Volume 1

Capítulo 1: Apartamento New Hill, 403

Não havia coisa que irritava mais o coração de Renan que enxaqueca, ele odiava sentir dor de cabeça. Não que alguém normalmente goste, na verdade, mas ele em particular era o ser humano que mais odiava. 

Para sua infelicidade, a cabeça latejava no mesmo ritmo da batida de seu coração, não poderia ser outra coisa se não um dos possíveis — e principais — sintomas do uso excessivo do neurocell. Isso poderia perdurar o dia inteiro, mas com sorte passaria logo antes do entardecer.

— Neuro de bosta… 

Como de praxe, a primeira coisa a fazer quando o neurocell dava pau era reinicializar o programa que, na maioria das vezes, o problema já era resolvido. Renan desconectou o cabo de carregamento do aparelho, implantado atrás de sua cabeça, e buscou a opção de reiniciar. 

Como um holograma, em frente aos seus olhos apareceu o botão de confirmação e ele o acessou. Segundos depois foi a vez das informações básicas de inicialização. 

100% [Iniciando Sistema] 

Renan inseriu sua senha, a interface do aparelho se desdobrou perante ele e cinco segundos depois já estava conectado com a ultranet novamente.

— Que droga, vamo ver se agora vai.

Agora sim, pronto para ter acesso a seu feed de notícias e vídeos engraçados e rápidos sendo projetados a qualquer momento, Renan se levantou da cadeira alugada da estação de carregamento e acessou sua conta do UltraCX. Seu saldo agora estava à mostra e pudera acessar a área de pagamento.

— Aqui — disse, fazendo o pix para a atendente da estação. Os preços caros e abusivos desses lugares nunca o agradaram, evitava ao máximo ter que gastar dinheiro nessas estações. 

Essa vez tinha sido uma emergência, seu neurocell não havia carregado noite passada — alguma espécie de mau contato — e, no meio da rua, descarregou. Não sobraram muitas opções para o jovem se não alugar 30 minutos para conseguir o mínimo suficiente de bateria para voltar para casa.

— Muito obrigada! Volte sempre que precisar! — disse a voz artificialmente animada da mulher, estava claro que era um corpo alugado para o trabalho com um programa de atendimento instalado.

Acredita-se que mão de obra não automatizada era cara demais para suas imperfeições.

Renan fez que não com a cabeça, mesmo que a atendente não fosse reagir de qualquer forma. Foram os piores R$1 por minutos gastos da vida dele, talvez realmente fosse melhor investir num medtech e fazer a troca do neuro. 

Ele estava no reformadíssimo shopping Rio-Mar, com certeza havia algum m-t por ali, mas não estava a fim de ouvir todo aquele longo falatório obrigatório sobre o quão invasivo era a implantação de um aparelho daqueles e sobre como ficam alojados no crânio e ligados ao lobo occipital.

A barriga do jovem roncou, ele sentiu um calafrio passar por todo seu corpo em seguida. Foi uma manhã complicada, sem tempo para comer algo.

Saiu atrás de qualquer coisa rápida para comer pelo lugar extremamente bem iluminado de LEDs bem estimulantes, apesar de boa parte dos anúncios das lojas já brotarem direto no neuro dele, ou seja, na sua visão. O consumo de bateria nesses lugares era sempre mais alto, então limitou a renderização dos anúncios, o que deixou o espaço físico em si mais cinza, e seguiu seu caminho.

— Sai do meio! — gritaram com ele. O movimento alto e ouriçado dos shoppings tornava impossível passear por eles sem esbarrar em alguém.

O jovem pediu perdão e seguiu sem olhar para trás. Não olhava nos olhos de ninguém, nem muito acima da linha do peito. 

— E aí, gatinho! Quer tentar uma? — Na era do hiper-vício, Renan era um dos poucos e raros que não tinha nenhum palpável. 

Bom, tinha a ultranet, era o seu consumo diário e prolongado, mas não que Renan fosse admitir se alguém o perguntasse sobre. “Na verdade, é com o que eu trabalho e estudo para trabalhar”, ele com certeza diria. 

Ignorando o anúncio da dose alucinógena da loja de entorpecentes — essa sim era bem brilhante fora do neurocell —, seguiu seu caminho até enfim chegar ao seu objetivo, sua lanchonete favorita, Adalberto.

