Volume 1

Capítulo 9: Bar só Zeca (Parte 1)

Já haviam se passado três dias desde o último contato com a Hacker, ou melhor, com Elisa. O jovem já estava começando a se preocupar, seu suprimento de drogas semanal logo acabaria e ele não tinha previsão alguma de receber mais. 

Talvez, um ou dois dias? Bom, provavelmente conseguiria aguentar por volta de mais um dia após acabar o estoque antes dos efeitos da abstinência voltarem com força. A grande verdade é que, apesar da preocupação e ansiedade, Renan tinha receio de mandar qualquer mensagem.

— Bom, eu poderia aproveitar e sumir, não é…?

Se voltasse agora para as garras de Elisa e seu grupo, nunca mais escaparia tão fácil assim. Já eram três dias, será que dariam falta dele em mais três? Ou uma semana? Talvez fosse tempo o suficiente para trocar todo seu sistema e iniciar algum tratamento para lidar com aquela droga no corpo ou pelo menos diminuir seus efeitos. 

De repente, como se fosse iluminado por algo divino, a ideia da fuga imediata tornava-se cada vez mais uma realidade.

— É isso, não posso mais perder tempo aqui! 

Mas, tão rapidamente quanto a sua vontade de sumir, o contato dos infernos reapareceu em sua visão na forma de uma mensagem. Era tolice, Renan definhou instantaneamente.

Bom, não era tão fácil assim desaparecer do mapa.

— Droga… Perdi muito tempo.

A fim de se consolar, Renan repetiu para si mesmo que era azar, mas sempre voltava à mente a realidade: ele havia perdido muito tempo sem fazer nada, deveria ter se ligado antes. 

Deixou guardado na memória a vontade de fugir na primeira oportunidade que tivesse, quando o deixasse quieto por mais de um dia… aí sim era a hora.

Definitivamente, ele não iria aceitar nunca que Elisa conseguiria rastreá-lo independente de onde se metesse no mundo. Quer dizer, não é como se o vírus não pudesse destruir o neuro dele, né?

Renan achou melhor não demorar muito para dar uma resposta, querendo ou não ainda precisava de seu suprimento semanal e a vontade de recebê-lo falou infinitamente mais alto que a vontade de planejar algo mirabolante.

Abriu a interface do chat, tirando mensagens do grupo da faculdade — que ele mal falava —, as únicas mensagens que haviam eram de Casé — alguns vídeos aleatórios da net — e, claro, Elisa.

『Elisa』: Fala tu

『Elisa』: Tá livre agora?

Renan ponderou se estava, queria responder que não. O jovem, acima de tudo, estranhou o tom amigável que a mensagem passava. 

“Ela quer saber se estou livre? Onde foram parar as ordens soberanas?”

Então olhou para baixo, lá embaixo mesmo. Estava bem no meio da passarela de um alto prédio, do seu lado direito havia um arranha-céu cheio de luzes acesas, era um prédio residencial. Do lado esquerdo, por sua vez, um prédio poucos andares menor e igualmente iluminado, esse era comercial. 

Aquela passarela de metal, liga de carbono e muitos cabos de fibras diversas era o local favorito de Renan para espairecer a mente. Quando seu apartamento compartilhado não mais oferecia essa paz, sobrava caminhar até aquela construção para sentir-se vivo novamente.

“Sinto como se voasse”, ele diria para qualquer um que perguntasse o motivo. A brisa cortante do alto era reconfortante, bom, era enquanto ainda podia senti-la. A passarela teve que ser verdade por motivos de segurança.

Apesar disso, a vastidão até o chão inevitável ainda era mágico para o garoto. Realmente, se focasse no horizonte e se desligasse de seus membros poderia até parecer que estava voando.

Porém, o mais especial daquele lugar era a vista que ele tinha ao entardecer. Até parecia planejado, mas nunca foi realmente pensado. Por entre os prédios, bem à sua frente, era possível ver o sol se pôr no horizonte — a única parte desse horizonte ainda levemente visível, claro —, descendo por trás dos prédios e, de relance, algumas poucas montanhas. 

— Maravilhoso… — ele deixava escapar, admirando a vista que só era possível dessa altitude.

— Bom, eu acho que tô livre… — falava para si mesmo, por mais que tivessem algumas pessoas passando pela movimentada passarela logo atrás dele.

