Volume 1

Capítulo 11: Interrogatório

Tiveram que arrastar Tranca-Rua até uma espécie de esconderijo desconhecido para Renan. O dono do bar do Zeca — por não ser o próprio Zeca — acabou não gostando nada da pequena brincadeira que haviam feito e os expulsaram.

— Ótimo, menos um lugar para irmos — disse Gab, com tremendo desdém.

— Não é o primeiro. — Tão apático como uma árvore que presencia suicídios, Cypher não dava tanto valor a essas coisas.

— O problema é que esse cara voltou pra encher o saco, mana. — A normal alegria de Roberto desapareceu de uma hora para outra.

— Qual é o problema que vocês têm com esse cara, porra? Eu quase morri nessa! — Renan era, dentre todos, o mais revoltado.

Elisa ficou em silêncio, suas feições extremamente sérias já transmitiam tudo.

O esconderijo em questão que o grupo se encontrava nada mais era que a casa de algum deles. Um apartamento alugado relativamente caro para um mero humano de classe média, com toda certeza não era algo que Renan pudesse bancar. 

— Vamos subir, rápido! — ordenou Elisa em sua primeira fala após todo o incidente. Todos ficaram atentos nos seus dizeres, imensa amargura e decisão na fala fez que todos acatassem as ordens sem pestanejar.

— Droga… Vamo lá! — falou Roberto, fazendo certo esforço para pegar o homem nos ombros. Gab deu dois tapinhas nas costas de seu irmão, como se o motivasse.

— Ninguém vai me explicar isso? Porra, quem é esse cara aí? — Ninguém explicou nada para Renan na hora.

A indignação fervente do jovem já havia esfriado como o ar da noite. O que sobrava era um estranho misto de sensações deveras exaustivas de se aproveitar.

Elisa mandou-o calar a boca em gestos simples, bem como economizou movimentos na hora de abrir as portas e portões do condomínio de 15 andares. Sucinta e rapidamente avançou até a porta do elevador de serviço, onde, ao chegar, Roberto largou o homem desacordado como lixo.

— Cansei — disse, com um sorriso cínico na face.

— Ridículo… — Gab respondeu, entrando elegantemente no elevador onde teve que passar por cima do corpo largado que estava bem ao meio.

Todo o resto teve que se espremer para caber ali, um ou outro deve ter pisado sem querer em Tranca, mas não deve ter sido por tão mal assim. 

— Renan, porra, para de tremer essa perna! — ordenou a impaciente Elisa, dando uma pancada na parede do elevador.

— Me deixa! — bravejou o jovem, tentando acalmar seu tique nervoso na perna. Efetivamente falando, apenas começou a dar toques com o indicador na própria coxa.

— Não vejo a hora de dar um fim nesse cara.

— Deixa disso, Roberto, primeiro vamos tirar algumas informações úteis dele — Cypher deu a ideia, que todos apenas fizeram acenar com a cabeça silenciosamente em sim.

A subida até o décimo terceiro andar pareceu eterna. Foram consideráveis e inquietantes minutos — por volta de uns 3 — até a primeira parada.

— Quê? A gente chegou? — questionou Renan, que não foi respondido.

Com o apito do display do elevador, a porta perante o grupo começou a se abrir para o lado. Não haviam chegado no seu destino final, mas…

— Coé, fala aí — disse Roberto ao zelador que se encontrava no corredor atrás da porta.

Todos o olharam, o zelador olhou todos. Renan não soube dizer se o que escorreu no rosto do homem de meia-idade era suor ou uma lágrima, mas entendeu muito bem o motivo do homem não querer se meter ali.

— Entra de vez, tá atrapalhando, maldito! — exclamou Elisa, cada instante mais raivosa com toda a situação.

O zelador instintivamente engoliu em seco, segurou forte no cabo da vassoura que carregava em sua mão direita e entrou de cabeça erguida, olhos esbugalhados e boca cerrada.

Ele também acabou pisando em alguma parte do Tranca, mas esse com certeza não fez por mal.

A pesada porta de metal reluzente tornou-se a fechar, mais uma vez sentiram o abrupto sacolejo da máquina e começaram a subir. Os apitos no painel marcavam a longa subida por toda a outra metade do prédio, ou quase.

