Volume 1
Segunda Cova: Guarda Sepulcral
CAPÍTULO 1
Habilidade de canto era algo que Muoru não tinha.
Sozinho, enquanto manejava sua pá, cantava um punhado de músicas, desde hits populares que ouvira na rádio até pedaços de seus cantos de marcha. E, já que ninguém conseguia ouvi-lo, cantava fora de tom e, às vezes, até inventava palavras.
Embora sua voz fosse alta, ainda parecia desaparecer dentro do cemitério inabitado.
A cantoria era seu único consolo, ajudando-o a esquecer do fato de desgostar da ideia de ter que trabalhar à força com esses cadáveres para sempre. E embora continuasse a cavar buracos, ainda estava animado, como se tivesse voltado ao passado, mais especificamente, para a condição em que estava um mês atrás.
As únicas coisas que lhe faltavam, comparado àquela vez, eram pessoas com quem pudesse conversar e um capacete.
Ele já estava se acostumando com sua pá curta e a coleira que não poderia sair de seu pescoço, mas, agora, começou a perceber a leveza no topo de sua cabeça.
“Não importa o que eu faça, é óbvio que nunca vou pôr as mãos em um capacete.”
Esta não parecia ser uma necessidade neste cemitério silencioso. Além disso, se quisesse se proteger daquele monstro, um capacete de ferro provavelmente não seria o suficiente. Porém, por alguma razão, Muoru gostava daqueles protetores de cabeça, pois traziam memórias da primeira vez que ele e seus jovens companheiros, todos por volta da mesma idade e patente, tocaram um rifle e gabaram-se sobre os heroísmos futuros. Agora, pensando naquele evento com olhos um pouco desiludidos, lembrou-se que usava um capacete o dia inteiro, até mesmo quando ia dormir.
Desde então, principalmente durante uma operação militar, nunca se separou dele, mesmo se não houvesse um inimigo dentro de um perímetro de dez quilômetros. Ele mesmo entendia que era um pouco estranho se sentir desta forma, mas talvez houvesse esperança e uma sensação de segurança que vinham do capacete, o qual protegia a parte mais importante do corpo humano. Depois que se tornou um coveiro, rasgou um pedaço de pano e enrolou-o em sua cabeça, a fim de evitar insolação. Mas este pano fino não o satisfazia por completo.
— Senhor prisioneiro, agradeço-te pelo teu trabalho duro. — Vindo por trás de Muoru, a voz do velho acabou com sua cantoria. — Tu pareces estar bem, mesmo após ver aquelas coisas.
Como se estivesse inspecionando o teste de uma droga em uma cobaia, Daribedor encarou Muoru com seus pequenos olhos .
Muorou ficou um pouco desconfiado. Sua perna direita estava envolta por um curativo que parecia estar amarelado e sujo, encharcado de fluídos corporais que saiam de seu ferimento…
Então, lembrou-se da garota que se deitou sob seus braços depois que a derrubou sem querer.
— Longe disso, na verdade, parece que tu estás trabalhando ainda mais. Isto é bom.
— Bem, não é como se eu não estivesse curioso — disse Muoru. Então, tentando inserir uma leve sondagem em suas palavras, continuou: — Por exemplo, aquelas coisas…, de onde vieram?
— Onde… esta é outra pergunta filosófica. — A boca do velho se contorceu, podia-se dizer que era um sorriso desagradável. — Tu provavelmente não farias perguntas como “de onde vieram os humanos”. Não seria este o mesmo tipo de pergunta?
— A maioria veio do ventre de alguma mulher — brincou Muoru, mas o Senhor Daribedor não riu nem um pouco.
Sem tentar esconder seu desgosto, o Senhor Daribedor, enquanto se virava para voltar à mansão, disse:
— Bem, entendo o porquê de tu não teres medo. É por causa daqueles indivíduos que aparecem frequentemente à noite. Pode vos parecer decepcionante, mas é muito melhor abster-se de sair com frequência após o crepúsculo. Seria um problema para este lugar se tu fosses morto depois de todo o trabalho que fizera.
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Corvo…, como sempre, estava sentado sobre uma lápide. E, depois que Muoru contou a história de Daribedor, riu com sarcasmo.
— Aquele velhote é terrível. Parece que não importa quantas pessoas sejam empregadas para abrir covas, sempre que ficam incapazes de lidar com os demônios, logo se tornam inúteis.
Sem aguentar mais, Muoru ignorou a zombaria incessante do Corvo e perguntou:
— Vocês se conhecem?
Corvo deu de ombros e respondeu:
— Bem, sendo honesto, odeio aquele cara. Mas, mesmo assim, ele cuidaria de nós neste cemitério caso morrêssemos.
— O que quer dizer…?
— Como assim, não te contei? Até mesmo pessoas que sabem sobre a existência dos demônios podem ser enterradas aqui.
Muoru hesitou um pouco, suas dúvidas se empilhavam uma em cima da outra.
— Espere! Não há apenas monstros enterrados aqui?
— Toupeira-kun, o que está dizendo? Você não está abrindo uma cova de tamanho humano agora?
Era…. verdade.
Ele havia aberto muitas covas, mas desde o enterro daquele monstro, não lhe foi mais ordenado abrir uma tão grande. Depois de ouvir sobre o quão forte os monstros grandes eram, não sentia que havia necessidade de perguntar se os menores eram mais pacíficos.
Corvo continuou:
— Por que diabos pensou que este lugar é chamado de cemitério “Massivo”? É simples, serve para humanos e demônios. O nome vem do fato de que as duas existências incompatíveis estão enterradas aqui…, mas quanto aos humanos, não é comum virem, apenas em circunstâncias especiais. — Um sorriso sarcástico e nada infantil apareceu no rosto dele.
— Então…, por exemplo, do que é essa sepultura em que você está sentado?
— Yep, acho que é uma humana.
— Saia daí agora mesmo.
— Ei… — Corvo fez beicinho, fazendo um alvoroço com os pés, até que Muoru levantou a pá, ameaçando-o para que fosse obediente.
— Ah, você é um cara tão bonzinho. Não se parece nem um pouco com um prisioneiro — disse o Corvo enquanto colocava os pés no chão e suspirava profundamente.
— Por quê?
— Por que o quê?
— É estranho. Repetindo o que você disse, aqueles monstros são o inimigo natural da humanidade, né? Por que seus companheiros precisaram sepultá-lo com tanta cortesia?
Por ter perdido seu assento, Corvo sentou-se de pernas cruzadas no chão. Como se fosse uma criança, ele queria se sentar logo . Não, não era isso. Mesmo tendo visto sua aparência infantil muitas vezes, às vezes, quando o Corvo falava, Muoru se esquecia completamente deste fato.
— Já se esqueceu que aquelas coisas são imortais?
— Ah — assentiu Muoru. Corvo, com certeza, havia dito isso: “Essas coisas não têm aquilo que chamamos de vida. Assim como as palavras sugerem, são mortos-vivos. Mesmo que você corte, queime ou pique em pedacinhos minúsculos, ainda voltam à vida, como se fosse uma piada…”
Aos poucos, o garoto começou a sentir o desconforto vindo daquelas palavras.
Vendo sua mudança de expressão, Corvo continuou:
— Isso mesmo, é estranho, né? Enterros são cortesias que você realiza para coisas mortas. Porém, mesmo assim, nesta terra, estamos enterrando inimigos que, de alguma forma, não podem morrer…. Claro, apenas porque damos um serviço memorial não significa que simpatizamos com eles.
Muoru estava em silêncio.
— Você estava certo em supor que “Caçadores” exterminavam esses demônios. Eles certamente os enfrentavam, entretanto, não conseguiam exatamente terminar o trabalho — falou o Corvo. — Mas, por exemplo, se humanos de eras atrás fossem capazes de portar o mesmo tipo de poder que os “caçadores de demônios” tinham quando caçavam esses monstros com rifles, creio que a humanidade teria alcançado a mesma prosperidade que temos agora.
Isso mesmo, Corvo, definitivamente, disse isso na última conversa. Havia dito que a existência dos monstros era um obstáculo para o avanço da civilização.
— Como humanos, não conseguimos matar aquelas coisas. Bem, se a cabeça e os pés deles estiverem presos, não serão capazes de fazer qualquer coisa. No entanto, isso é o melhor que podemos fazer. Infelizmente…
Com um rosto cheio de remorso, mordeu os lábios.
— Espere, não é isso mesmo o que torna tudo estranho? — interferiu Muoru. — No outro dia, você não disse algo sobre como as pessoas foram capazes de adquirir um método para derrotar esses monstros?
— Ah, sim, agora mesmo, este método está sob seus pés.
— Então, as bestas enterradas neste cemitério, supostamente, são imortais. Mas você não sabe de algum método para destruí-las?
— Você não entendeu, né? Ei, veja isso. — Como se brincasse em uma caixa de areia, o Corvo bateu no chão. — Existe algo a mais sobre essas coisas além de apenas terem um corpo físico. Se você as prender, será capaz de impedir que se movam. Entretanto, mesmo se tentar afogá-las em água ou enterrá-las em um buraco, no final, serão capazes de escapar do confinamento e continuar o massacre. Então, parece que certo dia, alguém tentou enterrá-las em uma sepultura humana.
— Então, você está dizendo que, depois do enterro, elas não conseguem voltar à vida? — perguntou Muoru, finalmente compreendendo o que Corvo estava dizendo.
O mesmo assentiu e mostrou um sorrisinho .
— Mesmo que sua pergunta “por que os demônios não voltam à vida se forem enterrados em um cemitério” já tenha sido feita antes, não faço ideia. Até mesmo grandes estudiosos não sabem. Porém, talvez, pode ser que seja pelo fato de esses demônios existirem em corpos que nós não entendemos.
— Já que são tão diferentes das criaturas vivas desta terra, há alguns tipos de histórias dizendo que vieram da lua. O cara que tentou enterrar em um cemitério pela primeira vez…, bem, talvez planejasse que fosse alguma brincadeira ou algo do tipo.
— Então, o cara que comeu lesmas do mar pela primeira vez pretendia que tudo fosse uma brincadeira — disse Muoru, rindo, mas até a pessoa de aparência infantil, o Corvo, tinha uma expressão misteriosa e que parecia miserável.
Rabiscando o chão com o mindinho, o Corvo respondeu:
— Bem, é apenas uma hipótese…, talvez, se as pessoas mortas por aqueles monstros possuem rancor, possivelmente, as coisas presas aqui seriam incapazes de se reanimarem.
— Não diga coisas tão assustadoras.
— Não me diga, ficou com medo?
— Não sei, só não gosto de fantasmas — disse Muoru com convicção.
Corvo levantou o rosto e estufou suas bochechas macias.
— Fico imaginando… — Enquanto fazia aquela ação infantil, mais uma vez, disse algo que até mesmo um adulto não diria: — Bem…, mesmo que o poder deles esteja selado, não significa que podem ser enterrados em qualquer cemitério. Precisa ser uma terra antiga, uma com poder; o tipo de terra que foi protegida por pessoas e continuou a servir como o oposto de um berço humano por muito tempo. Este tipo de terra se torna a prisão eterna dessas coisas… Exatamente como este lugar…
Lembrando-se de seu desconforto, Muoru perguntou:
— Bem, de qualquer forma, este não é um lugar terrivelmente importante?
Corvo riu:
— Sim, isso mesmo. E, claro, existem outros cemitérios que existem apenas pelo propósito de derrotar os demônios. É por isso mesmo que esta tarefa é de tamanha importância e que a segurança se faz necessária. Se houvesse apenas um lugar, por exemplo, aqui, e se fosse destruído, aqueles demônios voltariam e não haveria nada que pudéssemos fazer.
— Bem, a maioria dos outros lugares foi disfarçado , e pessoas comuns são proibidas de entrar, a fim de evitar a entrada daqueles sem qualquer conhecimento sobre o que há sob o solo.
“Faz sentido, talvez seja por isso que ninguém visita os túmulos daqui.”
O fato de não haver visita de pessoas comuns era um fator negativo, diminuindo suas chances de encontrar uma pista sobre como escapar. Ainda assim…
— É estranho, mas… — Ainda que entendesse o que Corvo estava dizendo, Muoru, no momento, estava preocupado com outra coisa. — Há cerca de cem anos ou mais, humanos viveram com medo, sem métodos para matar esses monstros, né? Se isso é verdade, por que as pessoas não sabem da existência deles? No mínimo, eu e as pessoas ao meu redor não devíamos estar completamente no escuro.
— Isso é simples. Você não precisava saber — disse Corvo, acenando rapidamente com a cabeça, como se fizesse uma promessa apressada.
— Por estarem perdendo a poderosa imortalidade, os números deles estão diminuindo muito mais em comparação ao passado. Uma coisa interessante é que esses demônios parecem entender a própria desvantagem. Agora, não só estão evitando caçar ou atrair humanos, como também não aparecem diante deles — afirmou Corvo. — E, de todo modo, observamos esta tendência. Os monstros não estão aumentando. Então você pode dizer que não morrer é um tipo de fraqueza. Pegue a força militar como exemplo. Não importa o quão forte sejam, sem suprimentos, é provável que sejam bem fracos, certo?
— Ah, isso sim.
A analogia do Corvo era bem fácil de entender mesmo, então o garoto, comandante das toupeiras, respondeu com um aceno de cabeça forte.
A rigor, a força militar composta de humanos e os monstros talvez fossem diferentes, mas em ambos os casos, depois de perderem a força total, os dois seriam incapazes de reviverem. E logo após isso, ficava óbvio que ficariam piores aos poucos.
— Sim, isso mesmo — continuou Corvo —, depois de todo o esforço necessário para diminuir o número de demônios, as baixas também se tornaram menores. Luzes a gás e elétricas foram desenvolvidas e, agora, mesmo se o sol se pôr, atividades padrões podem continuar.
— Enquanto as pessoas estiverem com medo da fraca ameaça da escuridão, este medo terá um efeito sobre a indústria e economia. Como resultado, os países pensaram ser preferível manter os monstros em segredo. Chamando isso de escuridão vivendo nas sombras.
Muoru, ainda não persuadido, esteve mordiscando os lábios. Então, Corvo continuou sua explicação:
— Por isso, não pense que é uma mentira o mundo não saber por completo.
— Hã? Sério?
— Bem, deixe-me fazer uma pergunta, como foi a primeira vez que veio a este cemitério? Não estava assustado ? Por quê?
— Olha, sobre isso… é porque, quando eu era criança, minha mãe, minha terrível tia ou sei lá quem, me aterrorizou completamente. Falou sobre coisas que saíam do cemitério à noite, fantasmas, espíritos malignos… zumbis e coisas do tipo.
— Viu só? Todas essas coisas não são iguais as “criaturas que prejudicam humanos”? Parece que as histórias envolvendo os demônios mudaram um pouco, assim como os nomes pelos quais são chamados — riu. — Bem, devido ao nível extremo deste segredo, é difícil simplesmente encontrar alguém que pode abrir covas em um cemitério sem perder a sanidade. E se essa pessoa vai ao cemitério, é provável que a mesma tenha certas qualidades.
— Qualidades?
— Tais como ser capaz de aguentar a situação onde o inimigo natural da humanidade está próximo, a qualidade de ter nervos fortes. De forma mais simples… ser forte.
— Não sou forte ou algo do tipo — disse o garoto, sem muita convicção.
— O quê? Sei que você se refere a não ter ânimo como eu, mas não precisa ser modesto.
— Não estou sendo modesto. Lá no fundo, realmente penso assim. Se eu fosse forte mesmo, não estaria… — Muoru parou e olhou para longe. — Não, esquece.
— O que… o que ia dizer?
Corvo, insistentemente, queria ouvir o que Muoru estava prestes a dizer, mas, com uma expressão amarga no rosto, o garoto, com teimosia, manteve a boca fechada, não mostrando sua verdadeira face, assim como uma toupeira que se esconde no subsolo.
No fim, Corvo ficou mais furioso e mostrou sua língua extremamente vermelha para o garoto.
— Você é uma toupeira-kun idiota! Tentando parecer mais maneiro do que é! — gritou Corvo, como se gostasse de humilhá-lo. Então, da mesma forma que apareceu, sumiu de forma abrupta.
Muoru deu um suspiro profundo. Com a ida de Corvo, ele foi deixado sozinho no cemitério, enquanto o sol atingia o ponto mais alto.
Embora as músicas tenham sido capazes de mudar seu humor, percebeu que, ao invés de letras de músicas, suspiros saíam de seus lábios cada vez mais.
Para falar a verdade, ele pensava que era bastante forte. E, quanto ao exército, mesmo que fosse apenas um bando de idiotas contando apenas com seus músculos, como um amontoado de homens, só conseguia chamá-los de fortes às vezes.
No entanto, a confiança em sua força foi sumindo rapidamente desde que foi trazido a este cemitério. E, hoje em dia, estava no ponto onde precisava dizer ao infantil do Corvo para não entender errado.
Ele estava com medo da escuridão noturna.
A existência desses monstros começou a acabar com sua sanidade.
Recentemente, temia que a guarda sepulcral não estivesse em lugar algum…
… e que o odiasse e temesse.
“Faz sentido”, pensou Muoru, tentando interpretar suas próprias emoções. “É natural me sentir incomodado. Aquela garota é minha importante… minha importante base de apoio para fugir daqui.”
No outro dia, naquele em que correu freneticamente, sentiu que conseguiu conversar com ela numa boa após pedir para ser seu amigo. Porém, desde então, não foi mais capaz de interagir . Ou ele era o único pensando em coisas inúteis, ou estava confuso com as palavras de rejeição da garota.
Quanto à Mélia, já que sempre fazia o máximo de perguntas que podia, ela quase não dizia as coisas que ele queria ouvir, fazendo-o pensar que era injusto.
“Por que ela só mostra o rosto à noite? Qual seria a função específica de um guarda sepulcral?” Quando lhe fez estas perguntas, ela mostrou uma expressão complicada e balançou a cabeça.
Quando viu-a fazer essa expressão, ficou mais nervoso com a possibilidade de que, “talvez ela me odeie”. No entanto, se fosse verdade, ela provavelmente evitaria o encontrar pessoalmente toda noite… “Então, mais cedo ou mais tarde, o dia em que ela conversará comigo chegará, né? Será que realmente chegará?”
Mas, com o progresso atual, este dia poderia estar muito mais distante do que imaginava.
“Meu deus, quem o Corvo chamou de forte?”
Ele riu. Algo assim era ridículo. Se realmente fosse o suposto “forte”, talvez não tivesse entrado em um estado onde não conseguia se acalmar por apenas pensar na garota.
De qualquer forma, embora não tenha recebido a resposta sobre a amizade direto dos lábios dela, foi capaz de descobrir qual era sua idade. Quatorze anos passaram em sua vida. Além disso, descobriu muitos outros fatos aleatórios também, tais como: ela gostava de maçãs maduras e odiava chuva, pois suas roupas ficavam sujas de lama.
Todavia, no fim, ainda não era sua amiga. E nunca concordaram sobre uma hora ou lugar específico para se encontrarem.
Por isso, como resultado, quando anoiteceu, Muoru saiu para procurá-la no cemitério.
