Volume 1
Capítulo 10: Bar do Zeca (Parte 2)
— É claro que para acessar toda a rede de sistemas da faculdade eu precisaria ter acesso a algum computador ou central que me ligue nesse sistema. Acredite, essas coisas são bem mais protegidas do que um dia já foram no passado.
— Beleza, aí você saiu dessa rede e veio me ver de longe? Feito uma creepy?
— Te encontrar foi coincidência, Renan.
— Tá, agora eu entendi… — disse Elisa. Com o acalmar dos ânimos, mesmo os mais bêbados já se encontravam minimamente sóbrios.
— Custava ter falado comigo? — Renan estava de braços cruzados, na ponta esquerda da mesa de pedra.
Ele lançava um olhar penetrante e julgador em direção à Gab que, sentada entre seu irmão e Elisa — onde um dia já fora o lugar de Renan —, fazia pouco caso da pergunta feita.
— Eu que te pergunto, garoto — começou Elisa, esticando-se por cima do balcão para que seus olhos alcançassem o jovem. — Achou mesmo uma boa não me dizer que foi visto fugindo da missão?
Renan, então, mudou o foco de seu olhar diretamente para ela. Gab, por sua vez, esquivou-se lentamente do fogo cruzado que se encontrava e, antes que qualquer um dos dois percebessem, tanto ela como seu irmão já haviam saído do meio dos dois gritalhões.
O motivo das acusações lançadas variavam a cada instante. Novamente assuntos antigos — mas longe de serem superados — voltaram à tona e mais uma vez a hacker saiu como a trouxa da situação devido a confusão com o nome Riesiges. Em meio ao bate-boca, Cypher calmamente, invariavelmente e de forma apática enchia seu organismo sintético de álcool — não que pudesse ficar bêbado de qualquer forma.
Apesar da gritaria e alegações, de fato, não pareciam querer se ofender de verdade em momento algum. Não passava de algumas provocações bestas, mesmo alguém de fora do núcleo perceberia isso.
Renan, em meio a um instante de lucidez e longe da ira da discussão, entendeu que os dois agiam mais como amigos do que seja lá o que realmente fossem. Como um balde de água fria, seu corpo logo produziu uma sensação de mal-estar e repulsa. Ele estranhou a situação e, aos poucos, foi calando-se.
Sua rival pareceu ter notado, também compreendeu a estranheza do momento. Além de vergonha, raiva ou mesmo o fim desses sentimentos, além disso tudo. Talvez, o que melhor descreva o instante seja a gradual morte deles. Sentiram sua vontade de brigar e interagir definhar como uma folha que apodrece com o tempo fora do caule.
Não eram bons amigos, não eram nada que pudesse lhes dar esse luxo de agir como bons aliados.
Renan, em meio a isso, questionou-se a razão de ter sido convidado para aquela noite com eles. “Os que estragaram a minha vida? Especialmente ela?”, não parou de refletir isso por um tempo considerável. Assim, por mais que estivessem lado a lado, não sentiam-se capazes de olhar um para o outro. E divididos por essa barreira, ambos questionaram suas próprias decisões.
— Nossa, já acabaram? — perguntou Gab, aproximando-se no meio dos dois. — Parece que o clima pesou, né?
O jovem não fez questão de responder, sequer a olhou direito. Elisa até lançou a luz de sua vista, mas Renan não conseguiu escutar qualquer palavra vinda dela — bom, não que ele quisesse tanto assim.
Gab sentou-se ao mesmo passo que Renan ergueu-se e saiu de perto. Não olhou para trás, mas pôde imaginar os três atrás dele conversando como bons amigos. Não havia espaço para ele em meio aos seus malfeitores.
— Na paz? — Era Roberto, um pouco afastado do bar e escorado num poste de energia. Fumava o que parecia um pod.
Renan até aproximou-se, mas não se sentia mais confortável como a instantes antes. Passou a prestar atenção na rua à sua frente, nos carros e pedestres que, mesmo àquela hora da noite, ainda passavam por ali. Também pensou, por algum motivo, na segurança do bar. O estabelecimento era totalmente aberto, quer dizer, as únicas paredes que cercavam algo não serviam para os clientes. O único cercado era o próprio vendedor, o que não parecia a coisa mais inteligente a se fazer como dono de um lugar.
O que impede que qualquer um deles levante do banquinho e vá embora correndo — além da tontura da bebida, é claro — sem pagar? Talvez, efetivamente falando, nada. Mas com certeza teria um bom motivo bem conhecido que impedia todos de fazerem isso, os CDEVA — também conhecidos como Os Cobradores de Dívidas Extremamente Violentos de Aluguel.
