Volume 1

Capítulo 4: Intruso

Renan tornou a acordar em sua casa, ele estava destruído.

— Eu sabia… — Ele apalpou seu corpo, sentiu roçar na pele o mesmo jeans e imitação de lã que usava na noite anterior. Aos poucos foi sentindo arrepios pelos seus membros, suas juntas, sentiu tudo ainda colado ao corpo, tirando os dedos de seus pés que nem pareciam estar mais lá. Seu neurocell permanecia intacto na cabeça, o acessou e confirmou sua integridade operacional também. — Nunca… mais…

Ele parecia querer falar mais coisas, mas sua cabeça estava lenta demais pra conseguir formar mais que duas palavras por vez. Tentou se levantar da cama, pôs um pé no chão, depois o outro. Movia-se vagarosamente sobre a cama. Cambaleou até a porta do quarto após enfim pegar força para se erguer, mas logo caiu de cara no chão. Drogas nunca foram o forte do rapaz e a da última noite então… Teve um rebote pesado.

Renan se ergueu aos poucos e cada esforço que fazia parecia tirar-lhe parte do pé. Quando se deu conta, tinha a sensação de caminhar sobre nuvens, como se saltasse pela espuma mais macia do mundo e vez ou outra pisasse em uma agulha. Seus pés estavam horrorosamente dormentes. Sua barriga estremeceu e roncou, a boca secou como se a enchesse de areia. 

Foi se arrastando pela parede até a cozinha. Passou por Casé, na sala, desfalecido no sofá onde roncava com a força de trinta pulmões de aço.

— Ai, que droga… — resmungou, após tomar um copo d’água gelada. Sentiu seu estômago revirar e borbulhar a água, todo seu interior gelou de uma só vez e num piscar de olhos estava no chão novamente. — Não… 

Pobre, sempre foi fraco pra esse tipo de coisa.

 

 

[ 2 ! ] Ping!

Era o som agudo e dilacerante de uma notificação no seu display. Renan já sentia três dos seus dedos do pé esquerdo e dois do pé direito, o que o fez suspirar mais calmamente. Sentou-se, massageou os pés.

— Meu filho, o quê que tu tomou aí? — Era Casé, mexendo seu café morno com uma colher de ferro antiga. — Tais acabado.

— Tua cara também não te ajuda — respondeu Renan, coçando as pálpebras que pareciam inchadas. — Nunca mais… 

— Há, pois é…

O silêncio seguinte era constrangedor, Renan decidiu não se levantar até que pudesse dizer que sentia o mínimo de todos os dedos de seu pé novamente. Casé, por sua vez, tomou seu café numa lentidão inacreditável, com certeza havia deixado de ser morno muito antes que ele terminasse. Os dois reclamaram da última noite de sono, se é que dormiram qualquer coisa mesmo, Casé perguntou onde o garoto havia se metido depois de todo aquele furdunço na festa. O coração de Renan pulou algumas batidas, mas eu colega não pareceu o acontecido a ele. Renan preferiu não responder e entre uma ou outra pergunta totalmente vaga — não de propósito, mas por incapacidade mesmo — virou o jogo e fez seu amigo esquecer o ponto da conversa.

A impressão de Renan era que tudo estava anormalmente monótono, as coisas pareciam mais cinzas que normalmente eram e tudo ficava cada vez mais lento. Com o passar do mal-estar, foi percebendo os outros efeitos colaterais daquela droga. Antidepressivos? Pelo menos levava isso na fórmula, era alguma coisa tarja preta poderosa. Começou a ofegar sem perceber.

A cabeça de Renan pulsou com tremenda força que levou o jovem a segurá-la com medo que explodisse em pedacinhos. Casé havia ido embora e ele nem tinha percebido. Não conseguiu se levantar ainda, tentou, o mundo girou e ele sentou novamente. Era melhor ver as notificações.

Acessou seu feed de notícias favorito, filtrou pelas notícias que falassem da noite anterior. Não encontrou nenhuma, nada que também citasse seu nome ou aquela hacker.

— A hacker… — pensou alto. — Eu perguntei o nome dela?

[ 3 ! ] Ping!

A notificação de mensagem ressoou em sua cabeça, bateu fortemente nos quatro cantos dela e saiu pelos ouvidos.

— Saco… — Massageou as têmporas.

Emburrado, abriu suas mensagens pronto para acabar com a integridade emocional de quem quer que fosse o otário autor disto. A interface se desdobrou na sua frente, tampando quase toda sua visão. Várias conversas e grupos parados se estendiam por uma lista de metros. Não havia nenhuma ligação recente, apenas três mensagens de um número desconhecido.