Talvez fosse inútil, mas mesmo sendo estranho, o tempo que passava procurando-a não era algo ruim. Até mesmo sentia que era divertido, mesmo não tendo certeza do porquê. Até o cemitério, o qual, no começo, era terrivelmente assustador à noite, já não era mais um problema. Na verdade, apenas as luzes das estrelas eram o suficiente para que pudesse caminhar. “O poder de adaptação dos humanos é incrível.”
Mas o cemitério era muito vasto, e mesmo que tenha se acostumado com a vista das lápides e árvores que pareciam se expandir ao infinito, ainda não tinha certeza de onde estava. O primeiro ponto de referência que usou era uma árvore gigante, a qual crescia irregularmente no centro do cemitério.
Enquanto ainda sabia o caminho de volta até a árvore, continuou procurando por Mélia, porém, esta noite, mesmo tendo caminhado por quase todo o cemitério, não conseguiu a encontrar.
Ele pegava pedrinhas e galhos à medida em que continuava a caminhar, e, então, suas pernas ficaram cansadas, foi aí que uma ideia surgiu. Chamou Dephen, que estava logo atrás dele.
— Você tem um bom faro, não tem? Não seria ótimo se me ajudasse a procurar?
Quando falou, não estava sendo totalmente sério, mas depois de um tempo, pensou ter visto o cachorro mexer o focinho, antes de virar seu corpo e correr para dentro da escuridão. Com uma arrancada, o garoto o seguiu.
E, esta noite, Mélia estava logo abaixo daquela árvore gigante, abraçando os joelhos.
Parecia que estava escondendo alguma coisa na sombra das raízes, mas, ao que tudo indicava, não havia notado a presença dele. A árvore era tão grande que, se homens fossem dar as mãos, seriam necessários cinco para abraçá-la. E as raízes expostas eram grossas o bastante para esconder sua figura abaixada.
Ele pensou que, ao chamá-la, enquanto a mesma estava sentada ali, seria a primeira vez que começaria a conversa.
“Talvez ela sempre esteve procurando por mim”, pensou o garoto, imaginando esta agradável possibilidade.
Muoru, de propósito, fez bastante barulho com seus sapatos. À medida em que se aproximava dela, como se estivesse assustada, escondeu com pressa suas mãos atrás dos joelhos dobrados.
— Ei, o que está fazendo?
O rosto de Mélia mostrava nervosismo, algo que não era comum. Ela era como uma criança que foi pega enquanto tentava esconder algo que fez de errado.
Muoru olhou para as pernas dela, mas não de uma forma desvirtuada. Os seus joelhos estavam cobertos pelo seu manto e ela escondia algo atrás deles com ambas as mãos.
Silêncio.
Com ambos nesta posição, o silêncio extremamente estranho continuou. Ficou claro que, para ela, o encontro aconteceu em uma hora inconveniente. No entanto, embora tudo parecesse bastante normal , a coisa que a garota escondia com todas as forças apenas aumentou sua curiosidade. A ponto de até mesmo o fazer pensar qual seria o nível de ódio que ela sentiria caso levantasse suas pernas à força.
“Claro, eu não conseguiria lhe fazer isso, de jeito algum.”
Ele não sabia se a paciência dela esgotaria ou não se ficasse parado ali, mas, como se desistisse, ela inclinou a cabeça e pegou o item misterioso sob suas pernas.
Algo preto e sem brilho cobria ambas as palmas. Além da cor, também tinha a forma esférica imperfeita de um pêssego e, próximo ao topo, havia marcas semelhantes a mordidas. Se fosse apenas isso, não passaria de algum tipo de fruta ruim, entretanto…
Muoru agarrou o peito no mesmo instante. Como se uma porta fosse aberta de repente, sem batida alguma, uma lembrança cruzou sua mente.
Diante de seus olhos, viu alguém ser atingido por um explosivo e, o homem desconhecido e com farda militar, caiu de costas.
Sua cabeça, junto de suas costelas, foi explodida, mas Muoru conseguia ver o coração do homem batendo sem parar.
Quanto à fruta nas mãos da garota, o pulsar da parte carnuda sob as marcas de dente parecia igual ao daquele coração. Era… era completamente igual.
Aquilo era parte de alguma coisa?
— O que… é isso? — perguntou Muoru enquanto tremia.
Entretanto, Mélia, com a cabeça inclinada, disse em voz baixa:
— Não posso…
Ele entendeu. Mesmo se essa fosse a única coisa que conseguia dizer, Muoru sabia o que significava. Basicamente, após uma semana ouvindo-a usar isso em resposta a vários assuntos, entendia que era sua forma de dizer “não me pergunte”.
A intenção por trás da recusa ficou em seu caminho como um profundo abismo, no qual ele permanecia à beirada. E no outro lado estava a garota. Mas, quando tentou ir para aquele lugar, percebeu que, não importava quanta terra jogasse no espaço vazio, o abismo jamais ficaria cheio.
Mélia levou a fruta preta à boca, movendo-se de forma muito lenta, como se o garoto não estivesse ali. Então, começou a comer.
Olhando para a boca simples dela, Muoru perguntou:
— É boa?
Ele não esperava sua resposta, porém, com a fruta na boca, Mélia balançou a cabeça lentamente .
Mesmo sendo ela, seu comportamento estava mais estranho que o normal. Embora fosse quase impossível elogiá-la por sempre mostrar boas maneiras sociais, esta foi a primeira vez que Muoru sentiu estar sendo completamente evitado por Mélia.
“Você está incomodada por eu estar aqui?”, pensou em lhe fazer essa pergunta, mas, quando abriu a boca, a única coisa que saiu foi:
— Bem, deixa eu te dizer uma coisa.
Certo. Ela o considerava um incômodo. Isso ele sabia.
No entanto, mesmo sabendo disso, a confirmação fez com que seu lado sentimentalista ficasse ainda mais fragilizado .
Apoiando as costas contra o tronco da árvore, o garoto não sabia o que fazer.
E, com a fruta ainda tocando os lábios, a garota, com tristeza, balançou a cabeça de um lado para o outro.
CAPÍTULO 2
Moscas voavam sobre a orla.
Era algo que ele não havia notado até então. Isto é, sentiu que foi a primeira vez vendo insetos desde que veio ao cemitério, o que era um pouco surpreendente. Ainda mais porque, apenas um pouco antes de seu mandato no cemitério, não teve um único dia em que não viu moscas.
— Qualquer lugar onde pessoas se reúnem, moscas e mercadores aparecerão, sem dúvidas. — Ele não conseguia se lembrar da pessoa que disse isso, mas, com certeza, uma família grande, em meio a uma expedição, sofreria com moscas zumbindo por todos os lados.
Quando se tratava do exército, os excrementos de pessoas e cavalos, a grande quantidade de comida e sujeira jogada fora e os cadáveres criavam um ambiente perfeito para alimentar insetos. A propósito, além de cavar trincheiras, uma das responsabilidades das toupeiras também era cavar buracos para enterrar todas essas coisas.
E, recusando-se a sucumbir-se às moscas que voavam por todos os lados, os acampamentos militares também eram visitados por mercadores de aldeias, os quais tinham comprado licenças das patentes superiores.
O homem enviado pela guilda dos mercadores tinha uma carroça cheia de indulgências, tais como: cigarro, bebidas, barras de chocolate, jornais, baralhos, acessórios à prova de bala, óculos de sol e mudas de roupas de baixo, todos os quais os soldados distribuíam onde quer que fizessem acampamento.
Os dias mais agitados, normalmente, eram logo após os pagamentos ou quando mercadores vinham com fotos picantes de atrizes famosas. Ambos faziam com que uma enxurrada de indivíduos rudes e incultos começassem a brigar, por isso, PMs eram despachados para evitar as brigas e colocar as pessoas em fila.
No entanto, uma coisa interessante era a mercadoria. Mesmo que 100% dos clientes fossem homens, as carroças também tinham outros produtos, como perfumes e batons, não importava como olhasse, ficava claro que eram produtos femininos. Dependendo da carroça, vários acessórios de vestuário eram vendidos.
Muoru, naturalmente, passou muito tempo imaginando que tipo de soldado compraria e usaria esses produtos. Porém, um dia, quando se deparou com um de seus superiores após colocar as mãos no pagamento, o mistério foi solucionado.
Com um sorriso, seu superior comprou alguns brincos. Após isso, foi direto da carroça até as tendas montadas atrás do acampamento.
Claro, comprar uma licença para vender produtos durante as campanhas militares não era um direito apenas da guilda dos mercadores. Também havia outra tenda, chamada “Guilda da Heroína”, feita com um tecido coberto por desenhos floridos, diferente do material que os soldados usavam.
Ele não sabia sobre as intenções de seu superior, mas assumiu que ele comprou o produto como uma forma de conquistar um coração, ou algo do tipo.
Seja como for, a carroça do mercador não viria para este cemitério, e mesmo que viesse, Muoru estava falido. Além disso, não conseguia imaginar Mélia ficando animada ao receber coisas como batons ou perfumes de presente.
“Bem, acho que deve ser apenas um problema com minha imaginação.”
A garota era diferente das mulheres comuns. Até mesmo Muoru, que havia usado seu abono militar para comprar apenas envelopes ou um pouco de bebida, entendia isso.
E, ao ouvir seus problemas, Corvo disse:
— O coração de um esqueleto.
Pouco antes de fazer esta declaração, esteve se preocupando muito sobre sua incapacidade de diminuir a distância entre ele e Mélia, e o Corvo aparentemente desocupado discutiu o assunto com ele de forma distraída.
Quando pensou nisso com mais clareza, percebeu que cometeria um erro. O assunto em mãos era uma fonte perfeita de provação para alguém como Corvo, já que era o tipo de humano que parecia pular com toda energia se sentisse que algo parecia um pouco divertido.
— Então é isso… por isso você se recusou a me dizer antes — murmurou Corvo sem ao menos tentar esconder seu sorriso cruel. — Nossa, queria que tivesse me contado antes. Esta toupeira se interessou pelo sexo oposto!
“Bem, Corvo parece estar animado.”
O mal-entendido de Corvo não foi o suficiente para justificar uma correção. Muoru estava se aproximando de Mélia porque precisava de uma forma para escapar, nada além disso. No entanto, se tentasse corrigir este mal-entendido, ficaria bem claro que se tornaria um alvo de provocações ainda maior. Embora estivesse relutante, não havia nada que pudesse fazer a não ser deixar este assunto continuar desta forma.
— Bem, além de presentes, é essencial elogiar os pontos fortes dela. Por exemplo, se alguém elogiasse meu cabelo, eu ficaria muito feliz.
“Ninguém perguntou sobre você.” Resistindo à vontade de dizer isso, Muoru, ao invés disso, fez uma simulação mental. Mélia apareceu em sua mente e falou. Felizmente havia muitas coisas para elogiá-la, e, naturalmente, por ser sua imaginação, suas palavras saíram normalmente.
“E aí, Mélia, seu cabelo está bonito como sempre.”
“Obrigada, Muoru. Fico muito feliz em ouvir isso.”
— Nah, não daria certo. Com toda certeza, ela não ficaria feliz.
Corvo mostrou um olhar repleto de simpatia para o garoto que franzia a testa ao pensar.
— Pois é, pois é, Mélia-chan, certo? Não posso vir aqui a não ser à noite, por isso nunca a encontrei, mas parece que é uma pessoa complicada.
Isso era realmente verdade. Porém, não poderia só chegar e dizer coisas como, “você está sendo irracional, então pare”.
“Talvez ele seja mesmo um cara legal”, pensou Muoru, mostrando um pouco de ignorância. “Parece que até mesmo eu estou desistindo.”
Então, ao invés de confortá-lo, Corvo disse algo estranho:
— Hmm, faz sentido. Em outras palavras, é provável que a garota tenha o coração de um esqueleto.
— Como? — perguntou Muoru sem pestanejar.
Os olhos de Corvo se estreitaram repentinamente, e, como se fosse um hipnotista, falou de uma forma completamente fascinante:
— Ouça, tente imaginar o interior do lado esquerdo do peito de um esqueleto. Carne e ossos entrelaçados. E, atrás das costelas brancas…
Corvo juntou as duas mãos abruptamente, como se estivesse prestes a aplaudir.
— É vazio — continuou.
Muoru exalou, como se tivesse sido enganado.
— Do que está falando?
— O problema com sua compressão não está apenas nos ouvidos. — Corvo colocou uma mão no peito e falou com um tom misteriosamente sério. — Acho que até você já deve ter passado por isso. Nunca sentiu seu coração pular ao ouvir algo maravilhoso ou chocante? Certo, se tivesse que imaginar, essas palavras chegam muito mais fundo do que apenas até sua consciência exterior. Porém, a garota em questão parece não ter este tipo de sensação. Não importa o que lhe diga, acho que suas palavras podem nunca chegar ao seu coração, simplesmente como se não tivesse um.
Ao ouvir isso, Muoru, sem perceber, mordiscou os lábios.
— Ah, ei, ei, não fique tão para baixo. Isso não passa de minha própria suposição. Pode ser que ela apenas tenha habilidades sociais ruins, né?
— Se isso é verdade, não tem problema. Mas sério, sinto que parece inútil, não importa como se veja.
Rindo da timidez do garoto, Corvo disse:
— Bem, vamos descobrir se ela tem ou não um coração.
— Hein?
A garota é humana, por isso, fisicamente, com certeza possui um. Dizer que é o “coração de um esqueleto” devia ter sido apenas uma analogia. Porém, Corvo disse que deviam confirmar…. Uma afirmação que deixou Muoru perplexo.
— Sim, então, feche os olhos — disse Corvo, e Muoru obedeceu inconscientemente.
Então, como se usasse algum tipo de feitiço, disse:
— Ouça, tente imaginar o peito esquerdo da garota. Sob seu manto, roupas íntimas, pele, carne ossos, tudo isso. Há um coração mesmo? Não devíamos tentar confirmar? Você poderia perguntar: como ? Bem, é simples. Use a palma de sua mão, caso sinta alguma coisa batendo, tudo bem. No entanto, se seus dedos soltassem as roupas dela e revelassem a protuberância em seu peito, pode ser que você ame isso…
— …
Corvo riu e apontou para o rosto de Muoru.
— Oh, nossa, Toupeira-kun. Seu nariz está sangrando. Não me diga que está imaginando algo pervertido.
— Vá… vá… vá se ferrar, seu idiota! Não estou pensando nisso! Vou te enterrar vivo! — gritava Muoru enquanto cobria a área abaixo de seu nariz com a mão, fazendo com que Corvo risse.
— Uau, que engraçado. Toupeira-kun, esta foi a primeira vez que você me respondeu assim!
Foi um completo e grande erro discutir isso com Corvo.
Bem, parecia que não havia ninguém mais além dele para discutir sobre Mélia.
No fim, Muoru confirmou que não poderia usar um presente, nem imaginava que ela entenderia seus elogios. Sendo este o caso, pelo menos, ele devia se preocupar em fazer algo que ela não odiasse. Este era um pensamento incrivelmente modesto, mas, no momento, não havia outra opção.
Próximo ao estábulo degradado, onde ele dormia, havia um reservatório que parecia ter sido usado para dar água aos cavalos no passado.
Ao acordar mais cedo que o normal, Muoru foi até lá, encheu um balde velho e trincado com água, então, despejou sobre sua cabeça. Dentro do reservatório de água parada, larvas de mosquito flutuavam. Sem percebê-las, encheu o balde novamente e repetiu a ação.
A água estava morna, com um fraco cheiro de mofo, mas era o bastante para despertar seu rosto distraído.
— Toupeira-kun, ouça, você sempre está coberto de lama, mesmo quando está de folga — disse Corvo antes, enquanto lhe entregava uma lâmina de barbear —, pelo menos, quando não estiver abrindo covas, pode tentar manter uma boa higiene. Não importa o quanto esconda seu verdadeiro comportamento, nenhuma garota irá gostar se você for relaxado.
Isso não tinha nada a ver com Corvo. Mas, mesmo assim, realmente havia pessoas que se importavam se toupeiras estavam cobertas de terra? Mesmo garotas…
Murmurando reclamações sobre o Corvo insinuante, Muoru, mesmo assim, raspou e barba e removeu toda a sujeira de seu corpo.
Na distância, o céu oriental estava começando a brilhar, mas o sol ainda não havia dado as caras. Do outro lado, a lua podia ser vista vagamente.
Embora tenha sido uma boa ideia ter colocado as roupas após se secar, ainda se sentiu um pouco perdido por não ter alguma coisa para fazer.
Ainda tinha tempo até começar a trabalhar. Entretanto, depois de se esforçar para tomar um banho, não podia voltar para a cama. Por isso, decidiu ir até o cemitério.
“Como está Mélia?” De repente, essa dúvida cruzou sua mente. Ele sempre ia dormir antes dela, por isso não sabia que horas ela saía do cemitério. “Será que ainda está de guarda?” Muoru andou com esses pensamentos na cabeça. Porém, depois, mesmo que se encontrassem, sobre o que deviam conversar?
Enquanto passeava do cemitério ao estábulo, a vista do lado da mansão não sumia durante o caminho. Como de costume, ele passou pelo lado da cerca de ferro preta, mas, desta vez, conseguiu ouvir água vindo da direção do pequeno jardim.
Geralmente, teria pensado que era alguém regando as plantas, no entanto, lembrou-se que o jardim da mansão era monótono e não possuía arbusto algum.
Ele tinha certeza que era apenas a água corrente dos canos da residência. Por isso, sem se preocupar, foi até os fundos.
Mélia estava lá.
Ela estava ajoelhada no centro do jardim, em um recanto coberto por concreto. Ao lado, havia uma coluna estreita, com uma torneira anexada à sua extremidade. Uma mangueira azul estava ligada a ela, e o braço branco de Mélia a segurava sobre a cabeça. Da ponta daquela mangueira, água saía e lavava todo o seu corpo. Sua aparência, por trás, era a mesma de quanto ela nasceu.
Logo antes do amanhecer, em um mundo que ainda mostrava sinais de escuridão, a garota lavava seu corpo.
“Isso não é estranho?” O garoto estava confuso.
O cabelo castanho-claro dela, o qual sempre esteve coberto pelo capuz, ia até sua cintura e fazia com que a água pingasse sobre sua pele branca, a qual estava completamente nua, da cabeça aos pés.
Estranho, parece uma contradição…. Mesmo tendo uma figura magra…, por que sua pele parece ser macia…?
— Muoru…?
Se ela sentiu seu olhar ou não, ele não sabia, porém, naquele momento, Mélia olhou para ele por cima do ombro. A linha de visão da garota, completamente indefesa, e o olhar rígido do garoto encontraram-se através da cerca de ferro.
Então, a garota largou a mangueira e cobriu seus seios modestos. Sua cabeça estava baixa, e água pingava de seu queixo, cabelo, cotovelo e outros lugares.
— Me… me des…
No momento seguinte, um rosnado horrível veio do mato alto, então, o cachorro saltou com uma força capaz de estraçalhar Muoru. Após isso, sem conseguir pedir desculpas direito, o garoto fugiu.
“Não imaginava que veria Mélia tomando banho lá, ele pensava nisso enquanto movia suas pernas com desespero. Será que… estava apenas sonhando, assim como de costume?”
Mesmo não tendo certeza sobre isso, havia uma coisa que não tinha dúvidas; embora não tenha sido de propósito, depois de vê-la, provavelmente seria odiado para sempre.
CAPÍTULO 3
O prisioneiro no cemitério abria covas.
Este era seu trabalho—seu dever.