Tinha crescido bastante com os anos, fruto de muito esforço e corte de gastos, mas o gosto sempre continuava o mesmo. Abriu um sorriso de satisfação, até que haviam poucas pessoas na fila. Não demorou muito para logo chegar sua vez e ser atendido pela tela inteligente.

— Com licença! Sai! — E tomou um empurrão. Sua cabeça latejou na hora e por isso cambaleou para trás. — Mulher linda passando.

— Como é? — indagou Renan, indo pra cima da mulher, agarrando seu braço direito. — Eu já tava aqui antes, cai fora! 

Ela o fitou de canto de olho, tirou seu braço do aperto de Renan num puxão e imediatamente lançou seus longos cabelos pretos para trás. O jovem teve a impressão de ver os olhos originalmente castanhos da moça brilharem em um verde limão.

— Renan… — começou a moça, virando seu rosto aos poucos para o garoto de forma estranha e ameaçadora. — Residente da Nova Recife, bairro do Heimer, complexo residencial Tabosa Almeida, apartamento alugado com um amigo. Mãe morta. 1,82 metros de altura, 19 anos e 3 meses de vida.

Renan estremeceu. Apenas teve consciência de perceber o brilho vermelho abaixo de seus olhos, pareceu um LED. Deveria ser um scanner implantado e conectado no neuro, não era barato, mas bastante popular. Era possível ver parte da estrutura ainda na face da moça, como um quadrado desenhado abaixo dos olhos, seguido da extensão do LED em direção ao nariz. 

— Cai fora — a mulher concluiu. 

O garoto foi sábio, seguiu a ordem da moça de cabelos negros, mas não sem antes dar uma boa olhada em sua aparência. Por baixo dos cabelos negros parecia ter alguma cor vibrante que não viu direito, não parecia ser muito mais velha que ele e definitivamente era mais baixa alguma coisa. De fato ela era linda, mas preferiu não guardar esse detalhe específico. Guardou a imagem e foi embora.

O roedeira no estômago havia dado espaço para o ardor e calor da ira, resmungava coisas no caminho à entrada do shopping onde pegou seu Auto-Uber direto para casa. 

Tentou tirar o melhor das últimas horas a fim de se acalmar, pelo menos conseguiu reativar sua conta diretamente com a gerência do banco e de quebra pagou algumas dívidas, não era nada mau.

Porém, não demorou muito para seu feed de notícias ser atualizado no canto esquerdo de sua visão.

— Meu Deus… — balbuciou, tivera uma tremenda sorte em sair do shopping naquele momento. — Raid hacker ao banco… pera, bem no meu banco! — No desespero, abriu sua conta do UltraCX e ainda conseguiu ver todo o resto da sua grana vazando para algum lugar que ele não tinha acesso.

Berrou e chutou o banco da frente. A vida não era necessariamente fácil no Novo Recife, e aquele não era o pior dia de sua vida também, mas com certeza era um dia de cão.

Tentou ligar pro seu amigo, Casé, para pegar um dinheiro emprestado e pagar o Auto-Uber. Ligou, ligou, não atendeu. O carro automatizado chegou ao seu destino, a tela cobrou o pagamento e trancou as portas e janelas blindadas. Sem muita escolha, teve que arrombar a porta do carro e vazar. Certo, para não dizer que não fez nada, ainda ligou mais vezes para seus conhecidos e não foi atendido.

Correu para dentro da área residencial e se trancou. Enquanto subia a escadaria para seu apartamento viu sua conta do Uber ser bloqueada e desinstalou o aplicativo na hora. “Chega de problemas, chega disso por hoje”, pensou.

Viu alguns bêbados nas escadarias e corredores, cumprimentou alguns vizinhos mais chegados e viu crianças correndo e brincando por cada seção da estrutura.

— Mais uma arte? — perguntou ao jovem Merlin, que se pendurava do lado de fora da varanda de uma das áreas de convivência do prédio.

— Cê vai gostar dessa, tio, vai dar um show aqui na comuna. — Pichava as paredes com a sua tinta favorita, a mais barata, que, segundo ele, era a que mais brilhava na noite.

— Só não na minha janela, sacou? — Renan advertiu, Merlin fez que sim, mas sem dar muito ouvidos, talvez estivesse muito focado ou já planejasse aquilo.

Sexto andar, chegou meio cansado, o elevador tinha quebrado alguns dias antes e ninguém tinha ido consertar ainda. Caminhou pela larga área de convivência até encontrar seu apartamento e o destrancou com sua senha e digital.