— Sem foto? — Renan tentava ver algum sinal suspeito no perfil do número antes de abrir a conversa, eram muitos. Ponderou bem, não pensou que pudesse ser um chat-vírus, já havia caído em desuso e perdido sua capacidade efetiva a anos. Poucos desavisados ou desatualizados ainda caíam nessa. — Muito bem. 

Ele abriu a conversa, já estava pensando em como xingar a pessoa do outro lado do neuro. A primeira coisa que notou foi que esta era a primeira vez que os dois conversavam, sem registros anteriores no bate-papo. Logo lembrou-se da hacker.

Desconhecido: Como tais?

Desconhecido: Baby?

Desconhecido: Vê se não morre

Sentiu a pressão cair. Que tipo de coisa pudera ter feito no breu da noite passada? Pensou no melhor, era alguma prostituta que conseguiu o número dele, na certa. Se não fosse isso, deveria ser aquela hacker mesmo. Isso quer dizer que ela não fez nada de ruim, caso contrário nem estaria atrás, certo?

Estava indeciso, não sabia se respondia ou se somente bloqueava e seguia a vida sendo feliz como sempre fez. Casé interrompeu seus pensamentos, gritou de dor e pediu água para Renan — que ainda estava na cozinha.

— Me deixe em paz! Droga! — o garoto respondeu de volta, sentindo a pulsação de todo seu sangue na cabeça. Seus dedos do pé formigavam, como incontáveis agulhas penetrando sua pele, mas ele achou melhor isso que simplesmente não senti-los.

A interface do chat na sua frente parecia pulsar ao mesmo ritmo de sua cabeça, tudo ao seu redor parecia estranhamente estimulante, violentamente estimulante e irritante, na verdade. 

[ Ping! ]

Desconhecido: Só vai me ignorar?

— Droga… — Renan entendeu que a pessoa do outro lado sabia quando ele havia visto a mensagem. Ele sempre criticou quem desativava essa opção, talvez agora percebesse o quão útil podia ser.

Reticências apareceram no canto inferior esquerdo do chat.

[ Ping! ]

Desconhecido: Que cruel

As reticências voltaram a pular. Não demorou muito para que os olhos de Renan pudessem passar pela nova mensagem.

Todo o seu corpo estremeceu, as pupilas dilataram.

Seus olhos não sabiam mais para onde correr, o que olhar e onde se fixar. Pareceu perder o controle deles e, logo em seguida, de sua respiração. Aumentou a cadência com que aspirava o ar. Uma interface sobrepôs o chat pelo lado direito de sua visão, era um alerta pop-up do seu plano de saúde avisando o repentino aumento dos batimentos cardíacos. Ele não era burro, apesar de meio grogue logo percebeu a estranheza da situação. Seu corpo estava reagindo a tudo com um sentimento primordial, além do que qualquer tecnologia poderia inibir. Era medo.

Desconhecido: Esse elevador morto é um saco, já tentaram consertar?

O invasor estava ali, estava se aproximando. Renan bufou, se ergueu aos poucos do chão e tentou se estabilizar. Sentiu um choque subir pelos nervos da sua perna e se dissipar nas pontas dos dedos da mão. Manteve seus dados vitais no canto inferior direito da vista e minimizou a conversa, deixando na vista apenas a chegada de novas mensagens do número desconhecido.

Dezenas de pensamentos cruzavam a cabeça do jovem, muitos sem o menor sentido. Todos buscavam responder a única pergunta importante do momento: “O que fazer?”. Independente da resposta, sabia que precisava se armar — e foi rápido o bastante nisso. Pegou o maior facão que possuía na cozinha e o segurou o mais firme que podia. 

Seus dados vitais mostravam um boneco de seu corpo com áreas subdivididas e coloridas, um alerta automático disparou correlação a suas pernas: Alerta Vermelho! Era crítico, o formigamento agora era a dor de dezenas de facadas.

Renan cerrou os dentes, deteve o grito de agonia e o transformou em grunhidos. Segurava-se de pé pelas mãos, agarrava-se em qualquer canto de parede, geladeira ou pia que fosse. A recomendação dada pelo sistema era óbvia, ele tinha que injetar neurosupressores de tarja preta imediatamente. O garoto não era contra, sabia muito bem que Casé mantinha alguns na geladeira só por “garantia”, se é que entende. Pelo menos tal vício viria a calhar bem agora.