O tamanho das covas era designado e marcado por quatro rebites no chão. Porém, por alguma razão, hoje só conseguiu encontrar uma das marcas.
“Talvez seja algum tipo de engano”, pensou ele enquanto olhava para o chão ao redor de seus pés. Ainda assim, não conseguiu encontrar outra marca.
Ele estava nos limites do cemitério em massa, as lápides que o cercavam não estavam próximas. Era muito diferente da uniformidade de um complexo habitacional de uma cidade; ali, os túmulos eram colocados em qualquer lugar.
“Qual o significado disso?”
Com a pá no ombro, o garoto olhou para a única marca. “Será que Daribedor se enganou?” Ele colocou seu pé sobre o rebite e olhou para longe…
— ….
Neste momento, finalmente notou o outro rebite cravado no chão, porém, estava muito longe de sua posição atual. Ao pensar que isso era algum tipo de absurdo, foi conferir. Mas era estranho, esse foi colocado na distância onde o terceiro ou quarto normalmente ficavam. E se a marca realmente não fosse um engano, esta cova teria o dobro do tamanho da primeira, a qual foi usada para enterrar aquele monstro de cabeça gigante.
O ânimo de Muoru mudou drasticamente. “Quanto esforço precisarei aplicar para terminar isso aqui?”
Então, o medo aumentou, “qual o tamanho desse, para precisar de uma cova tão grande?”
Não só percebeu o tempo e esforço que precisaria, como também teve uma resposta para sua segunda dúvida. Afinal de contas, isso era natural. Mesmo que a criatura fosse mais pequena que a cova, o tamanho do buraco era o suficiente para caber três blindados ou até mais.
“Os monstros têm uma variedade infinita de tamanhos, porém, o que têm em comum é que, ‘quanto mais grande, mais forte’”, antes de começar a trabalhar, se lembrou das palavras de Corvo.
Corvo e aquelas pessoas planejavam enfrentar aquela coisa que, supostamente, seria enterrada na cova que ele estava abrindo? Se assim for, deviam orar por segurança, pois, pelo que lhe foi dito, esses monstros eram imortais.
Suspirando, Muoru fincou a pá no chão e levantou sua primeira pazada de terra. Com a mesma ação, deu outra pazada, então, outra pazada, e outra pazada, e outra pazada, e outra, e outra, e outra…
E, embora tenha feito isso várias vezes, até anoitecer, nem metade da cova foi aberta.
Mesmo tendo ficado acostumado com esta atividade, como era de se esperar, ele ficou cansado. Após todo o esforço feito para limpar o rosto sujo naquele reservatório pela manhã, acabou voltando ao estado imundo de antes. Mesmo sendo um prisioneiro, sentia que sua condição era um certo tipo de punição. Porém, se fosse esse o caso, por que estava sendo punido?
“Foi uma falsa acusação. Não fiz nada de mal.” Ele tocou o peito com a mão e se lembrou da visão que teve esta manhã.
Ao mesmo tempo, sentiu uma parte dele se endurecer involuntariamente.
Ainda que fosse um acidente, espiar Mélia enquanto ela tomava banho era um crime certo.
Ele passou o dia inteiro pensando sobre qual seria a melhor forma de conversar com ela quando se encontrassem. Sem dúvidas, a primeira coisa a sair de sua boca devia ser um pedido de desculpas. O que fez foi muito lamentável; simplesmente não havia como descrever.
Com esse pensamento, voltou ao reservatório para se lavar. No entanto, parecia que a terra já havia grudado em suas juntas e pontas dos dedos e, por este motivo, não importava quanta água colocasse sobre seu corpo, jamais poderia se livrar disso. Porém, a fim de esfriar a cabeça, despejou água sobre ela várias vezes, como se fosse um tipo de ascético religioso.
Logo depois, foi em direção ao cemitério e, mesmo distante , pôde ver uma familiar luz alaranjada flutuando na escuridão da noite. Ela se aproximou dele na mesma velocidade languida de sempre.
“Bom, talvez ela não esteja tão brava.”
Se estivesse, não tentaria o encontrar. Essa simples linha de pensamento o tranquilizou.
— Méli… — Mas quando foi falar, ela parou, ficando bem longe. Ainda se sentindo culpado, Muoru não tentou se aproximar mais.
— …
— …
Um silêncio desconfortável caiu sobre ambos. “Não vai ser legal se eu não conseguir pedir desculpas de forma apropriada.” Muoru tentou abrir sua boca, entretanto, antes que pudesse dizer alguma coisa, Mélia falou:
— Por um tempo, não saia à noite.
Seu septo nasal ardeu um pouco e ele teve vontade de se dar um chute por ter se sentido aliviado.
— Sinto muito. Acho que você realmente está brava — disse ele, abaixando a cabeça com vergonha.
Mélia, cujo rosto estava envolto pelo capuz, balançou a cabeça.
— Não estou.
O comportamento da garota parecia dizer “Você não precisa se desculpar” ao garoto.
— Eu sinto muito mesmo, não foi de propósito! Às vezes, acordo mais cedo e vou dar uma caminhada. Ouvi a água corrente e fiquei intrigado… Sério mesmo, não pretendia te espiar, mas ainda assim, acabei te vendo lá…
O rosto de Muoru estava ficando vermelho. Na metade de sua explicação, suas palavras começaram a ficar tão embaralhadas, a um ponto tal que não sabia mais o que estava tentando dizer. Era como se tivesse o comportamento de uma criança do jardim de infância.
— Por favor, pelo amor de deus… — disse Muoru, mas suas palavras desesperadas pareciam não chegar até a garota.
— Não estou brava ou algo do tipo, se acalme. Durante um tempo, fique apenas no estábulo à noite. Não saia, de jeito algum. Por favor, te imploro…
Ela agarrou a extremidade do manto com tanta força que seus dedos ficaram brancos. E enquanto apertava, não fez nada a não ser implorar para que ele não saísse, sem parar.
Sem ter escolha, depois disso, Muoru voltava para abrir aquela cova gigante durante o dia. Então, à noite, passava o resto do tempo dentro do estábulo.
Enquanto encarava a parede velha para passar o tempo, sua mente não parava de se preocupar.
Ele não sabia o que a garota queria dizer com “durante um tempo”, porém, ela havia dito para apenas não sair, isso não significava que havia cortado relações com ele.
Se o que pensou fosse verdade, assim como as palavras “durante um tempo” implicavam, logo o suspense e nervosismo acabariam.
No entanto, após dois ou três dias, seu corpo coçava de tanta impaciência, e nada podia ser feito. “Sério que não tem outro jeito? Não foi de propósito…” Essa desculpa começou a marcar presença em sua mente mais uma vez. E a única forma de aquietar tais pensamentos era ouvir diretamente de Mélia. Isso mesmo, mesmo sabendo que não conseguiria dizer com clareza o que queria, não havia mais nada que pudesse fazer.
Então, em certa noite, do nada, ouviu os uivos de um cachorro, vindos do cemitério.
Sem conseguir relaxar por alguma razão, tentou sair do estábulo.
O céu completamente limpo e estrelado parecia o mesmo de sempre; como se não tivessem ocorrido mudanças quando passou as duas noites sem sair.
“Mas… por quê? Por que me sinto arrepiado?”
O garoto tentou esfregar o braço com gentileza. Já estava acostumado com o cemitério à noite, então não era aquele seu sonho acordado que estava causando o medo e arrepios de agora… “Talvez seja apenas minha imaginação.”
Mas não poderia confiar em sua sensação sobre a atmosfera atual, caso sua mente fosse enganada por um equívoco.
De repente, algo aconteceu. Assim como o próprio nome implica, um abalo sísmico é um fenômeno que faz a terra tremer. Muoru pensou que a área parecia estar tremendo um pouco. Poderia dizer que a sensação era semelhante a observar um gigantesco tsunami levantando no horizonte. Dentro dessa onda, um enxame de, possivelmente, inúmeros soldados inimigos corriam vigorosamente em sua direção, preparados para atacar.
Talvez estivesse sentindo o começo de uma premonição. “Não.” Seja qual for a sensação que estava prevendo, ela estava prestes a acontecer.
Com esses sentimentos, voltou ao estábulo, mas não achava que seria possível esperar sem fazer nada até o amanhecer.
“Talvez eu devesse me preparar para fugir.”
Logo após pensar nisso, Muoru saiu do estábulo e correu até o portão da mansão. À primeira vista, pensou que o cemitério noturno estava mais normal do que nunca. No amplo e inclinado terreno, não havia humanos, apenas lápides. O vento uivava através das folhas das árvores, e toda a área estava cercada pela escuridão.
Muoru correu em direção à grande árvore, no centro exato do cemitério. Escalar árvores não era sua especialidade, mas se fosse capaz de subir, provavelmente conseguiria ter uma vista clara de todo o perímetro.
Porém, quando finalmente chegou à raiz da árvore, já sem ar… ele viu “aquilo”.
Foi a segunda vez que seu cérebro não conseguiu entender o que estava vendo.
Ele não conseguia distinguir bem a memória do que viu naquele dia, quando se deparou com uma criatura que não era algo visto no dia a dia. O primeiro contato ainda era recente. Foi quando o monstro de cabeça gigante estava preso e enterrado.
Agora.
Diante de seus olhos, havia um saco de carne gigantesco.
Se forçasse os olhos para enxergar, veria que a massa macia, esférica e distorcida de carne enrolada se parecia com a cabeça de um polvo…, porém, polvos não andavam sobre terra firme, deviam ter olhos e com certeza não eram mais altos que um prédio de dois andares.
Esse era um monstro.
Ou, como Corvo disse, um demônio. Ou, como a garota guarda sepulcral disse, A Escuridão. Além disso, esse era muito maior que seu amigo, o monstro de cabeça gigante que ele enterrou.
Mas agora era diferente. Desta vez, não estava preso ou algo do tipo. Ele se movia. A gigantesca cabeça carnuda de polvo não era apoiada por oito tentáculos com ventosas… não, eram rígidos, iguais aos de um besouro, e só ajudavam a fazê-lo parecer maior.
A ponta de cada tentáculo formava uma ponta afiada e parecia uma garra, dependendo de como olhasse. Claro, não era natural ter coisas como uma garra dura e óssea em qualquer lugar do corpo. E, quanto à quantidade, inúmeros tentáculos de variados tamanhos saíam de baixo do saco de carne, todos se contorcendo sem parar, assim como as patas de uma centopeia.
Era extremamente estranho e assustador, e Muoru tinha certeza que não era uma criatura do mundo normal.
Aquela criatura estava seguindo em frente, para onde… Mélia estava.
O garoto parou de respirar.
Ela não estava correndo ou tentando fugir. Pelo contrário, ela e o monstro estavam se encarando.
Mesmo com o manto e o capuz a cobrindo, seu corpo ainda parecia delgado, o qual, diante daquela besta monstruosa e gigantesca, parecia extremamente pequeno. E, mesmo de muito longe, Muoru conseguiu ver a mesma expressão calma que ela sempre teve no rosto.
O monstro ergueu uma das pernas, como se fosse uma foice.
“Corra”, o garoto tentou dizer, mas sua voz não saía.
Porém, independentemente se gritasse ou não, não faria diferença. Já era tarde demais.
A perna balançou de um lado para o outro, como a língua de uma cobra, com sua ponta na forma de uma garra afiada.
Então… a mão esquerda da garota girou sem parar no ar, como se fosse a ponta quebrada de uma espada, antes de cair e rolar no chão.
Um grito débil e frágil ecoou.
E, embora não fosse alto, ou talvez não pudesse ser tão alto; o som de sua voz ainda perfurou os tímpanos de Muoru.
No momento seguinte, quatro pernas da criatura se esticaram e perfuraram o corpo de Mélia. Seus gritos logo desapareceram. Havia uma garra atravessando seu corpo, logo abaixo da garganta, impedindo-a de gritar. As outras perfuravam o braço direito, a coxa esquerda e seu umbigo… cada uma atravessou até que o corpo da garota ficou todo perfurado por elas .
Depois, o monstro usou as quatro pernas estendidas para levantá-la. Sangue escorria da boca dela e, no momento seguinte, como se seu corpo não pudesse mais segurar, uma grande quantidade de líquido vermelho saiu de suas partes baixas.
O monstro balançou a garota impotente no ar e a arremessou. Enquanto jogava o corpo, sua garra, a qual perfurava seu umbigo, cortou-a de dentro para fora, fazendo com que seu abdômen e entranhas saíssem de seu corpo, como se fossem uma longa cauda. Então, ela atingiu o chão, sangue foi espalhado para todo o lado, como se o monstro simplesmente tivesse esmagado uma fruta repleta de suco. E, no chão, os intestinos dela formavam um arco .
Mélia…
Ainda estava viva.
Estava soluçando.
Não importa o quão musculoso ou forte um homem fosse, ele, com certeza, gritaria ao receber ferimentos graves como aqueles. Claro, não seria estranho se morressem logo após, já que, em outras palavras, eram ferimentos fatais.
Porém, apesar disso tudo, a garota se levantou.
No começo, parecia instável, mantendo as mãos sobre os joelhos. Mas então, ficou ereta e suas pernas permaneceram firmes.
Em seguida, o garoto viu algo mais inacreditável que o próprio monstro.
As tripas, que saíram de seu abdômen aberto, contorceram-se como minhocas e rastejaram para dentro do corpo dela. Então, depois que tudo aquilo que devia estar do lado de fora de seu corpo voltou para dentro, o grave corte, de dentro para fora, fechou-se, parando o sangramento.
Isso não era tudo; sua mão esquerda, a qual foi decepada no primeiro golpe, voltou até seu corpo, como se fosse puxada por um imã. Ela subiu pela sua perna, estômago, peito e costas, antes de se juntar ao seu pulso, voltando a serem dois braços completos. Era como se Mélia fosse uma boneca, e sua mão e corpo estavam sendo costurados por um alfaiate invisível.
Ao testemunhar este espetáculo inacreditável, Muoru se lembrou das palavras que Corvo dissera uma vez: “Essas coisas não têm aquilo que chamamos de vida. Assim como as palavras sugerem, são mortos-vivos. Mesmo que você corte, queime ou pique em pedacinhos minúsculos, ainda voltam à vida, como se fosse uma piada…”
Mélia foi perfurada várias vezes, e seu corpo foi dividido ao meio. Cada vez que era ferida, dava um grito, como se desistisse…, mas, então, seus braços e pernas dilacerados, seus órgãos espalhados, seu tronco rasgado ao meio e sua cabeça esmagada voltavam à forma que estavam antes. No entanto, como se fosse alguém que sentia prazer ao ver homicídios macabros, o monstro gigantesco brandiu seus tentáculos e continuou seu massacre sobre ela, parecendo que iria durar para sempre.
Sob a lua brilhante e as estrelas, em um terreno que parecia se estender ao infinito, o monstro, fora do comum, continuou a destruir o corpo de Mélia. Parecia que a crueldade duraria para toda eternidade, porém, conforme o tempo passava, parecia que sua energia diminuía aos poucos…
O motivo era simples.
O número de pernas se movendo estava diminuindo.
Sob o corpo do monstro, ainda parecia haver vários membros afiados sobrando, mas, agora, mais da metade parecia ter parado. Uma a uma, as pernas que deviam estar balançando sem parar, de repente, pararam e não se moveram mais.
Mas não estavam parando ao acaso . Na verdade, ao olhar mais de perto, parecia que as únicas paradas eram as que tocavam Mélia.
Não havia como saber o porquê, mas vamos aos fatos: a garota se aproximava e, sempre que as pernas do monstro a feriam, cortavam ou perfuravam, elas paravam de se mover logo depois, ficando penduradas, como se os nervos tivessem sido danificados. Aos poucos, sua energia se reduziu ao ponto em que as restantes não conseguiam mais aguentar seu peso. E quando a massa de carne caiu, causou um tremor que abalou a terra.
Se isso fosse o que era normalmente considerado uma luta, seria normal haver uma diferença estratosférica entre a força do monstro e a da garota. Se Muoru o enfrentasse, mesmo se lutassem um milhão de vezes, era capaz de ele morrer em todas. E, sendo sincero, havia uma diferença gigantesca entre a força daqueles dois.
Ainda assim, aquele monstro horrível e demoníaco foi incapaz de matar a garota, cujo corpo era magro como um caule de planta; na verdade, o corpo dele foi enfraquecendo aos poucos. Era como uma pedra, sendo desgastada por muitos meses e ciclos de chuva sem fim.
Mas é claro, por ser um gigante, a velocidade de enfraquecimento era terrivelmente lenta.
Até que, no fim, a última perna parou de se mover.
O amontoado de carne dobrada, maior que qualquer tipo de estátua, não conseguia sequer lutar com uma formiga agora. Quando a criatura violenta parou de se mover, embora fosse estranho dizer, ela parecia desanimada e desencorajada, como se fosse um patrono em um festival que havia acabado de terminar.
Coberta por sangue, mesmo não tendo um ferimento sequer, Mélia, com a mesma lentidão de sempre, foi até o monstro e tocou sua carne com a mão direita.
A atmosfera vibrou sem emitir sons. Não foi uma mudança que ele conseguia ver com os olhos, porém, tudo ficou quieto. Era como se o mundo tivesse parado.
A criatura não se moveu mais. Mélia tocou-a, cambaleando por causa do cansaço. Sua respiração estava pesada e agitada. E mesmo estando viva após ser apunhalada, perfurada e rasgada ao meio, sua aparência pálida parecia a de um cadáver.
— Muo… ru? — A garota levantou o rosto cheio de lágrimas.
O garoto não tentou esconder os sons de seus passos.
Ao vê-lo, Mélia parou de chorar. Não, era melhor dizer que ela engoliu o choro.
Ele não sabia por que ela fez aquilo, já que seria muito mais fácil de entender caso ficasse soluçando em seus braços como uma criança.
“Devo me aproximar ou ir embora?”
A única coisa que conseguiu pensar foi na aproximação.
No entanto, antes, a razão pela qual não gritou foi por autodefesa.
Se gritasse “corra”, aquele monstro provavelmente teria apontado suas armas para ele e o matado assim que acabasse com a garota. Por isso não poderia gritar, por isso não o fez. E, realmente, não havia nada de errado com essa hipótese; só que a possibilidade de que Mélia sobreviveria não foi incluída.
O arrependimento pelo que fez era grande, mas seria difícil se desculpar por fugir com o único intuito de salvar a própria pele. Porém, independentemente do que os outros podiam pensar, ele não pretendia fugir no atual momento .
No entanto…
— Mélia. — Não havia força em sua voz.
A expressão da garota, enquanto segurava as lágrimas, era mais dura do que qualquer tipo de máscara, e Muoru não tinha certeza se ela podia mudar isso ou não.
“Está tudo bem? Está machucada? Me diga, o que é você?”
Essas dúvidas passaram pela sua cabeça, mas, se perguntasse, não sabia se seriam uma boa forma de se comunicar com ela.
Depois de derrotar aquele monstro, tremendo de dor, estando assustada, ferida e, agora, coberta de sangue, com a cabeça baixa por causa da vergonha, o que poderia dizer para melhorar a situação…? Ele só precisava que alguém lhe dissesse , não importa quem fosse.
— Quer… ser minha amiga?
— O quê?
O garoto agarrou a mão direita de Mélia com força.
A mão que finalizou o monstro.