[ Renan Entry ]

O visor — que se encontrava acima do interfone no lado direito da porta — piscou as palavras e voltou a escurecer, a porta destrancou com um clique e entrou na parede automaticamente, deslizando para o lado.

— Obrigado por me atender — disse Renan, quando a porta se fechou logo atrás dele.

— Ligou? Quer dizer, foi mal… — Sentado no sofá, que ficava logo à esquerda após a entrada, vidrado em algum vídeo de informática da net, Casé comia alguma coisa numa tigela.

— É, liguei. — Renan tirava os sapatos e os guardava em um cômodo dividido em caixinhas ao seu lado direito. — Perdi meu Uber.

— Boa. — Casé não tirou os olhos do horizonte, seu neuro estava reproduzindo o vídeo apenas para ele. — Deixei torrada no fogão, visse.

— Torrada? — Os olhos do garoto brilharam.

— Aproveita, hein, é pão dos bons. — Deu mais uma mordida na comida da tigela, parecia um sanduíche.

— Nada sintético então?

— Não esse pão aí, foi uma fortuna tá? DRX$20 o pacote.

— Como é?! Com o desconto e tudo?

— Claro, tá vendo que compensa usar o Drex? — Casé emitia uma aura solar ao dizer aquilo, como se tivesse orgulho de ter sido um dos primeiros otários a trocar do Real para o Drex.

— Por isso que nenhum mercador gosta de você, odeiam dar aquele desconto obrigatório.

Casé fez que não ouviu, se levantou do sofá, pegou seu prato e acompanhou Renan até a cozinha, à direita da entrada. Enquanto o garoto recém chegado tomava algum remédio genérico para dor de cabeça, o colega de quarto lavava a louça suja da manhã e do dia anterior. 

— Já viu tuas mensagens? — perguntou o colega, afundando as duas mãos nos pratos de plástico, porcelana e diversos copos de todos os tipos no meio de muita espuma.

— Nem tive tempo, cara. Tô com uma dor de cabeça da porra. — Renan massageava as têmporas com o os dedos do meio, sentia um leve alívio nisso.

— Sem tempo? Já é mais de meio-dia, tá ligado? 

Renan o encarou fixamente, transbordando um misto de desgosto e raiva. Casé entendeu rápido o recado.

— Enfim, neuro é lasca, né? É complicado, tô ligado, mas já te adianto então. — Fez um gesto com a cabeça, olhou fixamente para os azulejos da parede e encaminhou.

O neurocell de Renan piscou uma notificação no formato do desenho de uma carta no canto superior esquerdo de sua vista. Ao olhar e selecionar, pareceu se destacar da vista e se formar como um holograma em sua frente. A carta se abriu e a mensagem encaminhada apareceu na sua frente. Era um print.

— Festa? Cê vai nisso? — Renan fechou o print de uma conversa entre Casé e uma colega de faculdade dele. — Sei não, ninguém me chamou pra isso.

— Ah, mas me chamaram, a gente mora junto também né, então meio que é um convite pra você ir também.

— Como é? Não entendo sua lógica não. — Ele andou até a torrada enrolada em papel filme no fogão, pegou e deu algumas mordidas.

— Qual foi, não precisa de ingresso nem nada, é só colar lá. — Casé secou alguns pratos e deixou outros encaixados em pé no secador. — Não vai me deixar nessa, né?

— Vamos ver, tem que ver o lugar, a grana, essas coisas. Cê sabe que não faz meu tipo entrar em festa que não fui convidado.

— Mas você foi, foi por mim! — Ele parecia genuinamente convicto.

— Convidado pelo dono, meu véi.

— Ai, vai lá, deixa isso. Inclusive, não é nem longe, já pesquisei. Deixa disso, vem comigo.

Renan já havia saído da cozinha antes de ouvir Casé dizer que era uma perfeita chance pra ele perder o cabaço. Também fez sua pesquisa do lugar, não era longe. Viu que felizmente sua grana tinha sido roubada pela manhã, mas seu colega não deixou que isso fosse desculpa e se dispôs a dar um pouco de Drex. Pareceu não ter mais como fugir e começou a considerar ir mesmo.

— Vou dormir, se acordar melhor dessa dor a gente vai — Renan disse por volta das duas da tarde. Assim o fez, se deitou, pôs o Neuro pra carregar, dessa vez de graça, e dormiu a tarde inteira.

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