Ele abriu o refrigerador, pegou a caneta já destampada e enfiou-a na perna. Foi questão de segundos para que as áreas em vermelho no boneco logo caíssem para um verde claro. Renan não estava sentindo suas pernas direito, mas era melhor que a dor absurda de antes.

Mais uma mensagem havia chegado, pensou em nem ver e tentar se esconder, mas, de relance, seus olhos leram a pior combinação de letras que esperava.

Desconhecido: Porta legal, melhor que a maioria

— Sai dessa… — Quem o visse no momento veria sua cara fechada, marcada por linhas de dor e incômodo, e suor escorrendo pela bochecha.

“Muito bem”, pensou. “Combate”. Ele sabia que não tinha outra saída nessa situação, pelo menos contava com o fator surpresa, a surpresa de que o drogado atacaria com tudo quem quer que estivesse do lado de fora.

Foi cambaleante, porém ágil e o mais silenciosamente que conseguia até a porta da casa. Viu que as janelas da sala estavam fechadas, juntamente das cortinas, portanto presumiu que ninguém tinha visto qualquer movimentação de dentro. Casé não estava na sala, deveria estar socado no seu quarto morrendo de ressaca ou coisa do gênero, talvez até piorasse o combate. 

Sem ter mais como remediar ou se preparar, sozinho e com uma única faca, soube que essa era a hora.

Renan se preparou para o combate, analisou a área ao seu redor, tendo noção do espaço que seria palco do confronto. Se jogar por cima do sofá a sua direita era uma saída caso fosse recebido com disparos. Arremessar o invasor sobre a mesa de liga de titânio logo atrás dele era uma opção para ganhar tempo, quem sabe até mesmo passar pelo sofá e pular pela janela fosse a única maneira de salvar sua preciosa vida.

Respirou uma última vez, apertou o facão em sua mão direita e o ergueu na altura do ombro. Levou sua mão esquerda ao trinco da porta e em meio a mais um suspiro a destrancou e abriu.

Antes mesmo de ver o exterior por completo, Renan imediatamente desferiu um corte com o facão, de cima para baixo, rotacionando todo seu corpo num golpe violento e desengonçado. A faca escapou de suas mãos fracas e um tanto suadas. Girou uma vez no ar antes de ser cravada no chão, alguns metros à frente.

O garoto estava confuso, sem entender a situação. Não havia alvo, não havia ninguém ali. Sem inimigo? Sua respiração foi se regulando naturalmente à medida que destravava sua vista da faca e olhava o corredor ao seu redor, bem como toda a vista proporcionada pela enorme parede de vidro à sua direita. Percebeu que nem era dia, o relógio de seu display estava errado. Que horas eram agora?

[ Ping! ]

Ele olhou imediatamente, abrindo a conversa por completo.

Desconhecido: Boa tentativa, babaca

Desconhecido: Já estou dentro.

O sangue contaminado de Renan gelou. Fechou o chat, se virou e entrou na casa num salto. Olhou os quatro cantos da sala, nenhum sinal de ser vivo algum.

Um toque cibernético, seu neurocell estava tocando a música padrão de recebimento de uma ligação. A cabeça de Renan apitou e toda a casa girou, no desespero da náusea, não atendeu a ligação. 

De repente, uma sequência de notificações de mensagens foram brotando no topo de sua vista. Eram letras, letras únicas que passavam a mensagem desejada.

[ M ]

[ E ]

[ A ]

[ T ]

[ E ]

[ N ]

[ D ]

[ A ]

Renan pensou que as mensagens haviam tido efeito físico em seu corpo, que tremeu como se estivesse prestes a colapsar em meio a neve. Um frio que lembrava o gelo proporcionado apenas por um metal úmido largado na noite desceu por sua espinha. 

Ele correu.

Tão natural como evoluir, seu primeiro instinto foi fugir de toda aquela situação. 

Os níveis de estresse na sua interface de saúde começaram a aumentar rapidamente, só foram interrompidos pelos marcadores de injúria na cabeça quando Renan bateu de cara na porta de casa. 

Quem quer que fosse o inimigo, havia acabado de trancá-lo dentro da casa.

O garoto pôs o dedo do dispositivo de tranca, que não o reconheceu. Sua cabeça latejou mais uma vez ao receber outra ligação, que prontamente negou. Estava de joelhos, no chão, tentando se recompor quando recebeu a mesma sequência de mensagens de antes. Ofegante, olhou para a janela à sua direita e sentiu que ela a chamava. Precisava correr dali, precisava, precisava, precisava.