Renan desencostou-se do parapeito, percebendo, novamente, a tela de vidro com display embutido que rodeava e vedava todo o lugar suspenso. Servia bem para medidas de segurança e, de quebra, podiam passar anúncios ou coisas que fossem de interesse ali mesmo, como um grande telão. Sentia-se de volta à realidade, um grande baque.

Logo mais iria anoitecer por completo, aí sim os perigos da cidade estariam na ativa com força e vontade total. Bom, ao menos era isso que Renan sempre escutou durante toda sua vida. 

Parecia senso comum que andar em Recife a noite sozinho — ou pior, desarmado — era uma das coisas mais estúpidas que você poderia fazer. Apenas os civis pensam assim? Não, com toda certeza que não. Encontre um membro de gangue que não tenha seu cérebro derretido por tóxicos e ultraviolência, ele com certeza te dirá a mesma coisa. Os policiais, então? É capaz de você receber uma bela ameaça de aviso: “Tá pensando no quê, moleque? Se quiser apanhar diga logo que eu já resolvo seu problema”.

De fato, isso era bem mais acentuado na parte Velha da cidade. Nova Recife não estava nem nunca esteve isenta da criminalidade ou violência, mas não chegava tão longe assim — dá até pra caminhar sozinho nas primeiras horas da noite!

Portanto, tendo vivido toda sua vida em um mundo que, além de alertar, cultiva esse tipo de atitude e medo, Renan não poderia pensar diferente de todos. 

E para a sua infelicidade, o lugar que Elisa havia acabado de convidá-lo parecia ser um bar clássico da cidade. Ao que ele se lembrava, a não muito tempo atrás alguma das gangues da cidade havia cometido uma chacina por lá.

— Ai… Sério mesmo?

Por mais que não tanto, Renan ainda temia por sua vida e pensou em fazê-la desistir do lugar, afinal, poderiam se encontrar em qualquer outro.

Logo o jovem abriu seu chat por completo enquanto já se colocava em movimento. A descida do prédio que estava poderia levar alguns minutos e não queria perder qualquer segundo precioso na escuridão brilhante da cidade.

◤﹂【Chit-Chat】—————————————◥

 『Elisa』: Chega mais no bar do Zeca, segue a localização aí 📍

   Precisa ser esse mesmo? Dá pra mudar não?                                                                            【Renan】

 『Elisa』: Oq? Tá devendo pra esse otário? KKKKKK      

                  : Relaxa, a gente cuida                                                             

◣——————————————【END】﹁ ◢  

Pelo visto, Elisa pareceu não entender exatamente o que Renan estava se referindo. O garoto, por sua vez, compreendeu que mesmo explicando ele seria apenas ridicularizado.

Vai ver foi a gangue de Elisa que fez o massacre daquela vez, o que ele teria a temer então? Gostando da ideia de andar por lugares tão hostis ou não, deveria estar seguro o suficiente para sobreviver a essa noite.

Imediatamente após chegar ao térreo do prédio comercial — depois de ter passado por inúmeras propagandas de produtos, comidas, lutas e ao que pareceu para ele uma briga num dos bares do estabelecimento — pediu o carro diretamente para o endereço enviado pela hacker. Não deve ter levado muito mais que uma hora e meia para chegar ao seu destino.

 

 

— Renan! Chegou na hora certa, meu garoto!

A recepção inusitada de sua executora deixou o jovem em alerta.

— Hm… Tá tudo… bem com ela? — perguntou Renan, tentando soltar os braços estranhamente firmes de Elisa do seu pescoço. 

Roberto, logo ao lado, apenas acenou que não com a cabeça, mantendo um sorriso bobo e desleixado na cara. O cheiro do álcool no ambiente relativamente apertado, úmido e escuro contava toda a história que Renan precisava saber.

Não que necessariamente as dezenas de garrafas espalhadas por toda a bancada — e algumas no chão — já não fossem auto-explicativas.

Elisa, Roberto e Cypher se encontravam sentados nos banquinhos de ferro com acolchoados vermelhos e muito velhos. O que deveria ser um tira-gosto estava escaneado e rodeado das garrafas no canto da bancada de pedra, pelo visto desistiram ou esqueceram de comer de vez em quando e ficaram nesse estado.

— Saí pra lá, Roberto! Deixa o moleque sentar aí, vai! — berrou Elisa, dando empurrões nem um pouco fortes no ombro direito de seu colega.