— Dando um trago? — perguntou Renan, cruzando os braços.
— Vai querer? Parece estressado. — Roberto estendeu o pod, lançando um sorriso altamente convincente e convidativo.
— Não, valeu. Quero a outra droga mesmo.
— Quê? Ela ainda não te deu? — perguntou, puxando o pod para perto de si rapidamente, como se não quisesse dividir de verdade e estivesse aliviado com a negativa. — Já pediu pra ela?
— Sei lá, não tem clima.
— Clima? Há! Tem que ter clima pra pegar sua droga?
À essa altura do campeonato, Renan já havia definido sua primeira impressão sobre Roberto, impressão essa não muito boa. Feliz demais para seu gosto, alegre demais para a sua realidade.
— Esse seu sorriso é teu cérebro podre de drogas ou tu é assim mesmo, Roberto?
— Como é?
— Deixa quieto.
Não era tão tarde quanto realmente parecia ser. Para alguém que estava se divertindo com os amigos ou colegas ainda era cedo demais para voltar à casa. Para Renan, porém, que havia conseguido estragar de uma hora para outra a própria noite, já era bem tarde.
— É isso, deixa quieto, Roberto…
Apesar de tudo, porém, a indecisão quanto a partida era além de mental, mesmo seu corpo que tentava dar o próximo passo além da calçada tornava a recuar e estagnar no mesmo lugar. Roberto riu da vista, até parecia que Renan tentava sambar mal e porcamente.
— Olha, garoto… — começou Roberto, chegando em Renan e acomodando sua pesada e escura mão no ombro tenso do jovem. — Se quiser ir embora, vai logo.
O coração do menor acelerou. Teve certeza que o maior deve ter sentido em sua mão a batida frenética dele.
— A gente não precisa de você aqui, garoto.
E então, dois tapinhas e saiu.
Roberto não viu — e que sorte de Renan que ele não viu —, mas o jovem que ficou largado no meio da calçada cerrou seus punhos com tremenda força.
“Não precisam?”, pensou e repetiu aquele pensamento diversas vezes em menos de alguns poucos segundos. “Como não precisam?”. A visão da rua perante o mesmo logo pareceu esvair-se e perder-se em trevas. Ainda com os punhos cerrados, embebido de revolta e em um sentimento de injustiça, Renan virou-se em direção ao Bar de Zeca onde seus carrascos tomavam e divertiam-se.
Ele ia falar poucas e boas.
— Vocês…!
Ia falar.
— Parado, ou estouro seus miolos.
O segundo balde de água fria com gelo e até um pouco de neve caiu sobre o jovem. De fato, o gelo era verdade e o sentiu perfeitamente em sua nuca, era o ardor de um metal gelado. Um metal em forma de cano gelado pela noite.
A vista de Renan não foi da pessoa que o ameaçava por trás, mas viu perfeitamente a reação daqueles que estavam alguns metros à sua frente. Olhos tensos, surpresos, cenhos contorcidos que transmitiam a óbvia mistura de raiva e impulso.
— Henrique Santos de Oliveira, calma. — Elisa foi a primeira a levantar as mãos e erguer-se de seu assento.
— Henrique não, porra! — gritou o homem, empurrando com mais força o cano na cabeça de Renan. — Você sabe que meu nome é Tranca…
— Tranca-Rua, eu sei… seu apelido… — Elisa começou a se aproximar aos poucos, tentando ao máximo não inflamar ainda mais a situação perigosa. A mesma fez um sinal com a mão direita para que os outros três ainda sentados a acompanhassem, coisa que não pareceram muito felizes em fazer. — Peço apenas calma.
Renan, bem como viu o dono do bar esconder-se por dentro do estabelecimento e os outros bêbados que nada tinham a ver fugindo do local, notou que Elisa não olhava para o homem atrás de si.
Os olhos da hacker estavam focados nos dele, piscando suavemente aos dizer o nome do Tranca-Rua. A respiração um tanto descompassada do jovem foi, aos poucos, acalmando-se na medida do possível. Ele precisaria de concentração para seguir pro próximo passo: identificar seu agressor.
— Calma o cacete! — gritou Henrique, fazendo a ativação de alguma arma que Renan não pôde ver, mas que pelo barulho deduziu ser algo complexo e bastante destrutivo. — Como vou ter calma depois do que vocês fizeram, seus merdas?!