Ao se aproximarem do décimo terceiro andar, a inteligência do elevador anunciou a proximidade do destino e todos ali dentro ficaram alertas. A caixa de metal travou, a porta abriu-se para o lado novamente e dessa vez sim, esse era o andar esperado.

— Vambora — chamou Elisa, saindo do fundo do lugar num salto digno de nota.

Imediatamente após, todos os seus colegas de equipe começaram a sair juntos, alguns se despedindo do zelador — que permaneceu travado no mesmo lugar — e outros não.

— Olha… — começou Renan, coçando a cabeça e trocando a direção do olhar entre seu grupo que se distanciava e o homem amedrontado no meio do elevador. — Desculpa aí, visse? Por isso… Sabe?

Não havendo uma resposta satisfatória, o jovem apenas acenou antes que a porta se fechasse novamente e correu atrás de seu grupo.

Renan foi passando um a um, esquivou de Tranca pendurado no ombro esquerdo de Roberto e enfim chegou no seu alvo: Elisa.

— Onde é que fica esse esconderijo, hein? É a casa de um de vocês?

— Ouse falar alguma coisa sobre e eu termino de matar seu organismo, moleque.

A seca e rápida resposta da jovem o perturbou, que decidiu acatar o conselho e se calar. Não mais que 5 segundos depois Elisa havia parado perante uma das portas dos inúmeros apartamentos do prédio, porta essa que não apresentava nada de especial em seu exterior e, ao contrário do que qualquer um esperava, tinha a tranca ainda na chave.

Interessado com a escolha vintage de fechadura, Renan começou a pensar nos possíveis donos daquele lugar. 

“Quem tem um gosto assim?”, logo concluiu que fosse de Chyper, o mais velho dentre todos, afinal.

Elisa terminou de abrir a porta e, se não fosse pelos seus ótimos seguradores muito bem presos à parede, teria sido arrancada com a bicuda desferida pela mulher. 

— Vamos, entrem logo.

Não parecia mesmo ser a cara dela usar uma porta tão antiga quanto essa, ainda de madeira e chaves. Percebeu, porém, que havia muito mais de apenas uma marca de chute na parte inferior da porta. Renan foi conectando os pontos, como o fato dela portar a chave, e pareceu enfim chegar a uma conclusão: — A casa é…

Bom, havia iniciado sua fala cedo demais, pouco antes de entrar no apartamento e ter a primeira visão da sala-de-estar dela.

Por todas as paredes, em todos os lugares, colados de cima a baixo: inúmeros pôsteres de Riesiges de todos os modelos existentes, revistas e reportagens com suas imagens e recortes de jornais tão antigos que deveriam ser da época da criação dos robôs gigantes. A cor original das paredes era impossível de ser distinguida, até mesmo a única janela do lugar estava completamente coberta desses papéis e fitas. Tamanho era o exagero das colagens que a primeiro momento parecia impossível distinguir os limites de cada parede, chão ou teto. Parecia um espaço infinito e nada acolhedor.

Ao acender a luz do local, Renan pôde ver que as únicas coisas que não tinham a textura de fotos e reportagens eram os objetos como mesa e cadeira. Não havia televisão ou sofá, prateleiras ou armários e bancadas. Era um apartamento bastante vazio.

— A casa é sua, Elisa… — Renan enfim terminou sua constatação, sem muita surpresa e alegria no olhar ou na fala.

“Espera, aquilo é…?”

O jovem achou ter visto uma coisa destoante de todo o espaço estranho, algo mais normal aos olhos e até agradável.

Uma belíssima pelúcia Hello Kitty Clássica.



Somente depois de algum tempo que Tranca veio a acordar de seu desmaio. Recobrou a consciência aos poucos e logo descobriu que não conseguia se mexer.

— Bom dia, vai um café? — ofereceu Roberto, com um sorriso cínico na cara que encheu o homem amarrado de desgosto.

— Você deve estar adorando isso, né?

— Pra caralho.

— Sai! — ordenou Elisa, empurrando o armário ambulante para o lado e se pondo na frente de Trancar. Pôs os braços para trás e olhou no fundo dos olhos do homem, por mais que só um deles pudesse enxergá-la. — Muito bem, acho que o dorminhoco não vai precisar de café não.

Tranca imediatamente virou a cara para a direita, numa possível tentativa de situar-se no espaço desconhecido. Ele parecia estar bem no meio do que deveria ser uma sala-de-estar, mas não continha absolutamente nada além do papel de parede bizarro.

— O que vocês fizeram comigo, seus malditos?! — ele exclamou, se debatendo na cadeira em que se encontrava amarrado.

— Acho que percebeu que está sem esses seus bracinhos roubados aí, né? — provocou Elisa, inclinando-se para perto dele.

— O que vocês fizeram comigo, porra?!

Renan apenas olhava toda aquela situação de longe. Vez ou outra dava um gole no seu café levemente amargo, mas ainda bem adocicado. Já passava das 4:00 da manhã, Tranca havia demorado mais que o esperado para acordar de seu desmaio e, por causa disso, tiveram que fazer um café aguentar a noite e ainda manter as forças para o interrogatório.

Renan não prestava tanta atenção assim no que acontecia ao seu lado, estava escorado ao lado da janela entreaberta, onde dava uma espiada no mundo exterior de vez em quando. A maior parte da noite ele passou navegando na net buscando informações sobre Tranca e sua gangue. 

Gab dormia de roncar no chão, de costas para a quina da parede. Parecia extremamente confortável e convidativo se deitar naquele chão e tirar um cochilo dos bons, mas o jovem resistiu à tentação.

Durante suas extensas e exaustivas pesquisas sobre todos os aspectos disponíveis da vida de Tranca, pôde encontrar muitos fatos interessantes que diziam bastante sobre a personalidade daquele rapaz.

Henrique Santos de Oliveira tinha 7 anos quando viu sua mãe esfaquear o próprio marido no coração. O homem não era seu pai biológico, mas cuidava dele e da família desde seus meses de vida.

O homem não morreu, mas abandonou aquela família imediatamente após se recuperar. Com a mãe presa e sem pai, começou sua carreira nas ruas junto de um tio que se tornou seu responsável. Aviãozinho aqui e ali, depois começou a participar das negociações, produção e, quando percebeu, já era parte de seu dia-a-dia e toda a sua infância.

O apelido “Tranca-Rua” não tem uma origem certa. O que existe na net são apenas teorias e histórias tão absurdas e quase se aproximam de folclore. A principal e mais disseminada é a história de que Henrique, num combate de gangues, matou 13 com tamanha violência que seus pedaços trancaram a rua que fora palco desse conflito. Seu desempenho foi tão impressionante que o antigo dono de sua gangue o apelidou dessa forma e pegou.

Sendo verdade ou não, a conta de corpos de Tranca é bem maior que isso. Nunca houve alguém que mexesse com ele e não saísse morto. Porém, como líder de gangue, Tranca também tem seu próprio código moral. Ainda atuante na comunidade em que nasceu e cresceu, não permite a venda de drogas para menores de idade e muito menos o abuso dessas crianças. Qualquer um que ouse fazer mal a alguém inocente vai perder a integridade física. 

Devido a esse código, a comunidade o vê como uma espécie de herói ou protetor. Para outros, porém, como seus inimigos, Tranca não passa de um empecilho muito mais poderoso que deveria ser. Muitas foram as tentativas de assaddinato contra ele, mas evidentemente nenhuma foi bem sucedida.

Durante algumas de suas entrevistas com jornalistas locais de sua comunidade, explicou o motivo de seguir tão rigidamente seu código de ética: “Tudo vem de baixo, tudo vem do começo”, dizia, nas gravações. “Todas essas crianças têm que viver o suficiente pra decidir o que querem da vida, tá ligado? Num vou condenar elas nem tirar a infância de um moleque.”

Quando questionado sobre a moralidade de suas vendas e atitudes com adultos, porém, não demonstrava qualquer tipo de empatia ou conexão.

Renan havia chegado à conclusão de que aquele homem amarrado e desacordado perante ele — e que logo mais teria acordado — era, no mínimo, digno de atenção.

— Devolve meu braço! — Tranca exclamou. Em resposta, Elisa apenas pôs a mão em seu ombro e fez uma negativa com a cabeça.

— Você vai nos responder primeiro, seu miserável. 

— Se não já sabe — complementou Roberto, fazendo um gesto ameaçador com as mãos.

Renan, que até então observava de uma certa distância, foi se aproximando aos poucos. Ele viu Gab sentada no canto da sala e se perguntou a quanto tempo havia acordado, bem como por onde andava Cypher que havia se retirado a algumas horas sem dizer muita coisa. Deu um último gole em seu café e deixou a xícara de lado na borda de uma janela.

— Vocês são quem me deve respostas, porra!

Imediatamente Roberto desferiu um murro na cara do homem, que com certeza o deixou tonto. Renan, um tanto perdido em seus pensamentos, foi pego de surpresa com a velocidade e barulho do impacto.

— Te liga — disse Elisa, agachando-se ao lado de Tranca. Seus olhos perfurantes pareciam varar a alma do homem preso e queimá-la com ódio. — Não se lembra da última vez? Precisa que eu te lembre?

— Última vez? — perguntou Renan, intrometendo-se na conversa. — Então vocês realmente tem uma briga antiga?

Elisa não deu a honra de respondê-lo propriamente, apenas o encarou com os mesmos olhos de ferro quente. Renan não deixou-se abalar e a encarou de volta. Definitivamente queria respostas diretamente dela.

— Como esquecer…? — balbuciou Tranca, recuperando-se da tontura e revelando um nariz sangrando ao erguer a cabeça. — Como esquecer que vocês mataram metade do meu grupo? — Esbanjava um largo sorriso trêmulo, que Renan soube dizer bem que era de fúria.

— E eu te poupei — seguiu Elisa, também abrindo um sorriso, porém de deboche. — Eu avisei pra não se meter mais com a gente.

— Foram vocês que se meteram comigo primeiro, porra! Agora tão matando o que sobrou, seus merdas!

Apenas um violento e poderoso golpe fora desferido no peito de Tranca: um chute de Roberto em máxima amplitude.

O golpe tirou todo o fôlego do homem e, como se não bastasse, foi mais que o suficiente para derrubar a cadeira com ele para trás. O barulho da queda foi, no mínimo, incômodo para os ouvidos de Renan.

— Não exagera — disse Elisa, dando a volta na sala para erguer a cadeira e o homem tombado. Tranca tossia bastante, mas não tirava o sorriso do rosto.

Ao devolver o homem para seu lugar novamente, Elisa lançou um olhar claro de ordem, que Roberto entendeu. Enquanto o torturado recuperava o fôlego, a mulher deu a volta na sala novamente e se pôs ao lado de Tranca mais uma vez.

— Então… — começou, meio ofegante. — O moleque aí não sabe de vocês?

— Ele não tá nesse papo — Elisa tentou cortar o raciocínio dele, mas não surtiu efeito.

— E aquele de cabelo de pica-pau? Ele também é novo, né?

— Me responda ou…

— Não que eles precisam saber quem são seus inimigos?

— Pare ou vai tomar outra dessa nos peitos.

— Então dê!

Eles se olharam no fundo dos olhos, os olhos e feições sérias de Elisa refletiam nos dentes grandes e cobertos de sangue de Tranca.

— Elisa — disse Renan, aproximando-se ainda mais da moça. — Eu acho que a história não tá batendo.

— Como? — Ela o olhou, bem como o homem amarrado e os irmãos. — O que quer dizer?

— Vamos escutá-lo primeiro — Renan, então, se agachou para ficar na mesma altura de Elisa. — O que quer que vocês tenham feito, as coisas não parecem estar batendo.

— O que é que tu tá falando, moleque? — perguntou Tranca, olhando-o com confusão no olhar. — Esses daí já acabaram com metade do meu grupo, agora tão matando o que sobrou de nois e você vem com essa? Vai me dizer que tu também não tem nada a ver?!

— Agora…? — balbuciou Elisa.

Renan estava certo, as ideias não estavam batendo naquele momento. Graças a intervenção do jovem que, finalmente, as coisas puderam ser esclarecidas para todos.

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