A janela, sendo a única da casa maior que duas cabeças, era a rota de fuga perfeita para o momento. Ia basicamente do teto ao chão, quase uma parede totalmente de vidro composto por três camadas: uma de vidro comum, outra sendo um display holográfico reprodutor — para imagens e afins — e a terceira de um vidro levemente mais frágil e simples. Mas, apesar das camadas, era um tanto fácil quebrar para quem quer de verdade. 

Não pensou mais que dois segundos. Se ergueu sem muitas dificuldades, deveria ser a adrenalina fazendo efeito, mas sequer percebeu. Se preparou para correr e pular com tudo contra o vidro, teria que lidar com a queda de alguns metros até o telhado da segunda área de convivência da construção, mas era bem possível sobreviver. 

Curiosamente, sentiu sua língua coçar e ansiou por mais daquela droga de antes. Quem o dera ter mais, com certeza se sentiria melhor.  

Logo, balançou os braços e deu dois pulinhos.

Desconhecido: Casa smart, hein? Inteligente 

As cortinas abriram-se subitamente. Renan parou, olhou estático para a vista do Nova Recife iluminada por suas próprias luzes noturnas, achou lindo o brilho que reluzia na água do mar — ao menos, o que dava para ver dele através dos prédios. Os brilhos o deslumbraram por um segundo, e por um instante se esqueceu do que estava acontecendo. Logo ouviu o som do reprodutor holográfico inicializando, não havia sido ele a se conectar.

O vidro, antes transparente, tornou-se fosco e novamente transparente, como se propositalmente quisesse quebrar seu foco na grande cidade. Renan já sabia o que estava por vir, uma mensagem, uma imagem. Letras começaram a subir e descer pelo que agora era um telão, aos poucos viu palavras, então frases.

Sei do que você precisa, garoto. Sei o que quer.

Renan olhou bem as palavras, estranhamente, sentiu-se mais calmo e confortável com elas que com as mensagens.

Seus dedos já estavam começando a formigar, todos de uma só vez.

Eu tenho a verdade para você e ela é simples.

— Verdade…? — Seus dados vitais voltaram a oscilar, forçando-o a sentar-se ali mesmo, no chão. Estava cansado, mas principalmente ansioso, sabia que após o formigamento o que vinha era a dor excruciante que não queria sentir novamente.

Este lugar não tem nada a oferecer, mas eu tenho.

À medida que as letras iam subindo e descendo, o garoto ia lendo e adivinhando o que vinha a seguir. Começou a se encher de tudo.

— Tá, tá! Não é como se fosse a primeira vez que escuto isso, beleza? — Mal conseguia olhar para cima, seus olhos pareciam querer se fechar para sempre de tanto lacrimejarem. — Merda, essa droga! — disse, coçando toda sua face e principalmente os olhos.

Eu posso te curar disso. — Uma voz robótica, Renan soube na hora que o invasor já havia chegado no sistema de áudio também. A casa toda agora estava à mercê dele.

— Curar? O que é isso que eu tenho?! — ele grunhiu, sua interface de saúde apitou o pico de estresse e Renan a fechou imediatamente. — Diz logo!

Abstinência. Você tá na maior crise de abstinência que eu já presenciei.

Renan soube na hora, não era preciso ser um gênio para ligar uma coisa à outra. Imaginou em jurar vingança contra a hacker, mas pensou melhor e até que curtiu a ideia de tomar aquilo de novo. Bom, ia ajudá-lo a melhorar, não é mesmo?

— Você me drogou… — Seus olhos pareciam melhorar aos poucos da coceira. — Eu já sabia… Ainda assim tomei…!

Inacreditável.

— Calada! Pra quê tudo isso? Quer grana, é? Que saco!

Acima do calor da ira, tão forte que trazia ao seu corpo cansaço e desânimo, Renan sentia a mais pura e simples frustração. Culpava-se por ter sido tão idiota, nunca tinha caído num golpe desses durante toda sua vida e… agora deu mole. De fato, merecia passar por isto mesmo, tinha que pagar de alguma forma por sua incapacidade.

Eu quero mais que isso. — A voz parecia rodar todo o ambiente, o garoto se lembrou de um clássico áudio 8d. — Você servirá para mais que isso.

— Servir? O que você acha que eu sou?

Um viciado, bem-vindo a sua mais nova missão, garoto.

Renan permaneceu calado, viu que tudo que era dito pelo sistema de som também aparecia no vidro. Coordenadas e algumas instruções primárias foram dadas, ele fez o melhor possível para guardá-las imediatamente.

Vamos lá.

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