Renan, sem jeito, tentou dizer que não era preciso, mas a risada grossa do gigante o cobriu. Enquanto Roberto pulava um banquinho pro lado, Renan acenava um tanto envergonhado para o dono do bar — algum dos netos do antigo Zeca — que os olhava de trás da bancada e de canto de olho, limpando alguma garrafa velha na prateleira logo atrás dele.

— Senta aqui, senta aqui! — exclamou a hacker, tonta, dando alguns tapinhas no alcochoado ao seu lado.

O espaço para as pernas não era tanto, o que fazia com que Renan e Roberto tivessem que ficar de lado ou com as pernas bastante abertas para ter o mínimo de conforto — mínimo mesmo, quase zero.

Elisa imediatamente começou a distribuir a bebida para todos os presentes em seus copos numa velocidade e maestria impecáveis. Tão impecável quanto era a rápida virada do recipiente que os três deram, tão velozes que Renan não conseguiu acompanhar.

— Ei, espera aí! — disse o jovem, logo após terminar de virar a sua dose. — Até o moleque tá tomando uma?

O dedo dele se estendeu por quase todo o balcão e os olhos dos presentes prontamente o seguiram. O alvo da pergunta era ninguém menos que Cypher que, calmamente, virou-se para Renan e o olhou nos olhos.

— Moleque? — Cypher perguntou sem um pingo de emoção na voz.

A frieza do tom da pergunta também gelou todo o corpo do jovem que a segundos se indignara com a situação.

— Quê que cê tá falando… — disse Elisa, esticando o máximo que podia sua coluna numa espécie de alongamento sem a menor coordenação motora. — O único moleque aqui é você, sabia?!

— O quê?

— Há! Real! — e Roberto pôs-se a rir histericamente, levando Elisa junto num efeito manada que quase a derrubou do banquinho.

Renan, olhando para todos os lados, tentava entender exatamente o que eles estavam falando e o motivo de tanta risada assim. A piada era ele achar que uma criança não deveria beber? Será que ele tinha entendido algo errado?

— É isso aí mesmo, cara, acho que cê entendeu tudo errado! Há!

— É sério que nenhum de vocês falou ainda? Nem você, Elisa? — questionou Cypher, olhando diretamente para a moça que se recuperava das risadas. — Logo você, a que mais fala com ele?

— Qual foi? Tá com ciúmes, é? — Elisa desmontou-se no colo de Cypher, como se desmaiasse, num movimento que deveria ter sido provocativo e sensual, mas não chegou nem perto. Renan pôde apenas olhar e estranhar. — Relaxa, você ainda é meu andróide de estimação favorito!

A fala da moça levou o jovem confuso a cuspir a golada do shot que havia acabado de pôr na boca, o que — para a surpresa de ninguém — fez Roberto a gargalhar com toda a força de seus pulmões novamente.

— Com é?! — ele exclamou, batendo com força o copo de vidro na mesa. — Você é um andróide?!

— O quê? Nunca viu não? — Cypher respondeu, auxiliando Elisa a se reerguer e sentar-se de maneira segura no banco novamente. Pareceu ser uma tarefa árdua.

— É por isso que tu é o mais moleque daqui, tendeu, moleque? — disse o armário risonho, preparando mais uma rodada de shots para todos da mesa. — Esse daí? É logo o mais velho dessa mesa! — ele riu.

Renan conseguia sentir somente as suas próprias feições de surpresa, cenho contraído e olhos arregalados, talvez sentiu-se um pouco alterado devido a bebida.

— O mais velho… Mas, o seu corpo… Você é um smurf¹?

— Smurf? Não, não sou desses que querem resetar a vida ou coisas do tipo…

— Então…

— Um acidente — Elisa se meteu no meio da conversa. Sua voz era séria, mais séria do que deveria para o momento. — Pelo menos é o que a gente acha.

O ruivo estava olhando diretamente para Renan, parecia reflexivo. O assunto não parecia nem um pouco alegre para o andróide

— Como? É o que vocês acham?

— Como vamos ter certeza, garoto? Ele pode ser um robô, andróide, o que seja…

—Preferimos acreditar que Cypher já foi humano — concluiu Roberto. — Faz mais sentido, saca?

“Talvez”, Renan pensou. “Um robô dotado de consciência? Faz mais sentido ser um andróide mesmo.”

Por mais que chegasse nessa conclusão, ainda se pegava pensando sobre a real diferença disso. Um smurf não poderia ser algo assim? Um robô consciente? Isso não seria simplesmente um andróide? 

A diferença substancial para essa pergunta estava sempre na origem da consciência: Se é humana é um andróide, se é inteligência artificial é um robô.

