isso!" 

Gritei, finalmente empurrada para o limite. 

"Eu não posso parar. Nem mesmo consigo diminuir a velocidade. Se eu fizer isso, a ansiedade vai me alcançar. E quando isso acontecer, tudo ao meu redor ficará escuro, e eu não conseguirei ver ou pensar claramente. Isso é o que mais me aterroriza. Se eu não estiver fazendo algo para ocupar minha mente, sou paralisada por todos esses pensamentos intrusivos. Embora eu suponha que isso não faça realmente diferença, porque quando finalmente tomo uma decisão, sempre acabo duvidando de mim mesma de qualquer maneira, perguntando se é realmente a escolha certa..."

Eu abaixei a cabeça, cobrindo a testa com as duas mãos, e implorei: 

"Me diga, Kawasaki: O que eu devo fazer...?"

Eu sabia que ela não teria respostas. No entanto, agora que a tampa estava aberta, não pude deixar de deixar todas as emoções que tinha engarrafado ao longo dos anos jorrarem de uma vez só.

Koharu deu um longo e desajeitado gole de água antes de tentar responder. 

"Desculpe, Anzu... mas realmente não posso te dizer. Isso não cabe a mim decidir."

"...Eu sei. Desculpe, não quis matar o clima. Não se preocupe com isso." 

Sorri awkwardly em uma tentativa fútil de mediar meu embaraço e então voltei a comer minha massa. Supostamente era o item mais popular do cardápio, mas no momento, tinha o gosto de lodo insípido. Como se não tivesse gosto algum.

(N/T: "Sorri awkwardly" significa sorrir de uma maneira desconfortável ou embaraçada.)

"Mas sabe de uma coisa? Isso me lembra uma antiga conversa que tivemos", disse Koharu, sua expressão abruptamente se tornando nostálgica. "Lembra no ensino médio, quando você me deu um soco no rosto? Aí as coisas saíram um pouco do controle, e vocês vieram até minha casa para entregar minhas tarefas de verão? Lembro de ter dito que queria aprender a ser igual a você. Sabe o que você me disse?"

Não respondi, então depois de uma pausa curta, ela continuou.

"Você disse que no final do dia, não há uma maneira certa de viver nossas vidas. Tudo o que podemos fazer é escolher um caminho e correr por ele o mais rápido que pudermos para ver até onde podemos chegar no tempo que nos é dado... Ou pelo menos, tenho quase certeza que foi isso. Talvez eu tenha embolado um pouco as palavras, mas ainda lembro disso claramente."

De repente, os lábios de Koharu se abriram em um sorriso amplo e abrangente.

"Essas palavras mudaram minha vida, sabe. Então, eu acho que se você seguir suas convicções e seguir o caminho que sua intuição diz, então talvez — só talvez — as coisas se encaixem do jeito que você quer no final. Assim como aconteceu comigo."

As palavras de Koharu ecoavam em meus ouvidos, então lentamente permearam todo o meu corpo. No fundo do meu peito, senti um calor, como se magma estivesse borbulhando do fundo do meu coração cansado, dissolvendo todos os resíduos de ansiedade que se acumularam dentro dele ao longo dos anos. 

Senti uma espécie de energia estimulante retornar a cada canto do meu corpo, uma que não sentia há tempos. Eu sabia exatamente o que era esse sentimento estranho — porque era um que eu costumava conhecer. Um que eu costumava chamar de meu, em algum momento. Era coragem. Era destemor.

"Tudo que estou realmente fazendo aqui é devolver seu próprio conselho para você. Ainda não faço ideia do que recomendaria, mas... Espera, Anzu? Você está bem?"

Não tinha percebido, mas lágrimas escorriam pelo meu rosto. 

"Kawasaki..."

"Sim?"

"Acho que você deve estar se lembrando errado. Tenho quase certeza de que nunca disse nada tão legal. Ou isso, ou você está exagerando muito."

"O que?! V-Você acha? Oh Deus, que vergonha... Desculpe, já faz tanto tempo, e..."

"Não, tudo bem... Eu aprecio isso." 

Limpei os olhos com uma das toalhas quentes e úmidas que o garçom tinha trazido para a mesa. Como não tinha percebido nada disso antes? Era tudo o que eu deveria saber, mas em algum lugar do caminho, aparentemente tinha perdido de vista tudo isso. 

"...Meu Deus, como sou burra."

Foi como se alguém tivesse acionado o interruptor. Agora meus olhos estavam bem abertos, e eu podia ver o caminho à frente mais uma vez. Peguei meu prato de comida e o ergui até o queixo, então comecei a enfiar a massa restante diretamente na minha boca.

"A-Anzu?! O que deu em você de repente?!"

"Aqui! Vou pagar a conta!" 

Tirei uma nota de dez mil ienes da minha carteira e a joguei na mesa antes de sair correndo do café, com a boca ainda cheia de massa. Não podia ficar ali nem mais um minuto, porque finalmente tinha percebido algo. Algo crucial. Simplesmente ficar esperando não ia me levar a lugar nenhum. No entanto, não ia desistir de Kaoru ou das minhas aspirações de mangá. Não podia simplesmente escolher entre os dois. Teria que encontrar uma maneira de ter os dois.

Eu enfrentaria o Túnel de Urashima. Se não encontrasse Kaoru lá, procuraria pelo mundo todo se fosse preciso. E como Koharu disse, continuaria desenhando mangá enquanto o procurava. Enquanto eu respirasse, nada poderia me impedir de desenhar mangá se eu realmente o quisesse com fervor.