— Mesmo que tenha me rejeitado naquele dia, vou apenas ignorar — disse Muoru, sorrindo de forma estranha, fingindo relembrar daquele dia.
Da mesma forma de quando foi perguntada pela primeira vez, Mélia piscou, como se isso fosse algo engraçado.
— Não é justo dizer não uma segunda vez depois de já ter rejeitado alguém antes.
Como um mágico, que conseguia cativar o coração de crianças ao produzir uma bandeira com a palma da mão, Muoru falou com a mesma maneira tranquila e tagarela de sempre. Mas, mais importante que isso, estava mantendo a calma. Caso continuasse com aquele tom e aparência, até mesmo sua bondade esvairia de seu comportamento.
— Bem, estou certo ou não?
Não houve mudança na expressão de Mélia. Ela não disse nada, nem balançou a cabeça de um lado para o outro. Apenas encarou o chão.
Vê-la era como observar líquido derramando da beirada de um copo cheio até a borda. E, de repente, a partir dos olhos úmidos, uma única lágrima escorreu pela sua bochecha.
— Não consegue se levantar?
A garota assentiu com a cabeça, uma lágrima caiu de seu rosto com o movimento feito .
Muoru virou o rosto para o lado e fez o máximo possível para desviar os olhos do corpo dela. Depois, soltou sua mão e passou seus braços sob suas pernas . Ele colocou o braço direito atrás de seus joelhos e o esquerdo em suas costas, levantando-a.
— Ei, o que está fazendo? — gritou a garota, nervosa.
— Acho melhor você se lavar. Depois, troque de roupas e tal. — Muoru simplesmente respondeu de forma curta e grossa.
Mesmo ele sabia que carregar o corpo dela poderia parecer estranho, mas pensou que não era hora para se preocupar com isso.
Bem… talvez ela não fosse uma princesa ou algo do tipo.
Ao dizer roupas, Mélia corou, pois finalmente percebeu sua aparência.
Mesmo não havendo ferimentos em seu corpo, suas roupas ficaram em trapos. O manto escuro que sempre usava foi rasgado e apenas alguns trapos cobriam seu corpo, como se fossem as cascas sobre um pintinho que havia acabado de chocar; um estado que poderia ser chamado de “seminu”.
A condição de sua roupa revelou o mistério sobre o que havia sob a espessa e escura sombra de seu manto. Parecia que ela não usava nada além de um fino vestido como roupa de baixo. Mesmo assim, a garota em seus braços possuía pouco tecido para cobrir suas partes importantes, e o que sobrou estava laceado, revelando suas pernas até a altura da metade das coxas. Por causa disso tudo, Muoru ficou sem saber para onde olhar.
“Se não tivesse sangue escorrendo pelo corpo dela…”
Por ser capaz de ter pensamentos ridículos como esses, mostrava que finalmente havia se acalmado depois daquilo.
Alguns minutos após ter começado a andar, Mélia perguntou com uma voz tímida:
— Não sou pesada?
Ainda que sua voz parecesse estar falhando, não estava fraca. Ao que tudo indicava, não corria risco de vida, mas, talvez, não estivesse completamente a salvo. Suas bochechas pareciam estar quentes devido à febre, sua respiração estava agitada, e ele conseguia sentir, com a mão em suas costas, o coração dela bater acelerado .
Ficou claro que ela não era normal. No entanto, o garoto não queria dificultar as coisas e perguntar muito. Portanto, o melhor que podia fazer era tentar acalmá-la.
— Mesmo se fosse três vezes mais pesada, ainda seria tranquilo.
O corpo de Mélia era delgado, chegando a ser desconfortável, sem contar sua falta de peso. “Ou talvez eu tenha mais força em meus braços porque estou nervoso.”
— …
Mélia desviou o olhar e suspirou.
Mesmo que estivesse coberta de sangue, sua aparência ainda era bonita. Sua expressão parecia tranquila, mas ele conseguia sentir que ela estava desesperadamente pensando em algo.
Enquanto caminhava, toda sua concentração foi focada nela, como se, em todo o seu campo de visão, só existisse ela. Muoru observou os longos cílios, pálpebras, bochechas brancas e ruborizadas e lábios rosados. Caso se abaixasse um pouquinho só, ficaria perto o bastante para tocá-los.
Em vez disso, ouviu.
Aqueles lábios estavam murmurando algo sem coerência, quase sem fazer som.
E, quando uma emoção profunda se fez presente no rosto dela, a garota disse o nome de alguém. “Maria”.
Isso não era para ele, não havia dúvidas disso. E não só Muoru não tinha ideia do que significava aquele nome, como também parecia que a mente de Mélia estava divagando.
O nome parecia semelhante ao de uma mulher, por isso, pensou em uma possível conexão várias vezes…
Porém, depois disso, ela ficou em silêncio.
O corpo da garota perdeu toda a energia, como se tivesse adormecido. Por um momento, pensou que seus braços podiam sentir uma mudança no corpo dela, mas este mesmo pensamento desapareceu para além do horizonte.
Como ela não exigia muito de seus músculos, imaginou ser melhor caminhar com cuidado, para que não a balançasse muito. Como resultado, a caminhada até o portão da mansão levou muito tempo.
Mas, para Muoru, o tempo que passou carregando-a por esta longa distância passou voando.
Então, colocou Mélia sentada no chão, com o corpo ainda paralisado por causa do cansaço. A primeira vez que esteve ali foi quando o policial militar tocou o interfone, como se isso fosse uma grande conquista. Naquela vez, tentou observar o funcionamento, mas não conseguiu, por isso, não se lembrava mais sobre como usá-lo.
Duas ou três vezes, ouviu um som de sintonização de rádio vindo do interfone. “Provavelmente só funcionaria se o outro lado atendesse…”, no entanto, não havia ninguém para responder.
— Aqui já está bom.
Mélia pegou uma chave e apontou para o lado da entrada.
— Mas… — disse Muoru, perplexo.
— Senhor Prisioneiro, vejo que a encontraste. — Uma voz veio por detrás de Muoru.
Daribedor olhava para o garoto sem tentar esconder sua expressão incomum e desagradável.
— Agora mesmo, há um demônio no cemitério aguardando para ser enterrado, gostaria que tu realizasses teu trabalho — disse o velho.
— Mas ela está ferida…
— Ferida? — interrompeu o homem, depois, como se fosse um diabinho, curvou-se para trás e começou a rir alto. — Onde?
Mélia, agachada com sua cabeça dobrada para baixo, não possuía um ferimento sequer.
— Ela…
— Não há problema se tu não sabes. — O velho sem nariz agarrou o braço da garota e, mesmo não existindo diferença entre o tamanho dos dois, arrastou-a para além do portão de ferro. Muoru tentou segui-los, mas o cachorro preto apareceu e o impediu.
No fim, não pôde ver Mélia, enquanto a mesma era arrastada para dentro da casa.
Depois, lembrou-se do “trabalho” que o velho mencionara.
Enterrar aquele monstro. Querendo ou não, este era o trabalho do prisioneiro.
CAPÍTULO 4
Muoru estava no meio da escuridão.
Imaginava estar olhando para a parede de madeira com água da chuva escorrendo. Ao redor, conseguia sentir com clareza o som de água gotejando, como se existisse um buraco no teto. Deitado com um dos joelhos erguidos, pensamentos vaguearam.
“Já faz quanto tempo que não há mais animais neste estábulo?”
A julgar pela condição das paredes, que eram expostas ao vento e à chuva, e seu interior danificado, parecia que a estrutura não passava por manutenção há muito tempo.
Todavia, apesar da condição do estábulo, a mansão parecia ser nova. Mesmo assim, ouviu que o cemitério era um antigo lote de terra, por isso, ou era uma nova construção ou foi reconstruída a partir de ruínas.
Entretanto, com relação ao local de repouso dele, as paredes e pilares estavam apodrecendo e despencando, a ponto de serem quase inutilizáveis. Porém, considerando o espaço do piso, ainda utilizável, diria que, provavelmente, era grande o suficiente para acomodar dez cavalos.
Podia até estar vazio agora, mas não significava que foi construído sem propósito. Muoru não tinha ideia de quando foi, no entanto, com certeza houvera cavalos ali.
Desde os tempos antigos, humanos e cavalos viviam juntos.
Era como se os belos herbívoros tivessem sido feitos por engano pelos deuses apenas com o propósito de serem montados pelos humanos. No passado, eram o melhor meio de transporte, ajudavam na aragem dos campos e, durante as guerras, cavalgavam com seus donos dentro do campo de batalha. A unidade de potência chamada de “horse-power (HP)”, daquela época, era muito usada e reconhecida.
Porém, nos dias de hoje, o valor que possuem continua diminuindo.
A partir dos avanços científicos e invenções subsequentes de nova tecnologia, cavalos pareciam estar sendo substituídos por veículos e trilhos em todos os ramos da indústria, nos quais já foram úteis no passado. Já que humanos sempre estiveram em busca de formas para aumentar a eficiência, os companheiros da raça humana, desde antes dos registros históricos, estavam desaparecendo dos holofotes.
Até mesmo existia um carro na mansão do cemitério. Muoru viu o veículo preto e de luxo andando mais de uma vez.
Era quase certo que a remoção dos animais se deu logo após a chegada do carro. E, agora, o estábulo servia como residência para o coveiro.
Desde o primeiro dia em que dormiu ali, notou muitos vestígios dos antigos coveiros. Havia um longo fio de cabelo preto, cujo sexo do dono ele não conseguia determinar, alguns fios castanhos, uma marca na palha em que dormia e vários trapos sujos. Tudo estava espalhado pelo local e, no momento, Muoru não conseguia ver nada.
Inclinou-se, imóvel, no estábulo escuro, desprovido de qualquer fonte de luz. E, já que não conseguia enxergar, ficou mais atento à natureza ao redor da construção. Se tentasse sair para ir ao cemitério, seria igual a vez em que esteve vendado.
No meio daquela escuridão, estendeu a mão diante do rosto. Mesmo não conseguindo ver, ao tocar algo com os dedos, permitia que imaginasse de forma adequada qualquer coisa que estivesse à sua frente.
Dois dias já se passaram e Muoru ainda conseguia se lembrar bem da sensação ao tocar aquele monstro.
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Presenteado com um lampião elétrico, dado pela velha, Muoru pegou sua pá e voltou ao cemitério.
Dentro do lampião, o qual parecia uma jaula para insetos, havia uma bateria e um equipamento de luz, o qual era composto por uma liga metálica de cobre e zinco. E, pela parte da frente, selada com argamassa, uma luz branca era emitida com o ligar de um interruptor. Não era necessário o uso de carvão ou óleo para iluminar o ambiente, tornando-o uma ferramenta valiosa e conveniente.
Se fosse em circunstâncias normais, Muoru estaria feliz por colocar as mãos em um aparelho desses.
Porém, agora…
Estava no cemitério, no meio da noite. Sob seus pés, havia o caminho que ele e Mélia usaram para ir até a mansão alguns dias atrás. No entanto, desta vez, estava sozinho carregando sua pá, como de costume, e seu lampião. À medida em que se aproximava das fileiras de túmulos, as árvores balançavam, tudo isso sob a lua crescente, a qual estava coberta por nuvens dispersas.
O vento que soprava contra sua pele estava morno, mas seu braço ainda sentia arrepios. Suor escorria de suas costas, respirar também estava difícil.
Antes, havia agarrado a mão de Mélia, a qual estava coberta de sangue, e conversaram por um tempo…, mas apenas por pouco tempo. Mesmo assim, sentiu que havia tropeçado em algo que ela tentava esconder. Quando Mélia estava em seus braços, foi a primeira vez que Muoru a viu nervosa.
Mas agora…
Seus sentimentos confusos o deixaram completamente perdido mais uma vez.
“Se foi apenas um sonho ruim ou algo do tipo, acho que não tem problema…” pensou, tentando se consolar… “só que, infelizmente, não há mais como fugir.”
Pelo fato de aquele monstro ser enorme, logo entrou em seu campo de visão. Por instinto, quis desviar o olhar.
No entanto, olhar para o lado não faria diferença. Querendo ou não, “aquilo” ainda estaria ali.
O solo do cemitério estava coberto por uma sombra baixa, no entanto, ela era volumosa. Além disso, não se moveu. O causador dessa sombra, o monstro, era semelhante às imagens nos livros ilustrados, algo como um gigantesco monstro marítimo… entretanto, agora, parecia que o espetáculo dele chegou ao fim.
As pernas de Muoru pararam, ficando a aproximadamente cinquenta passos de distância.
“O que estou fazendo? Não devia estar me aproximando, mas sim fugindo.”
“Inimigo natural da humanidade”. O sentido dessa frase estava se tornando cada vez mais claro agora.
Desde os primórdios, ao longo de muitos milhares de anos, a humanidade viveu com medo dessas coisas. O fato era que, por centenas de anos, os humanos prosperaram um pouco e já não sabiam mais sobre estes monstros, mas lá no fundo, enraizado em seus ossos, a memória e medo ainda persistiam.
Tanto Muoru quanto o PM cara de cavalo, o qual o escoltou, sentiram isso quando chegaram àquele local. Sem dizer qualquer coisa, conseguiram sentir algo ruim no ar. Naquele momento, ele pensou que era o resultado da imagem de um local obscuro, criada pela palavra “cemitério”.
Mas a realidade era totalmente diferente.
Talvez, no momento em que chegou, seu corpo entendeu a verdade. Independentemente da sensação, foi capaz de compreender a realidade de uma forma melhor que os seus cinco sentidos.
E, agora, sabia que os monstros, os quais poderiam matá-lo com facilidade, estavam dormindo sob o chão em que pisava.
“Droga, não é engraçado.” O garoto ficou ciente da impossibilidade da tarefa diante dele. “De agora em diante, eu…”
Agora precisava enterrar aquela coisa.
Mas, primeiro, tinha que levá-lo até o buraco que cavou por um tempão. E, a fim de arrastá-lo, era obrigado a se aproximar e tocá-lo.
Seu corpo e coração congelaram apenas ao pensar nisso.
“Sem chance, não consigo fazer isso… hm, que cheiro é esse?”
De repente, sentiu um cheiro ruim, parecia peixe podre. Muoru, que tinha toda a atenção no monstro, olhou para o lado, como se estivesse preparado para correr e procurar pela fonte deste fedor.
“Mas o quê? Como não notei antes?”
Olhou para seus pés, iluminados pelo lampião.
O solo… estava manchado e encharcado por um líquido vermelho.
Sua mente não conseguiu pensar em mais nada, sem dúvidas, era o sangue que saiu do corpo de Mélia.
Levou a mão à boca, fechou os olhos e fez suas pernas o levarem em direção ao monstro.
Não havia como saber se isso era “A Escuridão” ou apenas um demônio.
Agora, aquele gigantesco e caído monstro estava morto… não, não sabia se estava vivo ou não. Porém, independentemente de se a expressão “sua existência é imortal” fosse apropriada, por enquanto, a grande bola de carne estava imóvel.
“Se realmente não pode se mover, não importa com qual frequência sejam chamados de inimigo natural da humanidade, não deve ser capaz de me fazer mal, né?” Acreditando neste fato, aguentou a dor em seu peito e continuou se aproximando.
Caminhou devagarinho, como se andasse em uma ponte suspensa, a qual estava com a corda danificada.
Suas pálpebras fechadas o deixaram completamente no escuro, mesmo assim, ele avançou pouco a pouco.
Algo pequeno acertou sua bochecha.
Muoru, em uma demonstração risível e cômica de surpresa, abriu os olhos.
Quando o fez, viu-se cara a cara com o monstro.
— Ah.
Sem tirar os olhos daquilo, limpou a bochecha com a mão direita.
Suor e frio atravessavam suas luvas cobertas por lama.
Parecia que, antes de perceber, as nuvens haviam se amontoado e taparam o céu. Talvez, o que caiu em sua bochecha tenha sido a primeira gota de chuva.
Mesmo quando levantou a cabeça para olhar o céu noturno, o cadáver do monstro não saiu de seu campo de visão. O flácido saco de carne tinha mais do que o dobro da altura de Muoru. Também sendo muito mais largo, com suas várias pernas tendo garras.
Mesmo assim, ainda que tivesse essas coisas, a criatura não possuía olhos e boca. E não sabia se, dentro do saco de carne, cuja feiura o fazia lembrar de criaturas como sanguessugas ou polvos, havia alguma coisa.
Estava perto o bastante para tocá-lo. Apenas olhar para aquilo por um momento era como mudar suas crenças, como se aquilo não pudesse ser real. Parecia não existir limites para as grandes sensações desagradáveis que tinha e, como se fosse acionado por suas emoções, um vaso sanguíneo em sua testa saltou, causando uma dor aguda em sua cabeça.
Aos seus pés, as pernas do monstro estavam espalhadas como a teia de uma aranha, todas as quais eram mais longas e espessas que uma serpente gigante, a qual poderia matar um urso esmagado. Além disso tudo , na ponta de cada uma delas, havia uma garra, como se fosse a foice de um carrasco, todas pareciam ser mais afiadas do que qualquer lâmina que já vira.
E nelas, conseguia ver gotas do sangue de Mélia.
Era muito tarde para parar de pensar nisso agora. Pouco tempo atrás, muitas das garras do monstro estavam atravessando o corpo dela, as quais eram mais que o suficiente para a matar. E cada golpe que mutilou seu corpo foi gravado nos olhos de Muoru.
Mas agora, ele precisava tocar e mover aquela criatura monstruosa.
Mesmo depois de se aproximar, ainda era uma ideia absurda.
Na verdade, estava deixando-o louco.
O sangue nas garras era o mesmo que estava na mão de Mélia quando a segurou.
Seja qual for o segredo que a garota tivesse, ele não sabia.
Porém, mesmo que perguntasse, ela provavelmente não contaria. E caso o fizesse, talvez seria algo que Muoru não conseguiria entender.
Só que uma coisa era certa, Mélia, uma única garota, havia enfrentado aquele monstro.
“Com aqueles braços finos e corpo pequeno…”
Muoru não sabia dizer o que estava fazendo seu corpo se mover. Força de vontade? Coragem? Independentemente do que era, colocou as mãos no monstro e o empurrou com toda a força.
O que sentiu com suas luvas não era calor ou frio, nem macio ou duro. Pelo contrário, era uma sensação muito estranha, como se colocasse as mãos nas vísceras de um cadáver.
Tremendo bastante, imaginou que o monstro havia despertado.
Ao olhar para suas mãos, pensou ter visto as luvas finas corroendo, alcançando sua mão e sua carne.
No entanto, não era corrosão, apenas um problema com sua mente.
“Aguente”—ele pensou— “aguente, aguente, aguente, aguente…“
Ficou surpreso com a sensação ardente nos olhos. Sua visão estava ficando borrada, e algo quente escorreu pela bochecha.
Não tinha certeza de quando isso começou, mas seus olhos estavam lacrimejando.
— Aaaahhh!! — gritou com raiva o garoto. Porém, ao invés de desistir, fez uso de seu desespero e, mais uma vez, empurrou o monstro gigante.
Quando colocou o máximo de força que podia, o corpo grotesco começou a se mover para frente, o som de seu movimento era tão claro quanto um deslizamento. Muoru colocou toda a força que tinha nos braços, ao ponto de cravar os dedos do pé no solo para se apoiar, mas, no final, só conseguiu movê-lo um pouco.
Baixando os ombros e avançando, continuou a empurrar.
Enquanto isso, o som de deslizamento continuou, ele seguiu aguentando as sensações desagradáveis, seus gritos, que soavam como se alguém estivesse vomitando, ecoaram dentro do cemitério.
Mas Muoru era a única pessoa que podia ouvi-los. E, à medida que continuava empurrando, a chuva que acertava suas costas aumentava de intensidade.
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Ouvindo o som da chuva passando pelas frestas do estábulo, não, debruçado debaixo do teto seguro e sem sinais de vazamento, Muoru encarava a escuridão.
Fazia dois dias que estava chovendo sem parar.
Enquanto era apenas uma garoa, não atrapalhava seu trabalho. Pelo fato de ser verão, quando a temperatura baixava, ficava mais fácil passar o tempo. Mas não podia caminhar pelo cemitério à noite. Com as nuvens escondendo a lua e as estrelas, não conseguia ver o que estava diante de seu nariz.
Entretanto, quando não saía, sua expressão se tornava diferente e agradável, pois descobriu que havia muito para pensar… e precisava de tempo para organizar suas ideias.
Com o passar dos tempos, os cavalos desapareceram do estábulo. Mesmo assim, depois de partirem, ainda deixaram traços. Então, pensando nos outros possíveis coveiros que vieram antes dele, Muoru se perguntou: “onde diabos eles foram?”
Quando Corvo lhe disse: “Parece que não importa quantas pessoas sejam empregadas para abrir covas, sempre que ficam incapazes de lidar com os demônios, logo se tornam inúteis”, na hora, ignorou essas palavras, mas agora, sentia que testemunhou em primeira mão que eram verdadeiras.
De repente, houve uma batida à porta do estábulo.
Foi um som fraco, mas com certeza não era algo que ocorria naturalmente. Na verdade, por estar acostumado com o som silencioso da chuva, a pequena batida foi o suficiente para assustá-lo.
— Muoru.
Porém, depois de dois dias, no momento em que ouviu aquela voz, seu choque se transformou em alívio.
Havia apenas uma pessoa em todo o cemitério que dizia seu nome assim.
A porta se abriu silenciosamente e Mélia entrou, segurando seu lampião. A luz fraca do objeto iluminou o local de laranja. Ela permaneceu em silêncio o tempo todo, até que se sentou.
Já que o teto estava apodrecendo e repleto de buracos, para evitar que ficassem encharcados por causa das goteiras, os dois se sentaram perto um do outro, de forma que seus joelhos se encostavam.
O rosto dela estava quase todo coberto pelo capuz, mas ela não tentou encontrar o olhar dele. “Talvez tenha vindo aqui sem um guarda-chuva”, pensou Muoru enquanto olhava para a sua franja molhada e manto úmido.
Como sempre, ele estava muito nervoso para conversar. Não havia fim para as perguntas que queria fazer: está tudo bem com o corpo dela? Será que o perdoou pelo incidente do banho? Quem realmente era “Maria” e o que diabos era um guarda sepulcral?
Porém, não conseguia colocar isso em palavras, primeiramente, nunca imaginou que Mélia visitaria o estábulo. Não havia razão para pensar que ela perdoaria o que acontecera, no entanto, ao olhar novamente de muito mais perto…
— Algo errado, Mélia? — perguntou o garoto, seus pensamentos estavam descontrolados.
Mélia mostrou sua mão esquerda, a qual estava escondendo dentro de seu manto. Havia uma maçã muito grande nela.
Sem palavras, o garoto permaneceu imóvel conforme a garota parecia apertar a fruta antes de entregá-la no final.
— É para mim? — perguntou ele subitamente, da mesma forma de quando ela o emprestou o kit de primeiros socorros.
Porém, desta vez, Mélia não acenou com a cabeça ou algo do tipo. A única coisa que fez foi continuar com a cabeça abaixada para esconder o rosto.
Ao pensar que nada podia ser feito, Muoru continuou a encarar a fruta em sua mão. Era grande e estava bem madura, seu peso sugeria que estava repleta de polpa. Pessoalmente, gostava de todos os tipos, exceto abacaxis, então, esta maçã foi a primeira que ganhou desde que chegou ao cemitério. Para falar a verdade, já fazia tempo que não tinha uma maçã sem estar tocada pelos vermes.
— Ah… — A garota abriu um pouco a boca e Muoru a olhou.
— Serei sua amiga — disse ela, fechando os olhos, seu rosto ficando mais vermelho que a maçã.
Muoru, mais uma vez, olhou para o lado, como se alguém tivesse lhe acertado na bochecha.
De alguma forma, olhar diretamente para ela a deixava mais envergonhada do que a ver se banhando.
Mesmo que as palavras fossem diferentes, a sensação por trás delas era como se tivesse acabado de confessar seus sentimentos por ele.
“Será que é algo parecido?”
Sem conseguir aguentar mais a vergonha, perguntou:
— É, Mélia? — As palavras soaram como um protesto, e a garota endireitou-se no mesmo instante.
“Preciso falar da forma mais gentil possível.”
Embora estivesse incomodado pela situação e pelo esforço com o qual não estava acostumado, continuou:
— Não sei o porquê de eu precisar pensar que isso é constrangedor. Porém, sermos amigos não é grande coisa, então estará tudo bem se você só dizer “aham” ou “beleza”. Essas palavras devem servir, não acha?
Mélia abriu seus olhos devagar, com a mesma velocidade que luz subindo no céu. Em silêncio, ele observou os longos cílios dela tremerem.
Os olhos azuis da garota encontraram os dele.
Ele viu-se desviando o olhar cada vez mais. Novamente, sentia o impulso de tocar a mão dela… e, com desespero, pensou que precisava matar essa vontade.
Ainda o observando, Mélia acenou com a cabeça:
— Beleza.
Muoru levantou o rosto.
Então, como se mudasse abruptamente da ofensiva para a defensiva, ela começou a hesitar.
— Me… me desculpe. Acabei vindo do nada.
— Tudo bem, eu não estava dormindo — disse ele, mas ela parecia não estar ouvindo.
— Bom, era só isso. Independentemente do que fosse, eu queria te dizer isso. — No momento em que parou de falar, ela ficou de pé com uma rara demonstração de agilidade e com o rosto ficando vermelho mais uma vez.
Observando as costas dela conforme atravessava o estábulo, Muoru fez outra pergunta para que ela se virasse:
— Você disse para mim não sair por um tempo, está tudo bem agora?
Mélia assentiu e o garoto forçou um sorriso.
Então, ela se foi.
Sozinho novamente, Muoru mastigou a maçã no escuro. A fruta era muito suculenta, doce e tinha um aroma muito bom.
CAPÍTULO 5-1
Muoru tinha certeza de que já estava em pleno verão enquanto olhava para o cemitério, iluminado pela luz brilhante do meio dia.
O chão havia escurecido, como se tivesse esquecido de toda a chuva que caíra no dia anterior. E, devido ao sol queimando o mato e o musgo, um cheiro sufocante de vegetação preenchia o ar.
Largou sua pá e caminhou pelo cemitério de mãos vazias.
Não era como se quisesse dar uma escapulida do trabalho, pois ainda seguiria suas ordens, na verdade, apenas parou de cavar há pouco tempo. Também não estava tentando postergar, mas, se uma pessoa não desse algumas pausas nesse calor, correria risco de sofrer de insolação.
Bom , se fosse um de seus companheiros toupeira, neste tipo de clima, teria desmaiado sem qualquer esperança de ser encontrado. E, no pior dos casos, havia a possibilidade de morrer de desidratação.
“Bem, pode existir um cachorro, mas, de certa forma, sou o único humano aqui.”
Mesmo assim, se tirasse uma folga, não sabia se era melhor voltar ao estábulo ou ficar deitado sob a sombra de uma árvore, olhando para o nada. No momento, entretanto, seus pés estavam o levando em direção ao local onde enterrou aquele monstro muitos dias atrás.
De fato, não tinha vontade de ir lá, no entanto, apesar de sua determinação , como resultado do trabalho forçado que tinha de fazer devido à punição pela falsa acusação, sentiu-se obrigado a verificar a condição do que foi feito.
Toda aquela chuva não deve ter retirado a terra depois que encheu a cova.
Quando chegou ao túmulo, viu algo que não estava lá vários dias atrás, quando cavou.
Era uma lápide…
“Alguém deve ter colocado isso quando a chuva acalmou.”
Isso mesmo. Já que não estavam apenas jogando um simples cadáver em uma cova, uma lápide se fazia necessária. Mesmo assim, naquela hora, estava colocando toda sua força desesperadamente no ato de enterrar aquele monstro colossal, isso nem passou pela sua cabeça.
“Pode ser que Daribedor tenha arrumado alguém para colocá-la.”
Se aproximou e examinou a pedra. Chegava à altura de seu quadril, teve os cantos esculpidos de forma arredondada. O material também era de qualidade baixa, sendo algum tipo de andesito cinza. Em sua superfície havia um epitáfio, no entanto, eram apenas números gravados na pedra, nada de nome.
“Não foi feita por um bom escultor”, pensou Muoru ao passar os dedos pela escrita esculpida. “Tenho certeza de que meu pai era mais habilidoso.”
Entretanto, assim como mal conseguia se lembrar da voz dele, a última vez que viu seu trabalho foi há muito tempo. Sendo honesto consigo mesmo, sentia que a memória havia desaparecido ao ponto de não ser capaz de compará-lo com a pedra à sua frente.
Em adição ao ano atual, parecia ter um número, parecendo uma medida, na superfície da pedra. Ao que tudo indicava, era o tamanho do monstro enterrado sob seus pés.
Algo era certo, se algo muito errado acontecesse e o monstro voltasse, com certeza não seria nada engraçado.
Muoru, mais uma vez, encarou o epitáfio de perto . A frase estreita e longa parecia descrever aquilo em detalhes.
— Hm? Toupeira-kun, você consegue ler?
— Então, de onde diabos você saiu? — disse Muoru, seu rosto não mostrava espanto ou resignação, à medida em que se virava para encarar Corvo, o qual havia conseguido esgueirar-se por trás dele.
Usava seu traje padrão, com o mesmo cabelo chanel, casaco amarelo, gravata xadrez e calção combinando, além de botas militares pesadas. Com um ritmo energético, Corvo passou por cima de Muoru, girou no ar e sentou-se na lápide do novo monstro.
— É simples. Vim direto dos céus. Sou um pássaro, afinal.
O garoto suspirou; Corvo sequer tinha asas nas costas.
Então, balançou a cabeça e, com uma ação incomum até para ele, sentou-se de pernas cruzadas no chão.
— Hm, o que foi? Não é bom se ficar muito tempo sem beber água. Vai ter insolação.
— Não é isso, só estou cansado de usar a cabeça…, afinal, é uma parte que não costumo usar.
Raramente ia à escola e não conseguia ler sem gaguejar como uma criança; o mesmo valia para sua escrita. No entanto, apenas saber palavras chave, entender números e ser capaz de assinar o nome em folhas de pagamento ou formulários eram o suficiente para que um soldado, designado a fazer trabalhos manuais, fosse capaz de trabalhar propriamente. Ler livros e mapas, e pensar sobre coisas como táticas não eram suas responsabilidades.
— Pois é, incrível, incrível… — disse Corvo enquanto aplaudia, mas os aplausos não pareciam ter energia.
Ao sentir que estava sendo feito de bobo, olhou para ele. Mas então, Corvo olhou para cima e disse:
— Não sei ler e escrever.
Muoru não sabia o que dizer. Ficou um pouco surpreso ao ouvir isso.
Havia ouvido dizer que, há muito tempo, papel era algo com um valor extremamente alto. A menos que fosse um estudioso, nobre, burocrata, clérigo, ou algo desse nível, coisas como livros eram impalpáveis , e pessoas simples não podiam usar.
Nos dias de hoje, certamente ainda existiam crianças que nunca receberam aprendizado devido à área delas não ter uma escola. Em vilas agrícolas mais pobres, crianças ainda eram muito preciosas para trabalhar, por este motivo, muitos preferiam que elas se engajassem em tarefas mais práticas do que ler e escrever.
Porém…
Achou ser impossível Corvo não saber ler, pois havia explicado, em detalhes muito precisos, como a existência daqueles monstros havia afetado toda a civilização.
— Puff.
— Ah, você já está me zoando! — respondeu Corvo, como se sofresse de indigestão. Parecia bravo, com suas bochechas estufadas. — Mas tudo bem. Até pássaros têm muitos amigos. Também tenho muitos que são verdadeiros gênios. Se eu necessitar de ajuda, só preciso pedir para que leiam para mim.
Esta era sua personalidade, conseguir conhecer muitas pessoas.
— Não fique zangado… é ruim, e não é de seu feitio — disse Muoru.
— Bem… voltando ao assunto. Quero dizer, não acha surpreendente você ler melhor que eu? Não creio que seja justo. Então, por quê?
— Por quê…, esta é uma boa pergunta. Minha família era pobre e eu não tinha muitas condições para ir à escola. Mesmo assim, nunca parei para pensar, mas acho que meu irmão queria me ensinar. Se parar para pensar, acho que ele só conseguia ler e escrever um pouco.
— Uau, parece ser legal ter um grande irmão mais velho…. Como ele está? — perguntou Corvo, todo alegre.
— Bem, não tenho certeza. Acho que ainda está vivo, mas já faz quatro anos desde a última vez que nos vimos — disse Muoru, dando de ombros.
Seu irmão mais velho devia estar na casa de seu pai, treinando para seguir seus passos. Mesmo com o passar do tempo, e com a quantidade de trabalho de escultor desaparecendo, junto da influência dos templos, talvez ainda estivesse trabalhando de alguma forma.
Seu segundo irmão mais velho havia entrado no exército antes dele . Pelo fato de pertencerem ao mesmo batalhão, Muoru pensou que pudessem se encontrar, porém, infelizmente, seu irmão parecia ter sido enviado para uma guarnição muito distante, por isso nunca mais se viram.
“E agora parei aqui… nunca mais vou vê-los, pelo resto da vida.”
— Isso é… solitário, né? — perguntou Corvo, com uma simpatia estranha.
— Olha, pode ser o caso. Mas já somos adultos, e não importa quão boa ou ruim é nossa relação, meus irmãos jamais se colocariam na mesma vala que eu.
— É que…. não é legal sua família ter sido separada. — Mesmo já tendo superado essa realidade, a afirmação de Corvo ainda o incomodou.
— Já que se sente assim, não devia ter se tornado um adulto. Ser incapaz de ver sua família, mesmo querendo, seria triste, né?
— Sobre isso, bem…, no fim, todos precisam dizer adeus algum dia. No entanto, você não seria capaz de os ver novamente quando morrer?
— Olha, acho que sim. — Mesmo se Muoru entendesse, suas emoções não tentaram concordar.
Ao olhar para a expressão sombria no rosto de Corvo, enquanto o mesmo estava sentado com suas pernas balançando e olhos apontados para o chão, não pôde ver com clareza os pensamentos irracionais do Corvo aparecerem.
Olhar para o Corvo dava uma sensação estranha. Para Muoru, ele era mais misterioso que Mélia, isso significava que não era de confiança. E, mesmo conversando de maneira amigável, parecia estar escondendo algo. Ainda sentia isso nesse momento.
— A propósito, você disse que tinha muitos amigos em outros lugares? — perguntou Muoru, de forma abrupta, fazendo com que Corvo olhasse para cima com surpresa, não havia uma gota sequer de suor em seu rosto.
“Mesmo neste calorão, está completamente bem. Que inveja.”
— Hm, bem, sobre isso…
Corvo era um desconhecido misterioso. Tudo que dissera era suspeito, fazendo-o pensar se estava tudo bem em acreditar nele.
No entanto, quando Corvo disse “não é legal sua família ter sido separada”, Muoru teve a forte impressão de que essas palavras eram seus verdadeiros sentimentos. Isso fez com que suas palavras não parecessem ruins. Entretanto, só porque falou a verdade por um momento, não significava que poderia confiar em tudo o que dizia.
Mas uma coisa que Muoru pensou foi que, se algo estivesse disponível, devia ser usado.
Então, encarando o Corvo, disse:
— Se for possível, quero te pedir um favor…
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Naquela noite, quando a chuva parou, foi a primeira noite clara em muito tempo, onde era possível ver as estrelas que cobriam todo o céu.
Muoru tirou um breve cochilo logo após o anoitecer, esparramado em sua cama de palha. Encarava os buracos no teto do estábulo deplorável, vendo o céu noturno por eles.
“É uma noite agradável”, pensou.
Até a temperatura havia caído para níveis confortáveis. Além disso, com a claridade das estrelas, tinha certeza que não teria problemas para enxergar onde quer que estivesse.
E, talvez, nesta noite, Mélia estivesse sozinha no cemitério.
Não conseguia pensar em um motivo para não ter ido vê-la. Ela até mesmo disse que estava tudo bem agora.
Mas algo estava o impedindo de agir.
Sempre estava nervoso. A garota era um bom suporte para seus planos de fuga, porém, sem saber a melhor forma de conversar com ela, ficava nervoso com a possibilidade de ser odiado. Embora lhe faltasse experiência em falar fluentemente e não ser muito habilidoso nisso, não podia falhar. Por isso, estava nervoso. Sempre estava nervoso.
Também sentia que havia um gancho gigante preso em seu peito, fazendo suas pernas ficarem imóveis.
— O que você quer fazer, Muoru, e qual a melhor forma de fazê-lo?
Sempre que imaginava ter atingido seus limites, simplificava a situação ao usar esta frase e organizar seus pensamentos. Se focar apenas em questões triviais, a ponto de esquecer as coisas mais importantes, era o pináculo da estupidez.
No entanto, agora mesmo, sentia que estava oscilando por causa de seu próprio aviso. Também estava começando a questionar seu próprio comportamento…, e esta dúvida estava se tornando o gancho em seu peito.
“Devo ter certeza.”
Se aproximar de Mélia não era a “coisa mais importante” que devia estar se focando. Pode até ser um método de fuga, mas não era seu objetivo.
Muoru estapeou as bochechas com ambas as mãos.
“Posso não me livrar do gancho, porém, contanto que não haja mal-entendidos, deve ficar tudo bem.”
— Tudo bem, vamos lá — disse em voz alta de propósito enquanto ficava de pé, abriu a porta com o ranger da dobradiça e saiu. De soslaio, conseguiu ver o corpo do cachorro levantando-se lentamente, indo atrás dele logo em seguida, sem que suas patas fizessem barulho.
Quando decidiu ir, suas pernas e sentimentos pareciam mais leves, como se suas preocupações, de agora há pouco, tivessem ficado silenciosas por um momento. Ele forçou um sorriso.
“Sendo sincero comigo mesmo, é muito estranho.”
Não tinha caminhado muito quando os arbustos escuros, próximos ao estábulo, fizeram barulho. Não ventava.
Muoru, com surpresa, saltou, como se um inimigo estivesse prestes a emboscá-lo.
Então, aquilo começou a aparecer.
Com atenção e preparado para correr a qualquer instante, encarou a direção de onde veio o som. Uma figura, vestida de preto, estava espiando-o por detrás da sombra de uma árvore, como um fantasma.
— Mélia?
— Ah. — Quando a figura emitiu algo que parecia um pequeno grito, escondeu-se repentinamente atrás do tronco da árvore.
Com apenas um olhar de seu perfil, quando adicionado à sua voz, não havia como não saber que a pessoa nas sombras era Mélia. Mas ele não fazia ideia do porquê de ela estar se escondendo em primeiro lugar.
Um silêncio estranho tomou conta da área.
— É…
Sem conseguir decidir o certo a se fazer nesta situação, Muoru continuou imóvel. Planejava ir ao cemitério, mas não precisava de alguém para guiá-lo até lá. Mas tinha que admitir, ela estar ali lhe pouparia o tempo que precisaria para procurá-la, porém, algo lhe dizia que ela estava ali por um motivo diferente.
Escondida na sombra de uma árvore, a garota continuou espiando da escuridão, como se observasse os movimentos dele. Muoru teve a sensação de que ela realmente queria chamá-lo, no entanto, não podia.
Agia como algum tipo de animalzinho, hesitando de forma tímida enquanto encarava algo que havia lhe chamado a atenção. Ele sentiu que, caso tentasse se aproximar dela, ela se viraria e fugiria rapidamente, como um animal.
“Talvez seja isso…”
Nenhum dos dois podia se aproximar ou gritar. Estavam apenas a dez passos de distância, porém, mesmo que o olhar de ambos fosse compartilhado, não conseguiam comunicar suas verdadeiras intenções…. Muoru começou a se perguntar quanto tempo fazia que estavam assim.
Então, logo depois, Mélia saiu de trás da árvore, como se tivesse sido derrotada em algum tipo de competição.
— Só estava de passagem — disse ela, mas não para Muoru, era como se dissesse aos dedos dos pés.
Ele permaneceu em silêncio. Não conseguia pensar em resposta alguma. Estava muito claro que ela havia tentado fazer uma piada para disfarçar seu comportamento. Mas era tão difícil imaginá-la contando uma piada que Muoru não sabia se estava tudo bem em rir ou se seria melhor dizer algo engraçado de volta.
Porém, enquanto estava parado e em silêncio, a garota continuou:
— Me perdoe… menti. — Seu capuz estava na frente de seu rosto, cobrindo sua aparência e abafando sua voz.
“Você não estava só de passagem.”
Entretanto, não poderia perguntar “então, por quê?”, mas mesmo não o fazendo, tinha algumas hipóteses.
Pensou nas vezes em que se encontraram antes. Até mesmo duas noites atrás, quando Mélia visitou o estábulo, havia um propósito claro para tal. Porém, ao observar seu comportamento hoje, não parecia ter uma razão específica para estar ali.
Então, basicamente…
“Será que veio só para me ver? Ou, em outras palavras, queria passar um tempo comigo?”
— Ah, é, ei… — disse Muoru, sua voz soou aguda, fazendo as orelhas do cachorro dobrarem. Até mesmo ele pensou que o som foi muito alto, o que talvez explicasse o fato de Mélia ter dado um passo para trás, como se sua voz a estivesse repelindo.
— A maçã — continuou apressadamente, na tentativa de evitar que fugisse — estava deliciosa.
Desviando do olhar de Muoru, assentiu:
— Aham.
CAPÍTULO 5-2
— O cara estranho sempre vem ao meio dia.
Eles podiam sentar onde quisessem no terreno vasto e disperso do cemitério, mas, talvez devido à natureza humana, Muoru sentou-se próximo a uma árvore.
Sob o céu estrelado, o qual parecia não ter mais limites, ele e Mélia estavam sentados lado a lado na raiz de um olmeiro.
— Um cara estranho? — Mélia esticou o pescoço quando ouviu Muoru.
— Ah, qual a melhor forma de descrevê-lo? Digo, nem mesmo sei se é um garoto ou uma garota. Ah, e a propósito, Mélia, você sabe algo sobre os caçadores de monstros que usam máscaras?
Além das vezes em que conversava com Corvo, teve muitas ocasiões onde esteve cercado pelo grupo de pessoas mascaradas durante um enterro. Mas, a não ser quando dava instruções simples, nunca falavam com ele. Além disso, essas ocasiões nem tinham uma atmosfera boa para conversarem.
Certamente, pessoas como Corvo eram uma exceção entre as exceções.
— Hm… — Mélia forçou o rosto, como se examinasse com força a pergunta de Muoru —, sei um pouco sobre eles, mas é difícil dizer. Alguém me disse que iam e vinham para marcar A Escuridão, porém, nunca mostravam o rosto ou falavam. Pelo menos não comigo…
“Se não falavam com você, e comigo também não, então…”
— Bem, quem?
O silêncio respondeu à pergunta de Muoru, e Mélia, com uma expressão complicada, virou-se.
“Isso é o que sempre acontece”, pensou enquanto sentia a tristeza e o desencorajamento percorrendo-o. Nestes momentos, não importava o que tentasse perguntar, era inútil. Ela se calava por completo e ele não poderia forçar sua resposta. E isso seria um terrível desperdício, pois estragaria a relação deles ao pressionar o assunto sobre Corvo, ainda mais com todo o esforço necessário para chegar a este ponto na relação.
“Eu precisaria repetir tudo….”
A noite era importante, porque era o momento em que podia tentar conseguir informações úteis de Mélia. Mas, mesmo sendo uma ouvinte habilidosa, não tentava conversar. Até agora, ele esteve se esforçando ao máximo para conversar sobre si mesmo e usou o mundo exterior como uma isca, mesmo sem saber se conseguiria manter a conversa. No entanto, depois de um mês conversando sobre si mesmo, o assunto estava começando a acabar. Por isso, nesta noite, tentou mudar um pouco ao falar do Corvo, entretanto, não importou, o resultado foi o mesmo de sempre.
Sem saber o que dizer em seguida, Mélia, de repente, olhou para cima e disse:
— Me desculpe.
— Hã? — perguntou Muoru, desnorteado pela desculpa repentina.
— Muoru, você está sempre trabalhando o dia inteiro. Porém, mesmo estando cansado, ainda sai para me ver à noite…
— …
— Mas, mesmo assim, nunca sei o que eu devia dizer…
— O que está dizendo? — perguntou Muoru, de uma forma desafiadora. A forma de falar de Mélia estava o irritando um pouco. — Por que não pode falar?
O fato de se importar com seu cansaço ou coisa do tipo o irritava. Afinal de contas, estava fazendo o mesmo tipo de trabalho monótono que sempre fazia. Com este tipo de trabalho, tudo de que precisava era força física. Além do mais, o fato de que ela estava preocupada com ele o irritou ainda mais.
Após ouvir as palavras um tanto quanto duras de Muoru, Mélia parecia estar prestes a chorar.
— Mas — começou ela —, sinto que…
— Hã?
— Sinto que você me odeia — desviou o olhar imediatamente, esperando pela sua sentença.
O que disse foi tão chocante que a mente de Muoru ficou em branco. Ele sentia que já ouvira uma história semelhante antes. Certo, as duas histórias não eram exatamente parecidas, mas vinham da mesma ideia. Não, não era apenas uma história que ouviu antes, também era algo que o fazia se sentir culpado.
Mesmo sempre estando incomodado por achar que era odiado por ela, nunca imaginou que a garota pensava o oposto.
— Hm, sinto a mesma coisa. — As palavras pareciam sair de sua boca sem sua permissão, talvez fosse por causa das emoções desconhecidas se agitando dentro dele.
— O quê?
— Se alguém está odiando, com certeza é você. Eu, no entanto…
Os olhos azuis de Mélia se alargaram e ela dobrou a cabeça para o lado de forma estranha, então, perguntou:
— Por quê? Fiz algo de errado para que pensasse isso?
— Hm… — O garoto hesitou. Pensou que não devia falar; no entanto, ao mesmo tempo, sentia que permanecer em silêncio só piorava a situação.
Na tentativa de escapar do olhar de Mélia, ele olhou para o lado e continuou:
— Não, o que quero dizer é… vi você tomando banho.
A pele de Mélia era mais branca do que a de qualquer outra pessoa que já viu. No entanto, em um instante, tudo, de suas orelhas até a nuca, tornou-se escarlate.
— Aqu… aquilo… — E cada vez que tentava dizer algo, só ficava mais vermelha.
No fim, cobriu e rosto e ficou em silêncio antes de conseguir dizer algo compreensível.
Muoru mordeu os lábios com força.
Estava começando a se odiar. E, por alguma razão, estava sentindo vergonha de suas ações. Se fosse para cavar sua própria cova, o trabalho que teve durante o dia não chegaria nem perto em comparação.
Porém…
— Mas… — disse ele, forçando-se a esquecer o nojo que sentia de si mesmo surgindo dentro de seu peito.
Podia ser, em grande parte, desespero, no entanto, como disse a si mesmo quando saiu do estábulo, seu principal motivo para conversar com Mélia era o de tirar informações dela.
Mesmo ao pensar que essa ideia quase desapareceu, ainda se sentiu um pouco irritado. Talvez fosse porque Mélia estava o acusando falsamente. Então, aproveitando-se das brasas dessa raiva, continuou:
— Sei que é apenas uma desculpa, mas, naquela vez, não foi de propósito. Além disso, um pouco da culpa também é sua. A mansão deve ter chuveiros. Então, por que foi se lavar do lado de fora?
Mélia piscou.
— Mas não posso entrar na casa. — Mesmo sendo inesperado o que dissera, manteve um tom simples.
— Como? — perguntou Muoru. — Quero dizer, onde você dorme?
Por um momento, ela parecia estar pensando sobre o que dizer, mas, então, apontou para o chão.
Depois de pensar um pouco, Muoru perguntou:
— Em um porão?
Mélia balançou a cabeça.
— Então… — O garoto hesitou um pouco.
Como diabos devia interpretar isso? Parecia estranho. E mesmo tendo sido apenas sua impressão, sentia que uma pessoa vivendo no subsolo não era comum. Normalmente, pessoas com bom status social não dormiam abaixo do chão.
“Sério, ninguém dorme no subsolo, a não ser soldados no campo de batalha, que dormem nas trincheiras da linha de frente por medo de explosões vindas dos inimigos.”
No entanto, tinha suas dúvidas sobre o que ela falou. Se juntasse todos as pequenas informações que conseguiu sobre a mansão, não parecia que o porão estava conectado diretamente com a construção. Sendo mais especifico, isso significaria que ela não tinha o direito de entrar quando quisesse. Se assim for, isso não a tornaria uma prisioneira?
— Não estou brava — disse ela —, já te disse no outro dia. Você não fez nada de cruel ou doloroso para mim.
Ignorando seus pensamentos a respeito do porão, Muoru voltou a prestar atenção e ouviu com cuidado. Enquanto olhava para ele, com a bainha de seu manto azul-escuro sendo segurada firmemente por suas mãos, suas bochechas começaram a ruborizar mais uma vez.
— Mas, mas… aquilo… foi constrangedor, mas…
— Sinto muito. — Ele precisava se desculpar. Mesmo sendo sem querer, ainda sentia que a ver foi errado. — Ou… ouça, foi isso. Dizem que perdoar um ao outro é importante. Se as pessoas não fizerem um cessar-fogo, a guerra nunca terminará…, o mesmo vale para nossa situação, o que acha de uma trégua?
Assim que terminou, sentiu que havia cometido outro erro. “Eu não devia ter dito isso.”
Não só pareceu sugerir que já deviam parar de conversar, e que estaria tudo bem se Mélia ficasse quieta, como também parecia sugerir que ela devesse ficar longe dele.
Porém, por alguma razão, Mélia não concordou com sua proposta.
“Por quê?”
Havia algum tipo de confusão entre os dois. Ele tinha certeza de que ela não estava brava com o fato de citar o assunto do banho novamente, no entanto, seu silêncio não o deixou muito otimista.
Além disso, por que parecia que Mélia estava tão preocupada com isso? Provavelmente estava hesitando sobre algo, mesmo que tenha tido coragem para lhe dizer no outro dia: “Serei sua amiga”.
Antes, não expressou sua preocupação porque não sabia o que era um amigo. Talvez, ainda não soubesse. Entretanto, sobre isso…
— Ah. — Muoru se lembrou de algo que dissera na primeira vez que ela recusou sua oferta.
“Amigos, bem, hm… é o próximo passo depois de conhecidos… isso é… mútuo? Não mais que isso, para se conhecerem melhor, duas pessoas ficam mais próximas… tipo isso.” Na realidade, Muoru não tinha certeza do que estava falando. Apenas lhe deu uma resposta no calor do momento.
Aquela noite… parecia fazer muito tempo.
Já que Mélia havia ouvido muitas de suas histórias; ele sempre perambulava de forma desordenada, mas havia, sim, falado muito sobre si mesmo. Na verdade, de muitas formas, sentia que Mélia conhecia a pessoa, “Muoru Reed”, melhor que ninguém.
Mas, quando se tratava dela, era difícil dizer que sabia algo.
“E, sobre isso, ela não se sente da mesma forma? Será que não quer que eu saiba mais?”
Sempre estava sendo o centro da conversa, talvez seu pensamento tenha formado um ego grande. Porém, ao mesmo tempo, sentia que os sentimentos de Mélia estavam sendo direcionados a ele. Caso fosse verdade, não significaria que ela havia saído para vê-lo?
Antes, sentiu que havia um grande abismo entre eles. Um buraco que não poderia ser preenchido de forma alguma. E, no começo, pensou que o dia no qual ela falaria sobre si mesma parecia estar em um futuro distante.
Mas quando se separaram naquela noite e ele lhe disse “até mais…”
Com um simples aceno de mão, Mélia respondeu: “Aham… até mais.”
Então, talvez, este dia estivesse muito mais perto do que imaginava
⬢
Logo, no entanto, um balde de água fria caiu sobre ele.
Quando Muoru tentou voltar ao estábulo, Daribedor o emboscou, vindo da mansão. O velho colocou o lampião elétrico, com sua forte luz branca, aos seus pés.
Levantou um pouco seu braço direito e se aproximou:
— Tu ficaste bem próximo da garota, não é?
Houve um som de estalido pesado. Era um som que Muoru conhecia muito bem, mesmo fazendo tempo que não o ouvia… o martelo do gatilho.
Daribedor lhe apontava um revólver preto, e, mesmo na escuridão, Muoru conseguia ver com clareza a forma do pequeno cano. Mesmo que a bala pudesse ser pequena, ainda seria o suficiente para matar um humano.
— Se for, há algo de errado nisso? — perguntou com cuidado. Era idiotice pensar que Daribedor não tinha percebido seus encontros com Mélia. Mas o verdadeiro problema não era ele estar ciente da situação, mas sim como agiria.
Seu empregador, Daribedor, tinha o direito de lidar com ele, com qualquer prisioneiro, como quisesse. Por isso, independentemente do trabalho que forçou a Muoru, não importava quantos dias o deixasse sem comida, ou se enviasse o prisioneiro novamente para o centro de detenção, tudo estava dentro de seu poder. E, no pior dos casos, o mataria neste lugar.
“Não tenho intenção de simplesmente chutar o balde dessa forma.”
Sua expressão facial, sem perceber, se enrijeceu. Já teve vários ferimentos, porém, feliz ou infelizmente, ainda não havia levado um tiro. Por isso não conseguia imaginar que tipo de dor seria, a julgar pelo calibre, a menos que errasse feio, com certeza resultaria em morte instantânea.
“Se for assim…”
Com a arma apontada para ele, o velho mostrou o sorriso mais repulsivo que tinha.
— Não estou preocupado com isso. Pelo contrário, estou impressionado que fostes capazes de conquistá-la. Parece que tu tens uma habilidade impressionante para decepcionar, não estou certo? — Daribedor riu alto, um som tão irritante que chegou a dar nos nervos de Muoru.
“Ele está me repreendendo por ver Mélia?”
Apesar de lamentar por Daribedor dizer o que quisesse sem ao menos saber do duro trabalho que teve para chegar até ali com Mélia, permaneceu completamente parado.
A tentativa miserável do velho para provocá-lo foi irritante. Porém, Muoru tinha muita experiência com esse tipo de coisa. Na verdade, sua habilidade de manter uma expressão imóvel e tolerar piadas da maioria de seus companheiros veteranos do exército o ajudaram a se tornar mais maduro do que sua aparência sugeria.
“Se eu soubesse, não haveria problema? Ou… Daribedor tem alguma coisa contra mim, independentemente do que fiz?”
— Parece que queres dizer algo — disse Daribedor, o sorriso desapareceu de seu rosto. Na escuridão, a ferida onde seu nariz devia estar parecia um buraco mais escuro do que o do cano da arma.
Muoru respondeu:
— Não mesmo… só não me lembro de você ter avisado que brincar durante a noite atrapalharia meu trabalho.
— Mas é claro, só faço isso quando parece haver algum tipo de problema. Entretanto, Senhor Prisioneiro, tu superaste minhas expectativas muito tempo atrás e fizeste um incrível trabalho. Sim, realmente, muito além de vosso dever… — Quando falou, seus dedos tocaram o gatilho. — Em todo caso, preservar a tranquilidade do coração daquela rapariga não é um trabalho que nós outros podemos fazer.
Um tiro rugiu no ar.
Por reflexo, todos os músculos no corpo de Muoru enrijeceram e, involuntariamente, fechou os olhos com força.
Em menos de um segundo, o garoto percebeu que não fora atingido. Não havia ferimento em parte alguma de seu corpo.
Abriu os olhos e viu um buraquinho no chão aos seus pés. Fumaça saía dele, e o cheiro de pólvora misturava-se com o ar.
— Entretanto, tu poderias lembrar-se de algo por mim? — sorriu Daribedor mais uma vez, mostrando uma expressão muito distorcida, literalmente. — Não é necessário usar da garota para tentares escapar. Mesmo se usá-la, não mudaria nada… Não, pelo contrário, sinto que poderia conseguir outro trabalhador quantas vezes quisesse. E tu não és, de forma alguma, o primeiro coveiro a ser enterrado na cova que ele mesmo abrira.
Daribedor deu mais um tiro, criando outro buraco no chão, este foi muito mais próximo dos dedos de Muoru. Então, com um olhar satisfeito, voltou à mansão.
Muoru permaneceu imóvel, seus olhos encaram os dois buracos aos seus pés, mas sua mente não estava prestando atenção neles.
“Tranquilidade…?”
O que tomava conta de seus ouvidos, ainda mais que o som dos tiros ou a ameaça feita por Daribedor, era a frase que ele usou para descrever Mélia.
E, por muito tempo, Muoru ficou parado ali, pensando sobre o que o velho quis dizer.
CAPÍTULO 6
“O que quero fazer? E o que devia fazer para conseguir?”
Muoru viu-se fazendo a mesma pergunta várias vezes. Talvez fosse porque, quando se tratava de atingir seu objetivo, não havia muitas opções para escolher.
“Devo escapar.”
Quantas vezes murmurou isso para si mesmo desde que chegou? Era uma expressão que devia ter agido como propulsor para continuar seus pensamentos, mas, agora, para acabar com sua indecisão, isso tomou conta de sua mente.
“Isso, preciso dar o fora daqui. Mas, em primeiro lugar, o próprio fato de eu ter me tornado um prisioneiro não é um tanto quanto estranho?”
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— Ei, Muoru, me diga, que tipo de crime você cometeu? — perguntou a garota enquanto tocava gentilmente a coleira dele com a ponta do dedo.
Por reflexo, Muoru escorou-se na árvore, sentindo-se um pouco inquieto com seu toque. Ele queria que ela perdoasse seu desconforto, porém, ao mesmo tempo, estava bem ciente de como a coleira estava presa à sua pele e as das possíveis implicações que deviam ser removidas. E, mesmo confiando nela, por acidente, se a coleira fosse deslocada, sua vida chegaria ao fim.
E, depois disso, ficou muito relutante para discutir sobre os assuntos que ela tentou perguntar. Mas Mélia estava séria. Não, não era bem isso. Mesmo tendo brincado até agora, seus olhos, neste momento, pareciam brilhar mais do que nunca. Ele sentia que não era apenas curiosa, também estava ansiosa para saber mais.
Com dificuldade, como se seus lábios pesassem toneladas, Muoru disse:
— Assassinato. Por isso. — Bem, isso era o que o mundo pensava e o que estava escrito no registro de julgamento do tribunal.
Em uma manhã, seu superior, o Segundo Tenente, Hedger Reeve, foi encontrado morto no canto de uma trincheira. Pelo fato de a força de autodefesa do país vizinho, que não tentou sair de sua fortaleza, e os altos superiores ao seu lado, que não tentaram forçar uma entrada através das defesas inimigas, a situação da guerra estava praticamente parada. Por isso, o assassinato do Segundo Tenente da Décima Sexta infantaria causou um grande alvoroço. Durante toda esta agitação, o desaparecimento da pá favorita de um soldado de segunda classe parecia algo trivial.
Então, trinta horas após encontrarem o corpo, os cães farejadores do regimento da polícia militar encontraram a pá em uma pilha de madeira descartada. E ela estava manchada com o sangue do Segundo Tenente.
Infelizmente, como um jovem soldado fora de serviço, sem um álibi que pudesse ser verificado, em uma semana, a Corte Marcial terminou e “Muoru Reed” foi considerado culpado.
“Com toda a honestidade, o cara foi muito inteligente ao usar minha pá no assassinato.”
O garoto, que se tornou o Prisioneiro 5722, riu.
Não era como se não houvesse motivo o bastante. Hedger Reeve era um lixo humano.
Ele usava coisas como safiras roubadas e ouro sujo ao redor do pescoço. E, muitas vezes, gabava-se sobre os terríveis detalhes de como os conseguiu. Era o pior tipo de bêbado e, dependendo de seu humor, espancava seus subordinados com frequência . Também amava jogar dados e, se perdesse muito, ficava quase que completamente vermelho e virava a mesa de jogo. Embora ele fosse o comandante das toupeiras, nunca foi visto com uma pá em mãos. Quase sempre, em sua forma arrogante, ficava em uma sombra fresca e observava os cavadores.
No dia de seu enterro, seria quando Muoru estaria cercado por fogueiras, junto de seus companheiros toupeiras, rindo sem parar durante toda a noite. Realmente, isso precisava acontecer no mesmo dia em que o corpo de Hedger Reeve fosse enterrado na beira do campo de batalha.
O garoto, preso, insistiu muitas vezes, tanto para a investigação quanto na corte militar: — Não fiz nada, é uma falsa acusação. — “Porém, além disso, havia mais alguma coisa que eu pudesse ter feito?” Eles o culparam por algo que não sabia. E, claro, sem um álibi ou evidência, não teria ninguém que acreditasse nele.
— Isso não é verdade — disse Mélia, sua voz calma pareceu agitar o ar do cemitério quando trouxe Muoru de volta de suas memórias sombrias.
— Tenho certeza que você não fez isso — continuou ela, olhando diretamente para ele. A partir do rosto dela, Muoru teve a impressão que não havia nem um pouco de dúvida sobre sua inocência… Sentiu que ela acreditava nele.
— Aaw. — Algo como um bocejo saiu da garganta de Muoru. Entendeu quando sua resolução começou a enfraquecer.
Em sua mente, recitou seu objetivo. “Devo escapar…” então, uma segunda vez, e uma terceira…
Depois, limpando as lágrimas dos olhos azuis da garota, disse:
— Obrigado. Se você fosse a juíza, eu teria sido inocentado. — Então sorriu para retirar a dúvida que girava em seu peito.
Claro, se fosse absolvido, nunca teria sido enviado ao cemitério e jamais teria encontrado Mélia toda noite.
— Bem, você realmente é alguém que não devia estar aqui — murmurou Mélia com uma expressão pesada. De alguma forma, até ela parecia se sentir do mesmo jeito que ele.
Como era esperado, Muoru se perguntava sobre como devia reagir às suas palavras… como devia reagir à expressão no rosto dela.
De repente, sua boca se moveu de forma automática:
— Ei, é apenas uma hipótese, mas… — disse ele, sem olhar para a garota —, se eu tentasse fugir daqui… você gostaria…
Ao perceber que estava prestes a deixar escapar algo que não devia, parou repentinamente. Hesitou por um momento, sentindo o olhar de Mélia. Então, para aliviar seu olhar, falou:
— Depende totalmente de você, mas… caso eu tente escapar em algum momento, quer vir comigo?
Ela piscou algumas vezes, então olhou para o chão.
Por outro lado, Muoru sentia-se calmo conforme observava com cuidado e silêncio a reação dela.
As palavras haviam pulado de sua boca como se tivessem vontade própria, mas, no fim, não imaginou que seu convite era tão ruim. Porém, pensou que não teria bases para garantir isso, não acreditava que Mélia seria capaz de dedurá-lo a Daribedor, mesmo se revelasse sua vontade de fugir.
Mesmo tendo pensado nisso várias vezes, sua ideia de fuga ainda não era algo que podia chamar de plano. No entanto, independentemente da forma que buscasse ajuda nisso, com certeza, quando fugisse do cemitério, o plano envolveria Mélia. Se este fosse o caso, pensou que também pudesse haver algum tipo de benefício para ela .
“Mesmo eu não tendo um plano exato, talvez seja uma boa ideia colocá-la no centro do esquema, né? Talvez sua existência não seja um grande obstáculo…”
Tendo ciência de que era um pensamento muito otimista, não podia ignorar o fato de que, em algum lugar dentro de seu coração, estava esperando que fosse verdade.
Conseguia imaginar com facilidade que a garota recebera o mesmo tratamento, algo semelhante ou pior, no cemitério em massa.
Inimigo natural da humanidade, os monstros que possuíam muitos nomes.
Os coveiros antes dele com certeza encontraram um fim, por serem incapazes de lidar com o terror dormindo sob seus pés e a repulsa daqueles que precisavam enterrar.
E, definitivamente, esta não era uma história limitada apenas à abertura de covas.
Lembrou-se da figura de Mélia enquanto permanecia diante do monstro feito de carne. Seu braço, o qual foi arrancado e saiu voando. Seu tronco, o qual foi perfurado.
Sim, Muoru já sabia qual o nível de sofrimento o guarda sepulcral precisava enfrentar.
— …
Sem mudar de expressão desde que foi questionada, a garota permaneceu completamente quieta e parada. Às vezes, era como se estremecesse, seus pequenos lábios tremiam.
No entanto, mesmo não tendo dito “Não”, Muoru sentiu que, ao final de seu conflito interno, palavras de rejeição entraram em sua mente.
“Não há mais nada que posso fazer?”
Então, como já havia feito antes, tentou agarrar sua mão…
Mas seus dedos não se encontraram com os dela; ela havia puxado a mão.
— Sinto muito — disse Muoru, com pressa. — O que estou dizendo? Esqueça. Só estava…
— Não — Mélia o interrompeu —, é minha culpa — disse ela, balançando a cabeça. — Não é sua culpa…. Meus pés… meus pés não podem sair deste cemitério.
Muoru ficou sem saber como responder.
Essas palavras, de alguma forma, pareciam ser completamente literais. Não era como uma resistência psicológica ou algo do tipo; na verdade, soava como se fosse impossível em um sentido físico.
“Como assim?”
— Muoru — Ao ouvi-la chamar seu nome, Muoru levantou o rosto —, pode vir comigo um pouco?
⬢
Com a garota segurando um lampião e guiando o caminho, os dois caminhavam lentamente pelo cemitério noturno.
Ao longo do caminho, ninguém falou.
Além de seus pés, os quais mal conseguia ver com toda a escuridão, Muoru focou sua visão nas costas de Mélia enquanto ela caminhava à sua frente. Seus ombros pequenos, a protuberância de suas omoplatas sob a roupa e quase toda sua nuca estavam cobertos pelo capuz.
“Por que ela sempre usa o capuz?”
A pergunta apareceu em sua mente de forma repentina enquanto a encarava.
Não era como se estivesse elogiando, só sentia que era um desperdício esconder todo o seu belo cabelo, a não ser algumas mechas. Só a viu sem o capuz duas vezes. A primeira foi quando tomava banho e a segunda quando o monstro rasgou todo seu manto. Na primeira vez, quando estava , foi algo rápido…, na segunda, quando estava coberta de sangue… por isso não viu muito. E, ao pensar mais sobre isso, supôs que nunca mais poderia vê-la diretamente de novo.
“Se eu me aproximar e puxar o capuz, o que vai acontecer?”
Enquanto pensava nessa ideia, foi pego repentinamente por uma mistura de ideias impuras e impulsos maliciosos… Porém, ao pensar uma segunda vez, estapeou-se no rosto.
“Sei que faz pouco tempo, mas será que ela já esqueceu o quão estúpido eu fui antes?”
Seus pensamentos voltaram para alguns minutos atrás, quando tentou agarrar a mão branca dela, mas só conseguiu segurar o ar de forma desajeitada. E, realmente, quando pensou naquilo, sentiu que, se puxasse seu capuz sem motivo algum, ela provavelmente não reagiria muito diferente caso levantasse sua saia.
“Mas, algum dia, quero ver como ela fica quando está brava.”
Enquanto tinha esses pensamentos bobos, a garota, que caminhava à sua frente, parou.
Diante deles, havia uma árvore gigante no centro do cemitério. As folhas espessas na copa da árvore tapavam o luar e criavam uma sombra no chão.
E, diante da garota, estava uma lápide. Embora Mélia tivesse lhe trazido ali de propósito, ficou imóvel e em silêncio.
Mesmo estando atrás dela, Muoru ainda leu o epitáfio.
Viu uma data de dois anos atrás e…
— Ma… ri… a…? — Era o nome de alguém que o garoto não conhecia.
Era o nome que havia escapado dos lábios da garota antes.
— Maria também era uma guarda sepulcral. — A garota disse exatamente o que estava na lápide.
— Era sua mãe? — supôs Muoru, já que os nomes eram parecidos. No entanto, ela balançou a cabeça lentamente.
— Não creio que seja o caso.
— Não?
— Maria e eu não somos relacionadas. E mesmo que nossas idades não sejam muito diferentes, vivo aqui faz tanto tempo que nem me lembro mais, porém, nunca encontrei alguém que dissesse ser minha mãe.
Aquela maneira silenciosa de falar não era diferente de seu tom normal, no entanto, enquanto estava diante do túmulo, pela tristeza ao juntar as mãos, como se estivesse relembrando, e sua seriedade, Muoru foi capaz de entender quanta falta Mélia sentia dessa pessoa chamada Maria.
— Talvez… acho que irmã seria o mais próximo…, isso se Maria me deixasse dizer isso. — Mélia ficou quieta novamente.
Ele encarou a garota. Mesmo já tendo se acostumado com sua aparência, ainda sentiu que era linda. E sua testa franzida, logo acima das pálpebras, parecia expressar a hesitação em seu coração.
Muoru finalmente sentiu que a hora de a questionar era agora.
— O que é um guarda sepulcral? — perguntou ele.
— Um ladrão de túmulos, o qual rouba o poder da Escuridão — respondeu Mélia.
O garoto permaneceu em silêncio.
Não sabia a razão para estar incomodado. Era bom ela ter lhe respondido, mas, ao mesmo tempo, não sabia o que fazer. E, sem conseguir pensar, nenhuma palavra apareceu em sua mente.
Enquanto olhava sobre o ombro dela, a garota encarou os pés dele.
— Muoru, você não está com medo de mim?
Ele deu de ombros. Felizmente, foi capaz de dar uma resposta apropriada.
— Você disse antes que não era amiga daquelas coisas.
— Eu disse? — A garota inclinou a cabeça para o lado.
— Não se lembra? Foi na segunda vez? Ou foi na… — acabou hesitando.
Na segunda vez em que viu um dos monstros, na vez em que aquilo ainda estava se movendo sobre o solo, ele perdeu toda a compostura. Por isso, relembrar dessas memórias o deixavam envergonhado.
Se virando vagarosamente, a garota disse:
— Muoru, você sabe sobre o poder da Escuridão?
— Hm… só um pouco.
A Escuridão tinha muitos nomes. Eram demônios. Mortos-vivos. E, de forma mais simples, monstros. Só apareciam à noite; eram imortais e o maior inimigo da humanidade.
Essas pequenas informações foram lhe dadas por Corvo, porém, mesmo agora, Muoru não sabia até onde podia confiar. Mesmo depois de ter confirmado um pouco deste conhecimento com seus próprios olhos.
Isso também incluía o corpo da garota.
— Até mesmo eu não sei o que são essas coisas — disse Mélia —, mas o termo “guarda sepulcral” se refere às pessoas que têm o poder da Escuridão dentro delas.
— Dentro?
— Aham. É como você viu, eles não estão vivos e também não são inanimados… Entenda, para A Escuridão, a forma deles não importa. Não consigo explicar de forma clara, porém… use uma maçã como exemplo. Depois de comê-la, tudo o que sobra é o miolo. Por isso, não é mais uma maçã, certo? — À medida que a garota explicava, às vezes, adicionava gestos para acompanhar suas palavras.
— No caso de coisas vivas, é exatamente pelo fato de preservarem a forma de seus corpos que são capazes de se manterem. Se perderem sua forma, se tornam algo diferente do que eram — continuou ela —, no entanto, quanto à Escuridão, pense neles como argila moldável com intenção assassina. Não faz grande diferença se é feita de vidro ou argila. Não são algo que “morrerão”. Por isso, não importa que método comum seja usado para machucá-los, sempre voltam para a mesma forma de antes.
Então, Mélia entrou em pânico, achando que havia feito com que ele tivesse entendido errado.
— Mas, é…, claro, a argila não passa de uma metáfora. A Escuridão não se mistura com os outros. Não é assim, é o contrário, ela os repele. Talvez seja correto dizer que, quando são tocados por uma Escuridão de nível mais alto, são suprimidos. Então, entram em um estado de semimortos.
Muoru desesperadamente tentou entender a explicação da garota várias vezes em sua cabeça.
Isso com certeza era algo que ouvira em uma aula uma vez. Todos os organismos vivos, se olhados com um microscópio, eram feitos de partículas muito pequenas, chamadas “células”. Não sabia por que mantinham sua forma, ao invés de se despedaçarem, porém, de qualquer jeito, aprendeu que animais tinham coisas como “células ósseas” e “células conjuntivas ”, as quais se ligavam, formando um ser vivo.
No entanto, aqueles monstros não pareciam seguir as mesmas regras vitais dos outros seres vivos. Seus corpos eram feitos de algo que não podia ser morto ou destruído.
— Tenho uma parte deles dentro de mim — disse Mélia enquanto pressionava uma mão no peito.
— Como? — perguntou Muoru. — Você é humana, não é?
A garota assentiu, então, com os olhos ainda fixados nos pés, continuou:
— A Escuridão enterrada neste cemitério não foi ressuscitada, entretanto, seus corpos estão sob o solo… e…
Olhou para as densas saliências dos galhos acima.
— Foi me dito que, sob esta árvore, está enterrada a mais poderosa Escuridão, algo que pode ser chamado de rei deles. Da semente que surgiu de seu corpo, raízes cresceram e, daquele corpo, a árvore sugou seus nutrientes e cresceu. Por isso, dentro desta árvore, em seu tronco, flui o poder da Escuridão que foi formada… E, claro, o mesmo vale para sua fruta.
No instante que ouviu isso, Muoru relembrou da época em que ela estava sob a árvore comendo algo.
A fruta escura, a qual parecia estar acumulando toda a escuridão. A fruta que pulsava, como se tivesse vontade própria.
“Então, ela está dizendo que é uma mistura tanto de uma planta quanto de um monstro?”
— Esta árvore gigante só dá um fragmento da Escuridão. Por isso, o guarda sepulcral, eu, come-a e rouba seu poder. Roubar o maior poder faz com que me sinta um ladrão de túmulos. E, com ele, mesmo se outra Escuridão me tocar ou agir de forma hostil contra minha pessoa, no fim, torna-se incapaz de se mover. — Mélia fez uma pausa. — Respondendo à sua pergunta… sou humana, porém, ao mesmo tempo, uma parte de mim é como A Escuridão. Por isso, não posso me separar do cadáver que está enterrado debaixo desta árvore… ou, em outras palavras, do cemitério… E… não posso morrer.
“Sério?”
Com um tom levemente surpreso, o garoto deparou-se com a dúvida que tinha em mente há um tempo.
— Pera aí; você não disse que essa tal de Maria também era uma guarda sepulcral?
“Caso “Maria”, quem Mélia considerava uma irmã mais velha, fosse uma guarda sepulcral, ela também teria roubado o poder dos monstros. Se assim for, não é estranho não existir outro guarda sepulcral? O epitáfio foi feito por luto a um humano que morreu, mas, os guardas sepulcrais não deviam ser capazes de morrer… testemunhei isso com meus próprios olhos.”
“Ou ainda há coisas que ela não me disse? Se for verdade, Mélia… Também pode morrer?”
— Maria — com uma voz aflita e trêmula, como a de uma pessoa que estava vomitando sangue, conseguiu forçar algumas palavras para responder à sua dúvida. —, Maria… cometeu suicídio.
Como se estivesse prestes a irromper em lágrimas, seus lábios tremeram e, quando continuou, mostrou pressa:
— Quando Maria estava aqui, eu não era a guarda sepulcral. O poder tem um limite, dois humanos não podem ser guardas ao mesmo tempo. Mesmo assim, naquela vez, eu não sabia por que ela se matou. Porém, na primeira noite antes de me tornar uma guarda sepulcral, A Escuridão, na forma de um tigre de seis pernas, devorou meu braço direito…
A garota passou a mão no antebraço direito, perto das juntas do ombro.
Pela sua expressão dolorosa, o garoto podia ver que ela estava relembrando das memórias de quando o monstro arrancou seu braço. Revivia o medo e dor que sentira.
— A dor… odeio-a — disse ela.
Sob suas roupas, Muoru sentiu o ferimento em sua perna direita doer. Foi onde Dephen havia mordido quando ele tentou escapar. Sem dúvidas, o grande cachorro preto pegou leve. Mesmo assim, apesar de sua mandíbula demoníaca, sua perna não foi arrancada. E, conforme os dias passavam, conseguiu até esquecer de que havia uma cicatriz.
No entanto, logo após a mordida que acontecera, lembrou-se da dor aguda que tomou conta de seu ser. Mesmo tendo pegado leve, a dor por causa da mordida do cachorro foi quase insuportável. E, se apenas isso já doía esse tanto…
“O que é um corpo que não pode morrer?”
Pouco tempo atrás, teve um leve vislumbre disso.
Pelas inúmeras foices do monstro de carne, Mélia foi morta diversas vezes. Foi perfurada; esmagada; rasgada; dividida ao meio; quebrada… foi morta.