Apesar das I.A.s não serem dotadas de algo tão humano quanto a auto-capacidade.

Ou não?

Por mais que Cypher não se lembrasse para dizer com certeza, algo tinha o levado a habitar um corpo sintético. Poderia ter sido um smurf ou mesmo um terrível acidente que o forçou a abandonar a carne.

Mas, será que ele realmente era um andróide?

Porém, sendo um smurf, quantas vezes ele havia feito isso? Essa também era uma ótima pergunta a ser feita. A resposta, por sua vez, era fácil, mas nada completa: Foram dezenas de vezes.

Pelo menos, vezes o bastante para que se tenha perdido todas as memórias da carne.

Cypher não tem as memórias anteriores ao seu corpo atual. Já teve algum corpo anterior a esse?

Vítima de algum hack? Algum cracker? Ou simplesmente se deteriorou naturalmente? A sua origem pode ser sombria, mas com certeza ele já teve um banco de dados antes. 

Sua primeira memória, a primeiríssima de todas, era a prova disso. Bom, não que ele já tenha contado essa memória para alguém antes.

— É por isso que tu é o mais jovem, sacou? — Roberto disse, estalando seu pescoço.

— Tem certeza que sou o mais novo? De todos aqui? 

— Absoluta! — exclamou a animada Elisa, perfeitamente de volta aos trilhos da bebida.

— Ah, é? Tá bom! Então quantos anos você tem, Elisa?

— Isso lá é coisa que se pergunte para uma dama!

— Dama?! Só se for agora!

É preciso dizer que Roberto gargalhou?

— Com certeza ela não tem menos que você, garoto.

Como luz, uma voz se fez em meio à barulheira da calçada, televisão e, claro, a tantos outros clientes do bar. Voz alta, suave como uma brisa e forte como uma pancada. Extremamente característica, mesmo Renan a reconheceu na hora.

— Gab?

— Minha irmã!

Antes que Renan pudesse se virar completamente para ver a mais nova chegada, Roberto já havia pulado do banquinho — que pareceu pedir misericórdia por aguentar um armário devido o extremo rangido que soltou — e já estava abraçado com sua esguia, alta e de aparência um tanto frágil irmã.

Renan temeu que algum osso ou prótese dela fosse quebrado sem querer e quase deu um salto do banco, porém se acalmou ao notar o extremo cuidado do irmão com quem em seus braços parecia uma boneca.

Isso apenas para realmente saltar do assento logo em seguida ao perceber algo inusitado, que o mesmo já havia até esquecido.

“Foi ela!”, antes pensou, então finalmente exclamou: — Foi ela! Você me viu naquele dia depois da missão na faculdade!

Não que realmente tivesse acontecido, mas Renan sentiu como se um silêncio avassalador e ensurdecedor tivesse se instaurado em todo o bar ao seu redor. Ele olhou para Gab, que o olhou de volta com certa confusão.

— Claro? — ela respondeu.

— Como assim você foi visto?! — Elisa exclamou de volta.

E, então, o caos havia se instaurado no recinto. Muita gritaria, ameaça e dedo na cara até que os ânimos se acalmassem e tudo fosse explicado para todos.

 


Notas:

1 - Smurf é uma prática relativamente comum entre os ricaços do mundo, muito devido ao preço do processo. Consiste na troca do próprio corpo biológico por um sintético a fim de recomeçar a vida em anonimato completo ou "viver para sempre". Existem lendas de smurfs realizados de um corpo biológico para outro, mas não passam de lendas. Dizem ser possível transferir a consciência humana para outro corpo biológico, mas mesmo num corpo sintético isso não é possível. O Smurf consiste em criptografar e computadorizada toda a sua mente, memórias e padrão de atuação genético e mental, inserindo esse banco de informações no corpo sintético. Tecnicamente, a memória original e todo o corpo original é perdido, mas ganha-se um corpo mais otimizado e um backup de toda sua atividade cerebral. Apesar dessa atividade cerebral humana poder ser copiada e inserida em outros corpos — criando tecnicamente um clone perfeito — existem regulamentações extremamente rígidas e comuns a todos os países do mundo que impedem esse tipo ação. Algumas outras atividades proibidas por lei são: manutenção pessoal do corpo original — sendo obrigatoriamente doado ao governo —, a posse de mais de dois corpos sintéticos e a posse de mais de uma memória. As punições para tais infrações podem chegar até a destruição do banco de dados mental.

 

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