Apesar dos pensamentos intrusivos e vontade de gritar para seus colegas de crime, Renan conteve-se e continuou focado na sua pesquisa sobre o homem. Não foi a tarefa mais fácil do mundo, logo começou a suar e seu app de sinais vitais disparou um pouco de adrenalina. Apesar das inúmeras distrações, encontrou reportagens sobre o agressor, pudera ver, enfim, sua aparência: Baixo, menor que ele mesmo, cabelos cacheados laranjas e pele parda. Sua maior e melhor característica estava nas alterações corporais, tinha um belo implante de olho biônico direito e seus dois antebraços eram armas mortais de calibre militar.
— Não precisa disso, Tranca. Abaixa essas Elgins para conversarmos, cara.
— Parada você também! — Tranca ergueu a outra arma que havia acionado, sim, de fato era um Elgin modelo K-27 já engatilhada e a uma ativação do disparo.
Bastava um tiro daquela coisa que abriria um buraco bastante redondo de aproximadamente 5-6 centímetros de diâmetro. O dispositivo suportava — além de pulsos eletromagnéticos — munição antitanque e blindagem Riesiges, se fosse esse o caso o estrago seria muito pior.
Não era um implante barato, muito menos fácil de se conseguir. A arma era moderna, foi construída pela primeira vez em 2076 e tinha a proposta de ir contra a moda de montagem inaugurada pelos Riesiges — no caso, as chamadas mega-peças. Também inaugurou a mais nova moda de implantes armamentistas que, a primeiro momento, eram exclusivos para militares — logo alcançaram o grande público.
As micro-peças comuns a esses implantes armamentistas eram excepcionalmente bem aplicados no modelo, tinha o intuito de em menos de cinco segundos desfigurar completamente a forma da mão de maneira totalmente automatizada, dando espaço à forma e aparência dignas de uma arma avassaladora.
— O meu disparo é físico, tá entendo? — Tranca levantou ainda mais alto o braço. — Teu sangue vai espalhar por tudo aqui!
— Não quer mudar pro modo de pulso não? Prefiro perder meu neuro…
— Deixa de piada, Elisa, porra!
Renan mantinha-se quieto, apesar do coração a milhão. Suas buscas pela ultranet não haviam levado a lugar algum correlação a uma possível fragilidade da arma ou do homem que pudesse o ajudar a se libertar.
Exceto por uma: Tranca-Rua era cego do olho esquerdo.
Aparentemente, a cicatriz vinda do olho esquerdo até a orelha esquerda era mais que uma simples marca de combate nas ruas. Havia deixado uma sequela permanente que, até o presente momento, o homem não havia ido atrás de consertar — ou simplesmente não tinha o dinheiro para isso.
“Irônico”, Renan pensou. “Aparentemente já perdeu o olho direito antes”.
Isso só podia significar uma única coisa, aquele não era um cara bom de briga.
Em uma situação de extrema urgência como essa, a rua não parece disponibilizar muitas armas úteis para um contra-ataque ou golpe surpresa. O local específico que Renan havia escolhido para se afastar também não seria a primeira escolha de alguém que deseja uma briga ardilosa. A única coisa que o jovem pôde ver por perto era uma lixeira, mas sequer estava ao seu alcance. O meio-fio desbotado e altamente desgastado serviria para um golpe finalizador, nada útil para um começo. Postes e afins? Presos no chão, não é preciso dizer.
A única escolha para o jovem era confiar na distração de Elisa e na falta de habilidade de seu inimigo.
— Vocês vão me pagar pelo que fizeram! — Tranca gritou. Parecia óbvio para todos que ele estava minimamente alterado por alguma substância.
— Eu não tô entendendo o que você tá falando, cara — argumentou Elisa, cada instante mais próxima do alvo. — Solta o moleque aí, ele não tem nada a ver com a nossa rixa.
“Rixa, é? Tem que sobrar pra mim?”
— Calada! — Esse instante, foi nesse instante de instabilidade meio ao grito que a arma tremeu e saiu do foco. Esse era o momento.
Renan não pensou duas vezes em imediatamente se abaixar e girar no sentido anti-horário, desferindo uma rasteira em ambas as pernas de Tranca por trás.
Elisa também não ficou parada. Avançou pela tangente, chegando pelo flanco de Tranca-Rua como se estivesse em perfeita sincronia com Renan.
Ao mesmo passo que Renan e Elisa agarravam as armas e imobilizaram ambos os braços do homem contra o chão — cada um em um braço e os dois livrando seus corpos do cano de disparo —, Roberto não hesitou em partir para cima e sentar-se no tronco do homem já derrubado no chão. Desferiu um soco, depois outro e mais um terceiro.
Apenas no sexto Elisa ordenou: — Para! Tá bom, já deu.
Estava desmaiado. O bom e velho trabalho em equipe evitou mais uma chacina no velho bar de Zeca.
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