Sim, sabia que essa decisão gananciosa poderia me trazer nada além de desgosto. Um caçador que persegue dois coelhos ao mesmo tempo não pega nenhum, como diziam. 

Mas sentia que não tinha escolha senão ir atrás dos dois coelhos, simplesmente não havia outra opção — tinha que aprender a fazer várias coisas ao mesmo tempo. Talvez mais importante ainda, com certeza não ia pegar nada ficando parada e hesitando. Seria um dia frio no inferno antes que deixasse isso acontecer!

Cada fibra do meu ser estava me dizendo exatamente a mesma coisa: Corra. Persiga-o o mais rápido que puder.

Senti um rush de sangue quente girando em minha cabeça, e um emaranhado de memórias passou diante dos meus olhos como slides de um projetor de transparências. O dia em que me transferi para o Ensino Médio Kozaki. O dia em que entrei em uma briga com aquele valentão sênior. A primeira vez que segui Kaoru pelos trilhos do trem. O dia em que Koharu e eu resolvemos nossas diferenças. O dia em que Kaoru e eu demos as mãos pela primeira vez dentro do túnel.

A noite em que todos fomos juntos ao festival. O dia em que ele simplesmente desapareceu sem uma palavra. Cada momento que passei com ele durante aquele verão fugaz e interminável me impulsionou para frente, fazendo minhas pernas correrem o mais rápido que podiam, enquanto me repreendia por ter esperado tanto tempo.

"Você está ouvindo, Tono-kun? Porque estou a caminho, e vou te encontrar. Vou correr o mais rápido que puder. Vou te rastrear até os confins da Terra, se for preciso. Então, por favor, me prometa que vai ficar seguro até eu chegar. Estou indo."

Já se passaram cinco longos anos desde que Kaoru entrou no Túnel de Urashima. Finalmente era hora de entrar lá e recuperar o que era meu.

 

11

(Pov: Tono-kun)

"Hanashiro... Hanashiro...!" 

Uma e outra vez, chamei seu nome enquanto corria pelo túnel, gritando em minha cabeça mesmo depois que minha garganta estava tão rouca que não conseguia mais fazer um som. Meu corpo inteiro estava em chamas. Sentia o sangue correndo por cada dedo. Meu coração chamava cada última célula do meu corpo, batendo cada vez mais forte para incentivá-las a agir.

"Hanashiro... Hanashiro...!" 

Entrei numa curva acentuada na próxima esquina, empurrando o aperto nas solas dos meus sapatos até o limite absoluto. Recusei-me a desacelerar por um instante sequer. O ar sibilava como uma rajada de vento passando pelos meus tímpanos enquanto fazia essa mudança intensa de momentum, então atravessava aquela parede e seguia na velocidade máxima pelo próximo corredor.

"Hanashiro... Hanashiro...!" 

Racionalmente falando, meus músculos já deveriam ter desistido há muito tempo, mas continuavam a conferir suas bênçãos, me instigando incessantemente a ir cada vez mais rápido, sempre adiante.

"Hanashiro... Você deve estar muito mais velha e madura agora. Ainda se lembra daquele verão fatídico que passamos juntas no ensino médio? Sabe, é engraçado, lembrar de como foi estranha nossa primeira interação. Eu disse algo muito insensível que qualquer pessoa, exceto você, teria se ofendido. No entanto, por algum motivo, isso despertou tanto seu interesse que você me seguiu até o Túnel de Urashima, onde tivemos nossa primeira conversa real. A partir desse ponto, éramos parceiras que compartilhavam um segredo emocionante. E ao longo de nossa investigação, pude te conhecer muito bem. Você tinha tantas coisas que eu sempre quis — tantas coisas que me faltavam. Você me disse uma vez que realmente me admirava, mas do meu ponto de vista, sempre fui eu quem te admirou. Você irradiava um brilho radiante como ninguém que eu já conheci. Com sua graça inteligente, sua honestidade brutal e todos os seus pequenos trejeitos adoráveis, você trouxe uma explosão de cores vibrantes para o meu mundo monótono e sombrio pela primeira vez em muito tempo. É por isso que nunca poderia te esquecer. Mesmo que tenha seguido em frente com sua vida e tenha me esquecido, eu nunca, jamais vou esquecer você ou aqueles dias que passamos correndo como o vento sob o sol quente do verão. Você tinha apenas dezessete anos naquela época, então provavelmente parece estar a uma eternidade de distância agora, mas para mim está tudo tão claro como cristal. Sempre vou me lembrar desses dias e manter nossas memórias próximas..."

De repente, senti um estalo nas pernas quando finalmente chegaram ao limite, e caí — bem no topo de uma descida íngreme. Tive que me preparar para o impacto.

"Ah, merd—" 

Antes que pudesse levantar os braços o suficiente para proteger meu rosto, eles suportaram o impacto com o chão, e uma dor lancinante percorreu meus pulsos. Mas isso sozinho não foi nem de longe suficiente para deter o ímpeto, e dei uma volta completa no ar antes de cair com força nas minhas costas. 

A queda tirou todo o ar dos meus pulmões, e tudo que pude fazer foi soltar uma tosse patética e ofegante. Mesmo assim, continuei rolando para baixo, meu corpo machucado batendo repetidamente contra...

Senti um estalo no cérebro, quando finalmente a corda se soltou, e minha mente finalmente deixou ir.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora