Volume 1
Capítulo 5: Bem-vindo à Velha Recife
Renan havia chegado no ponto de encontro determinado pelo invasor por volta de uma hora após ser convocado. Ainda não havia acertado o horário de seu neuro, que mostrava 14:35 como hora atual. Tendo em vista o breu do céu, deveria ser o pico da madrugada naquele instante.
O lugar de encontro não demonstrava ser mistério algum, foi fácil de ser encontrado e principalmente acessado. Era um enorme depósito, porém todos os seus produtos estavam totalmente encobertos por algum tipo de lona acrílica um tanto maleável. A resistência desses tipos de cobertura para objetos era altíssima, pois estavam ali moldando coisas valiosas.
O lugar, em si, não era nada diferente do que Renan esperava. Claro, tratando da Velha Recife, ter um depósito portando coisas valiosas ali já era bastante incomum. Fora isso, as goteiras — clássicas das estruturas um tanto abandonadas dessa parte da cidade — o recepcionaram logo em sua passagem pela janela mais baixa, porcamente barrada por pedaços de madeira, alguém com certeza já o esperava lá dentro. Tinha saído diretamente no que parecia um antigo escritório, toda a estrutura interna de cimento e massa ativada já estava à beira da ruína. Rachaduras pelos tetos e mofos era o que não faltava, de fato, ter visto os objetos ainda preservados no espaço seguinte à porta retrátil entreaberta e emperrada do escritório que ele atravessou foi uma grande surpresa.
Sem poder ver muito mais dos detalhes da estrutura devido a escuridão opressora, Renan considerou adentrar mais um pouco naquele interior obscuro à sua frente, mas seu senso de autopreservação falou mais alto. Ficou parado, escutando o som da chuva que houvera se iniciado no meio do caminho àquele lugar.
Mandou mensagens ao invasor, nenhuma foi respondida. À medida que os minutos iam passando a ansiedade só aumentava. Começou a tremer a perna esquerda, tinha levado alguns neurosupressores consigo e a última dosagem que tomara já estava perdendo efeito. Só pensava em como queria estar bem em casa, estar descansando nesse momento sem a menor preocupação de ter que lidar com invasores ou qualquer tipo de ameaça. Pensava, na verdade, principalmente nas palavras que ouvira alguns momentos antes. Queria se sentir bem com aquela maldita droga novamente.
Passos. Ouviu passos à sua direita. Se alarmou, ouriçou feito um gato assustado. Ouviu à sua esquerda também, dessa vez mais apressados, porém leves. Se preparou para um ataque vindo por trás! Se virou de supetão e…
— Urgh!
Alarme falso.
Baixou os braços, frágeis braços que não suportariam um golpe bem dado de verdade. Sentiu as pernas bambearem. Mais passos, corridos e mais pesados que os dois últimos. Em seguida, mais uma sequência. E outra, e mais outra. Não sabia mais diferenciar o lado ou a distância de si. A noite parecia ficar mais escura, seus olhos não se acostumaram com o breu. Eles coçavam.
— Droga… — resmungou. Levou as mãos diretamente aos olhos, não aguentou muitos segundos com eles abertos. — Aparece! Eu sei quem tá aí! — Na verdade, ele queria saber, mas tinha um chute antes. — Vai logo, você é aquela hacker, né? Aparece, Hacker!
— Hacker? — Uma voz da escuridão, parecia indignada devida a forma cuspida que Renan tinha dito. — Sério? Isso que eu disse o meu nome.
Finalmente, luzes! Vieram de trás, diretamente das lâmpadas embutidas no teto quebradiço. Foram se acendendo aos poucos, passando pelo jovem que também tornava a enxergar e enfim chegando ao show principal.
— Bom, você pode me chamar assim mesmo, tanto faz.
Um avassalador, mas aconchegante, clarão se fez perante Renan. Agora ele podia enxergar perfeitamente todo o espaço decadente, remendado e abandonado, que o cercava. Muito além de apenas coisas depositadas, mas também dejetos — biológicos e não. Tudo aquilo era uma verdadeira bagunça, um verdadeiro lugar decadente. Renan viu natureza, uma natureza que não via a bastante tempo. Viu o verde de plantas e o cinza esverdeado de musgos. Aquele lugar, largado a mercê tempo pelo que pareciam ter sido eras. Ele viu um verde a muito perdido na Nova e Velha Recife.
Acima de tudo aquilo e do jovem, uma imagem familiar. Sem dúvidas, por pior que estivesse sua memória e vista ele se lembraria daquela mulher.
— Gostou do meu vírus? — Seus cabelos pretos e azuis estavam presos. Devido ao seu implante de neuro na parte de trás da cabeça, parecia não ter cabelo da altura da orelha para baixo e, bom, não tinha mesmo.
— Vírus…? — O garoto tentava compreender o espaço. Entendeu que a mulher estava numa espécie de andar superior, mas vazado, o que lhe permitia ter uma perfeita visão de onde ela se encontrava. Viu que também não estavam sozinhos.
No canto direito, sentado de maneira folgada e bem relaxada sobre caixas, um garoto de, no máximo, 14 anos. Não parecia prestar tanta atenção na conversa, olhava para cima, para o teto. Seus cabelos eram vermelhos como o fogo de uma fogueira, seguia o mesmo estilo de corte da Hacker — mas sem o implante do neuro e sem o mesmo tamanho de cabelo. Vestia roupas chamativas bem vermelhas, um vermelho vinho na verdade. Casaco cheio de espuma, encorpava o garoto.
Na esquerda, um homem grande, grande feito um armário. Cabelos compridos e brancos sobre os olhos, mandíbula implantada de aço. Usava uma regata que valorizava e muito seus músculos artificiais. Diversas tatuagens pelo braço esquerdo e outros desenhos mais sistemáticos — como os trilhos de um chip — no direito. Suas calças eram largas e cheias de bolsos e cordas extras, sapatos grandes e pele escura. A presença pesava o ambiente de tal forma que Renan pouco conseguiu encará-lo.
— Aquilo que invadiu sua casa é a minha obra prima — continuou a Hacker, apoiando seu pé direito na grade de ferro em sua frente que servia como parapeito. — Meu neurovirus favorito, lembra que me perguntou a utilidade de um pendrive-in tão focado?
Até aí Renan se lembrava, e se lembrava muito bem. Corroía seu juízo ter aceitado a maldita droga, ter se envolvido com aquela mulher.
— Pendrive-ins também servem muito bem para carregar arquivos, sabia?
— Então esse era seu segredo? — Renan deu um sorriso debochado. — Um vírus que hackeia tudo pra você?
— Não tudo, vai! Me dá essa colher de chá, ele facilita. — A Hacker parecia realmente astuta ao falar isso, apesar de ser fácil notar o claro tom de deboche em sua voz. Cruzou os braços, Renan percebeu o brilho em seus olhos.
— Há, deve ter sido muito fácil plugar em mim drogado como eu estava, né? — O tom de ironia na voz do garoto não pareceu agradar os outros dois ouvintes.
— Calma lá, meu bem. Foi você que aceitou. — A Hacker desceu seu pé da grade. Descruzou os braços e pôs as mãos em seu casaco cor de rosa. Renan notou no resto de sua roupa por baixo do casaco, parecia uma espécie de macacão branco totalmente justo ao corpo. Havia alguns desenhos nele em RGB, sempre alternando as cores, mas nenhum que Renan conseguisse entender no momento. — São somente as consequências de suas escolhas.
— Não fale como se você tivesse o poder de decidir qualquer coisa, sua otária! Ainda mais que você é quem causou o problema!
— Bom, eu posso decidir agora, não acha? — Do bolso de seu casaco, vazando por suas mãos uma tanto pequenas, um pote cilíndrico alongado, tampa branca e corpo laranja. — Aqui está o que você quer, garoto.
— Quem disse que eu quero essa droga?! — esbravejou Renan, sentiu-se verdadeiramente ofendido com as palavras da Hacker e ainda tentava manter sua postura.
A moça riu, foi uma risada cínica, quase forçada. Uma pessoa em bom estado físico e mental perceberia que ela também estava um tanto incomodada com toda a situação. O sentimento de irritação era comum às três figuras julgadoras acima do jovem viciado.
— Tá na cara que você não vai aguentar muito mais tempo sem isso aqui. — A Hacker arremessou o pote em direção a Renan que, em um reflexo puramente desesperado, pulou como um cão adestrado em direção ao pote menos de dois segundos após vê-lo no ar. O agarrou e caiu no chão protegendo seu conteúdo com as costas. — Viu! Eu disse! — Ela terminou gargalhando.
Renan não disse nada, deu pouca bola pra situação que estava. Fez apenas abrir o pote e mandar pra dentro uma das paradas de seu interior ao belíssimo som da risada de todos ao seu redor. Pôde notar, segundos depois de tomar a droga e começar a sentir novamente a sensação de alívio e paz interior trazida por ela, uma espécie de outra risada feminina.
“Não, sem dúvidas”, pensou. “Há outra mulher aqui que não a Hacker”.
— Qual é o motivo disso tudo? — questionou Renan, olhando fixamente para a caixinha em suas mãos e guardando-a no bolso de sua calça preta fosca. — O que eu fiz pra merecer isso?
— Não é o que você fez, menino, é o que você tem… Ainda não sabe? — O jovem não viu a face da mulher, mas presumiu, pelo seu tom, que portava um sorriso cínico extremamente nojento para um rosto tão lindo.
— Você mesma disse que não é grana, então é o quê? O que eu tenho a oferecer de tão importante assim? — Ele olhou para o alto novamente, encarou sua juíza nos olhos enquanto a droga fazia cada vez mais efeito e o seu corpo se aproveitava disso.
A Hacker pareceu ponderar por um instante, olhou para sua esquerda e para o homem alto e forte de sua direita. Pareceu também olhar para o horizonte, mas nada que Renan conseguisse ver. A Hacker cruzou os braços novamente, ficou claro que estava tentando alcançar uma imagem mais séria e imponente.
— Os seus serviços, é isso que quero.
— Serviços? — Renan não foi o único a dizer aquilo. O homem musculoso também partilhou da mesma surpresa e palavra. O moça estendeu o braço direito por um segundo na direção do armário ambulante, ele pareceu entender o recado e retraiu-se.
— Muito bem, vai ser o seguinte, moleque — prosseguiu a Hacker, agora com os braços soltos. — É melhor me entender muito bem.
Renan prestava bastante atenção, também acionou o modo transcrição de seu bloco de notas virtual onde registrou toda a fala da mulher. Ele deve ter levado muito a sério.
— Sei muito bem de sua ocupação como engenheiro de software, sei também que é habilidoso com qualquer tipo de programa que se disponha a trabalhar e é exatamente isso que procuro.
— Você quer que eu trabalhe pra você? — O garoto, apressado, estava impaciente e bastante decepcionado com as motivações. — Me drogou pra isso!
— Melhor ficar calado. — Houve um som de rifle sendo engatilhado ecoando por todo o galpão. Os olhos de Renan, por reflexo, ainda puderam ver o pequeno garoto de cabelos vermelhos muito confortável e relaxado com a arma em suas mãos antes de focar novamente na mulher. — Seu trabalho não vai ser nada legal, tanto juridicamente quanto… bom, pra você, talvez.
Ele sentiu vontade de deixar um simples “Como?” escapar, mas engoliu em seco no lugar. Sentia-se, agora, em perfeito estado físico e com certeza não gostaria de perder essa sensação para uma bala.
— Os meus termos são os seguintes. — A Hacker fez o gesto de número um com o dedo da mão direita. — Você vai fazer trabalhos para mim, algumas missões a fim de continuar recebendo essa sua droguinha aí, sacou? E dois, enquanto trabalhar para mim, o meu querido vírus vai continuar te infectando, sabe, nada pessoal, apenas por controle mesmo. — Terminou já com o gesto de número dois e abaixando a mão, dando permissão para que Renan falasse.
Ele pensou bem, ainda olhou novamente para o rifle apontado para si, mas quando percebeu a constante impaciência da Hacker em espera-lo decidiu dar de uma vez a sua ousada contraproposta.
— Por que eu deveria aceitar isso?
Ousada, não muito inteligente.
A cara da Hacker se fechou na mesma hora.
— O rifle não é motivo o bastante, não é? — ela disse, deixando escapar uma risadinha sem jeito. Mandou abaixar a arma no mesmo instante, sua impaciência estava no limite. — Se acha que pode encontrar essa droga por aí, moleque, está muito enganado!
Renan deixou escapar um olhar assustado que nem o próprio percebeu. Em um sorriso sádico, a Hacker prosseguiu em meio aos gritos a sua bronca.
— Essa merda é especial! Tá lembrado não, otário?! — Deu um pisão na grade de segurança. — Você não vai achar coisa igual por aí não, nem nada que te cure! A gente que fez isso aí, só a gente tem a cura disso aí!
A ficha pareceu cair para o garoto aos poucos.
— Droga personalizada…
Talvez, um dos maiores perigos do submundo de Recife. Certamente não haveria nenhum antireceptor específico para aquela droga. Poderia até ter alguns que chegassem perto, mas dependendo de como for feita, os receptores criados pela substância no cérebro seriam específicos e caros demais para uma cura genérica dar conta. Renan começou a sentir medo.
— É isso aí — ela prosseguiu. — Não preciso sequer dizer do vírus, não? Entenda sua posição, garoto. Trabalhando para mim você vai continuar recebendo suas doses semanais de droga para se manter enquanto for útil, quem sabe um dia eu possa até te dar a cura se for bastante produtivo, bastante mesmo!
Era inegável a expressão de medo e incredulidade na face de Renan. Sempre ouviu falar desse tipo de coisa nas histórias das ruas, mas nunca se imaginou numa delas. Se sentia tolhido, incapaz de revidar.
— E… — o jovem começou a balbuciar. — E o vírus? Como me livro?
A Hacker sorriu, em meio à sua expressão fechada de raiva.
— Que bom que perguntou, isso é mais simples de resolver. Tem, na verdade, a ver com a razão principal de eu ter te escolhido ao invés de pegar qualquer outro, sabe? — Renan tentou fazer que sim com a cabeça, mas estava assustado demais para que conseguisse. — Bom, vou ser direta, quando conseguirmos realizar o nosso plano eu vou te libertar desse vírus, viu? Simples.
— Plano? Um plano…
— Maior, exatamente. Um sonho.
Renan pôde ver que o ruivo desviou sua atenção da mira do rifle para a Hacker, bem como o homem gigante que, diferente do ruivo, parecia levemente transtornado com algo. O ruivo ergueu a sobrancelha esquerda, num claro sinal de interesse e o outro prendeu seus longos cabelos brancos, estava com o cenho franzido. Renan se perguntou se aqueles dois estavam realmente cientes de tudo.
— Nós somos um grupo, Renan, e temos um sonho grandioso — ela começou, abrindo seus braços em uma pose gloriosa. — Nosso sonho é conseguir a arma definitiva da humanidade, nós queremos um Riesiges!
Todos no recinto, com exceção da que falava, estavam surpresos. O armário ambulante chamou a atenção da Hacker, a questionou sobre “a certeza de contar aquilo”, ela o tranquilizou imediatamente. Renan também se impressionou com a voz grossa e imponente e profunda do homem.
— O quê… Você tem noção disso? Você quer roubar uma arma governamental, a maior de todas elas!
— Bem dito, a maior em todos os sentidos! — riu sozinha.
— Eu não acredito… Vocês tão me convocando para uma missão suicida!
A cada instante no recinto o garoto ficava cada vez mais histérico com a situação, mas não podia deixar de admitir a euforia que sentia em meio ao medo e à descrença.
— Muito bem, se é assim que quer encarar… — A Hacker passou a dar alguns passos de cabeça baixa pelo espaço, como se pensasse em algo, o que não ajudou Renan a se tranquilizar tanto assim. — Fato é, essa é a sua única escolha, garoto. Ou dá certo, ou você morre mesmo. — Os olhos penetrantes da moça voltaram a perfurar e dilacerar o jovem.
— E por que eu! Você disse que tinha a ver, não disse?! — Renan se levantou enquanto gesticulava, apontando para si mesmo. — Por que não qualquer outro?!
A Hacker parou de andar vagarosamente e se virou para o alvo novamente. Pôs os braços para trás e o olhou por alguns segundos em silêncio.
— Não é possível isso… É sério mesmo? — questionou a moça, olhando-o com um misto de dúvida, ceticismo e impaciência.
— O quê?! O quê que cê tá falando?! — Renan estava um tanto ofegante.
— Chega disso! — gritou a Hacker, desviando o olhar para o lado e balançando a mão para o alto em um gesto de desprezo. Então prosseguiu anunciando:— Eu vou dar como encerrada essa reunião de hoje!
— O quê?! Você não pode…! — Renan tentou insistir, mas parou ao ouvir o som da arma novamente. A Hacker ainda lançou um olhar de desprezo e suspeita para Renan, então seguiu com seu anúncio.
— Seja muito bem-vindo ao nosso grupo, Renan Riesiges! — Todos no recinto pareciam surpresos. — Seja bem-vindo ao Black Hardware!
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