Foram ferimentos que deviam ser fatais. E, tendo sorte ou não, com machucados daqueles, não era necessário perguntar o estado da vítima. Por ter apenas uma vida, um humano comum não poderia sofrer mais de um ferimento grave.
Porém, em apenas uma noite, quantas vezes o corpo dela experimentou a dor da morte?
Ficou claro que as feridas que recebera desapareceram, independentemente da profundidade. Entretanto, as memórias não poderiam ser apagadas. A memória da dor e a do medo não podiam ser aliviadas e acabavam se acumulando. Era como uma tortura. Era algo terrivelmente ruim.
Não importava quem fosse, algum dia, seria incapaz de suportar essa experiência. E, se sofresse a dor equivalente à morte várias vezes, sem dúvidas, passariam a preferir a morte.
Guardas sepulcrais não podiam morrer, foi o que Mélia disse.
Mas isso era mentira.
Eles morriam.
O coração deles morria.
Cediam a Thanatos .
Mélia não era exceção.
— A garota se dissolveu à luz do sol — disse com um tom honesto e cruel. — Quando o leste brilhou, as estrelas desapareceram. Quis pará-la, não sabia o que fazer. Ela não deu ouvidos a nada do que eu disse, então, não pude fazer nada além de assistir. Depois, o primeiro raio de luz atingiu Maria. Ainda que a luz da primavera devesse ser gentil, para Maria, parecia ser óleo fervendo, e, quando todo o seu corpo foi banhado pela luz do sol, como se fosse um verme, contorceu-se no chão. Parecia que o poder da Escuridão dentro dela estava a rasgando…
Muoru conhecia a pessoa que Mélia estava descrevendo. Por isso, quando fechou os olhos, a imagem que teve foi a de uma garota, que, ao invés de ter cabelos castanhos avermelhados, queimava à luz do sol.
Era impossível confirmar a precisão de sua imaginação, porém, de uma coisa tinha certeza, sabia o que acontecera ali… neste túmulo… aos seus pés.
— A garota coberta pela luz parecia estar sofrendo muito. Mesmo assim, também mostrava felicidade. Ser capaz de morrer a deixou feliz, pude perceber isso enquanto observava de perto. Mas, então, Maria chorou. Chorou por mim, pela garota que estava abandonando. Entenda, ela sabia que, depois de ter o corpo destruído, eu me tornaria a próxima guarda sepulcral.
A garota esfregou a borda da lápide com gentileza quando falou.
— Então, enterrei seu corpo sem alma aqui.
Silêncio.
Muoru não conseguiu encontrar nenhuma… nenhuma… nenhuma palavra mesmo para dizer. Seus sentimentos foram fortemente abalados por este evento, algo que nunca lhe acontecera antes.
— Sinto muito, Muoru — disse ela de repente.
“Por que ela precisava se desculpar?” A sua confusão se intensificou mais uma vez. “A pessoa que precisa pedir perdão sou eu… mas… mas… eu…”
A garota olhou em sua direção, porém, seus olhos não se encontraram.
— Você não veio aqui porque queria, então acho que não devia ouvir essas coisas… — disse ela, porém, quando continuou, seu tom ficou muito mais alegre: — Desde que me tornei uma guarda sepulcral, estivesse sozinha e nada de bom me aconteceu. Não fui capaz de ver o sol e… tive muitos pensamentos dolorosos. Não posso ir para qualquer lugar também, por isso, pensei que apenas ficar de guarda neste cemitério já seria o suficiente…, mas nunca fui feliz.
Usando o capuz para cobrir ainda mais o rosto, colocou a mão sobre a boca.
— Até que você me deixou ser sua amiga.
Espiando seu rosto, Muoru conseguiu ver vagamente a expressão de Mélia suavizar… e, pela primeira vez, também viu… seu sorriso.
As têmporas dele pulsavam.
“Vou fugir”. Novamente, recitou aquelas palavras em sua mente. “Foi por este motivo que me aproximei de você.”
A fim de conseguir fazer alguém que conhecesse bem o cemitério cooperar consigo, precisava se aproximar dela primeiro. Este era seu plano e, agora, estava prestes a gerar frutos.
Ela confiava nele e entendia que ele não devia estar ali.
Ficou evidente que isso podia ser considerado um grande sucesso. Porém…
“Se é um sucesso, por que me sinto tão vazio? Será que estou apenas cobrindo os sentimentos de ódio de mim mesmo?”
Para simplesmente conseguir seu grande objetivo, não havia muitas opções disponíveis para um prisioneiro como ele. E tudo seria em vão caso não conseguisse atingi-lo através de seus métodos. Por isso, perguntou a si mesmo com força:
“O que devo fazer? Qual a melhor forma de fugir deste lugar?”
Essas perguntas deviam ser o único e mais importante problema em suas mãos.
Entretanto, mesmo estando bem ciente deste fato, não conseguia parar de pensar se havia algo que pudesse fazer por Mélia.
CAPÍTULO 7
Sob o sol do meio dia, durante a metade do verão, com um pano amarrado na cabeça, o prisioneiro, Muoru, abria uma cova com a pá que já estava acostumado.
Cravou a lâmina no chão, encheu-a, ergueu-a e arremessou. Então, repetiu. A série de movimentos era ininterrupta, como se ele tivesse a precisão de uma máquina e os movimentos suaves e metódicos de um animal.
— Booommm dia, Toupeira-tan.
Com um sorriso que mostrava uma alegria que aparentava vir do fundo do coração, Corvo apareceu e interrompeu o trabalho de Muoru.
— Toupeira-tan…?
Observou Corvo com desprezo nos olhos…, mas, então, sua visão focou na cabeça dele. Mais especificamente no grande objeto que estava acima de seu cabelo estilo chanel.
— Isso… — disse Muoru com um gemido.
— Hehehe, é u que plometi para vucê. Olha só.
— Obrigadinhuu. .. não, sério, realmente achei que você não conseguiria.
— O que está dizendo? Foi moleza. Mas, sério, não entendo o porquê de você querer isso… pode colocá-lo um pouco?
— Claro — respondeu Muoru, amarrando a alça sob seu queixo. A pele de suas bochechas foi automaticamente puxada para cima e começaram a coçar.
“Maravilha, isso é perfeito”. Fato era que não poderia fazer muito com só aquilo.
Mas, pelo menos, fazia parecer estar cheio de energia.
Sentia que poderia participar de uma marcha de vinte quilômetros para gastar seu excesso de energia. No entanto, além de seu capacete, não tinha equipamentos para a atividade, ou um percurso para correr. Por isso, só poderia continuar cavando.
Maravilhado com o quão animado Muoru ficou por causa de suas ações, Corvo suspirou com descrença.
— Sério que gosta disso? Essa coisinha vai servir para quê?
— Não se preocupe com isso. Alguém que só gosta de coisas brilhantes não entenderia.
— O quê? Como sabe que gosto de dinheiro? — perguntou Corvo, inclinando a cabeça para o lado. Então, riu: — Dinheiro é bom! Coletá-lo é divertido! Se tiver dinheiro, pode fazer o que quiser! E, claro, é brilhante, mas também amo o fato de ser agradável usá-lo. Até entrar na próxima vida, dinheiro é uma boa coisa para se ter.
Desta vez, foi a vez de Muoru ficar surpreso.
Sentia que era desagradável ver uma criança dizer coisas assim enquanto mostrava um sorriso inocente como o de um anjo.
Até ali, Corvo esteve agindo como se fizesse uma grande proclamação. Mas, de repente, mostrou um sorriso feio e perguntou:
— A propósito, Toupeira-kun, como vão as coisas com a garota?
Muoru tentou mostrar-lhe um rosto de hesitação, conforme se afastava da cova que estava cavando até agora. Então, acenou para ele, como se o chamasse para uma conversa secreta.
Quando se aproximou, Muoru disse em voz baixa:
— Ah, acho que dá para dizer que está indo bem.
— Sério… o que aconteceu?
— Tentei ser honesto com ela. Só isso.
— Ah, só isso? E eu pensei que o hostil Muoru era muito mais divertido. Hm, bem, se isso a deixa feliz, então acho que está tudo bem.
Muoru levantou seu braço para empurrar Corvo.
— Ei. — Ele se esquivou sem esforço, como se não tivesse peso algum. Porém, de repente, sem precisar de muita força, afundou no solo.
— Oi, espera aí, Toupeira-kun. O que está fazendo? Minha bunda dói!
Com um suspiro, Muoru pegou sua pá. O buraco em que Corvo caíra foi feito especialmente por uma toupeira, era estreito e profundo . Um corpo de criança podia ser enterrado até a cabeça, mas os dedos de Corvo mal conseguiam chegar à beirada do buraco.
— Não era minha intenção te enganar desta forma, mas não havia outro jeito. Não tenho muitas opções, sabe? Por isso, já que estou sendo honesto contigo, espero o mesmo vindo de você.
— O que quer dizer? — perguntou Corvo com um rosto que parecia prestes a chorar. — Não fui um corvo bonzinho? Isso é cruel.
Sem dar atenção às reclamações vindas debaixo de seus pés, Muoru perguntou:
— Ainda há coisas que você não me contou, não é mesmo?
A expressão do Corvo escureceu.
— Vamos começar contigo. Você aparece muito. As pessoas que frequentemente vêm e vão do mundo exterior são empregados de distribuidores de alimento. Claro, se não incluirmos eles, precisamos falar de seus amigos mascarados. Eles vêm com mais frequência que os distribuidores. Mesmo assim, não são tão frequentes quanto você. Além disso, todos parecem ir e vir em um grande trailer. Por este motivo, acho que é natural ter dúvidas. Agora, diga-me, por que você é o único que pode se mover livremente neste lugar?
Do fundo da cova, Corvo sorriu:
— Ora, ora. Descobriu rápido. É uma pena que só te fizeram abrir covas. Já te disseram isso? — Seu sorriso parecia desumano, como se seu rosto tivesse sido cortado do canto dos lábios até as bochechas.
— Tudo bem, por que não conversamos?
Até Muoru sorriu. As palavras de Corvo foram engraçadas.
“Um corvo bonzinho? Que piada.”
Era um conhecimento muito antigo que corvos tinham a reputação de serem pássaros nefastos.
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Então, anoiteceu.
O garoto estava ocupado nivelando a cova que usara para intimidar o Corvo. Preencher covas era particularmente mais agradável do que cavá-las. Tudo o que precisava fazer era colocar uma pá cheia sobre o buraco, virar e deixar a gravidade fazer o resto.
Encheu a cova até a terra estar no nível do solo, depois, usou seus sapatos para pisar no local e apagar os traços da escavação.
Foi neste exato momento em que viu o baixinho, Daribedor, se aproximar.
— Do que se trata isto, Senhor Prisioneiro? — perguntou o velho, encarando com curiosidade a cabeça de Muoru.
— Achei. Não será um problema, não é? Acho que posso considerar um consolo pela vez em que enterrei aquele monstro.
— Acho que não teríamos problema.
— Tudo bem, a propósito, precisa de mim? Quem sabe alguma ajuda com outro enterro e tal? — perguntou Muoru, conforme colocava a pá no ombro.
Daribedor balançou a cabeça.
— É sobre o trabalho de amanhã.
Então, liderando-o, chegaram até um enorme lote de terra entre um amontoado de lápides no cemitério.
Muoru já estava tendo um mau pressentimento sobre o trabalho.
Daribedor curvou-se, tirou algumas estacas do bolso e colocou a primeira no chão aos seus pés.
— A cova começa aqui…
Caminhou com passadas ainda menores que a de Corvo, mas seus pés não paravam. Nunca paravam. Os dois continuaram caminhando sem parar. Depois de muito tempo, não fez tentativa alguma de colocar a segunda marca.
O tempo parecia passar assustadoramente devagar.
“Já está bom, pare. Pare logo”. Muoru desejava em sua mente enquanto olhava para o velho. Teve vontade de pegá-lo de guarda baixa, correndo até ele e dando um puxão em seu terno para pará-lo.
— E termina aqui. — Parou, colocando a última das quatro marcas.
Muoru mal conseguiu registrar o que ouviu. Era uma distância colossal. Fazia a cova cavada para aquele monstro carnudo parecer uma piada.
— Bom, sei que é uma tarefa difícil, mas se puder, comece amanhã. — Depois deste breve pedido, curvou-se educadamente, virou-se em direção à mansão e passou por Muoru. O garoto não queria ter esse tipo de conversa com o velho, mas, quando o mesmo passou ao seu lado…
— Vou enterrar um dirigível? — Não pôde deixar de perguntar.
Como uma cigarra, Daribedor riu, depois, partiu.
“Parece que precisarei fazer isso mais cedo do que esperava.”
Daribedor lhe disse que estaria tudo bem em começar no dia seguinte, mas seu corpo já estava se movendo. Mesmo estando começando um pouco antes do combinado, sabia que não conseguiria fazer muito progresso, mesmo assim, continuou. Logo foi obrigado a voltar ao estábulo e buscar o carrinho que usava para puxar terra.
O tamanho era realmente absurdo e não foi uma piada quando Muoru perguntou se era para um dirigível. Claro, não estava falando apenas da cabine, estava incluindo tudo, inclusive o balão cheio de gás hélio.
Quanto maiores, mais fortes.
O primeiro que viu, o monstro com apenas o rosto, foi enterrado em uma cova que poderia caber um estábulo.
O que machucou Mélia era duas vezes maior. Possuía um poder aterrorizante e era, essencialmente, imortal, a ponto de ser incerto se um batalhão de soldados em tanques poderia pará-lo.
E agora, a cova que abriria era para algo ainda maior que os dois.
“Se é esse o caso, qual a força do monstro que está para ser enterrado aqui?”
Não pôde deixar de tremer. Uma criatura dessas realmente existia neste mundo? Sentia que apenas um deles poderia destruir todo um país.
Por isso, neste caso, apenas um guarda sepulcral precisava impedir a destruição de todo um país, ou mais que isso, devia supostamente prevenir a morte dos humanos com seu próprio corpo?
Muoru colocou toda a energia que tinha para abrir a cova, e uma montanha de terra logo se formou diante de seus olhos. De fato, no momento em que o sol se pôs, a pilha estava mais alta que ele.
Estava grato por não haver nuvens no céu e aquela lua brilhar com esplendor. E, talvez, aquele céu noturno também fosse a razão pela qual Mélia não estava carregando seu lampião.
— Muoru…? — perguntou com uma voz repleta de dúvidas à medida que chegava ao lado de Muoru. Fazia sentido, já que metade de seu corpo, até as costelas para ser mais exato, estava dentro do buraco.
Porém, quando ele olhou para cima, percebeu que ela parecia estar olhando de forma estranha para algo em sua cabeça.
“Ah, é mesmo”. Lembrou do que recebera hoje, havia esquecido completamente que o usava. Era algo com que sua cabeça já estava acostumada. O item que Corvo trouxera não possuía um emblema nacional, mas tinha o mesmo design e forma do equipamento oficial que a infantaria usava. Até mesmo o tamanho era igual, como se tivesse sido feito sob medida para Muoru.
— Ah, isso?
Quando ele estava prestes a lhe dizer o nome, com dificuldade, ela disse:
— Um capacete?
Depois, os dois se sentaram à beira da cova. Logo ao seu lado, Mélia parecia muito envergonhada, porém, ao mesmo tempo, também parecia um tanto quanto feliz.
Com aquele bom humor, Muoru explicou o quão incrível um capacete era. Desde os tempos antigos, foram usados para proteger a parte mais importante do corpo. Quando a era atual chegou, a combinação de aço e plástico o tornaram mais leve e resistente. E com cascos de blindados e granadas voadoras por todo o campo de batalha, e estilhaços espalhados por explosões, proteção para a cabeça era importante. Mas claro, o campo de batalha não era o único lugar onde eram considerados necessários. Também eram usados em vários jogos com bola, esportes, para andar a cavalo, de motocicleta, em locais de construção de uma nova mina…
— Mas por que está usando isso agora? — perguntou Mélia, parecendo gostar de ouvi-lo. Essa foi sua primeira pergunta sobre o assunto.
Ele não sabia como responder.
No meio da noite, proteção não tinha sentido, e claro, balas não estavam voando em sua direção.
“O motivo de eu estar usando isso…”
— É uma sensação boa — respondeu o garoto.
— Sério?
Aparentando ter aceitado sua resposta facilmente, a qual ele só disse por estar sob pressão, Mélia inclinou a cabeça para o lado, inveja estava presente em seu rosto. Era como se acreditasse que o capacete produzisse algum tipo de efeito.
O garoto começou a corrigir a si mesmo, mas rapidamente parou. Então, desamarrou a corda sob seu queixo e, com ambas as mãos, entregou-o a Mélia.
— Gostaria de experimentar? — perguntou ele.
Os olhos dela se iluminaram.
— Posso?
Muoru assentiu e, então, Mélia removeu seu capuz.
Sendo sincero, o momento pelo qual tanto esperou estava próximo, poderia vê-la sem o capuz. Na verdade, entregar o capacete foi seu plano desde o princípio.
O cabelo que ela escondia dentro do tecido escuro espalhou-se sobre seus ombros até as costas. Por estar bem próximo, também conseguiu sentir o fraco aroma de sabonete, mas esta não era a característica mais surpreendente. Iluminado pelo luar, seu cabelo brilhava belamente, como se tivesse açúcar jogado nele.
Então, parecendo tímida, encarou Muoru e estendeu as mãos para pegar o capacete. Seus braços estavam levemente abertos, como se estivesse esperando para ser abraçada.
Odiou admitir isso, mas ele não poderia fazer isso.
Mélia era bonita.
Ele gostava dela.
O modo com que inclinava a cabeça para o lado, o modo com que tremulava os cílios — cada um de seus movimentos —, ele não podia deixar de amar.
Mas não poderia fazer isso.
Quanto ao porquê, não tinha muita certeza, e era difícil colocar os sentimentos em palavras. Porém, quando entregou o capacete, olhou para as mãos pálidas e delicadas da garota, depois, olhou de volta para suas mãos cobertas de terra, a razão ficou clara.
“Somos de mundos diferentes.”
Ele realmente gostava de tudo nela.
Não apenas sua aparência ou corpo, mas não vou negar isso. Gostava de tudo, até mesmo de seu coração, o qual Corvo disse que era como o de um esqueleto. E apenas ao ver a si mesmo refletido em seus olhos azuis e tranquilos, sentiu como se o interior de seus braços estivessem lentamente se dobrando.
Se alguém perguntasse por que se sentia assim, a única resposta que provavelmente daria era a de que o coração dela ficava à mostra naqueles olhos. Ele nunca se sentiu assim antes e, em sua mente, estava considerando o quão bom seria abraçá-la.
Entretanto, ela era uma guarda sepulcral.
Possuía o poder da Escuridão, não podia morrer, não podia ficar sob os raios de sol e não podia sair do cemitério.
E ele era o Prisioneiro 5722. Mas era uma falsa acusação e não pretendia passar o resto da vida abrindo covas… “Não farei isso, não importa o quê”.
Já que o capacete havia ficado grande na cabeça dela, cobriu seus olhos quase que por completo.
— É pesado… — murmurou a garota.
Muoru riu:
— Mélia, seu cabelo ficou preso na alça.
— Hein?
Ele fez seu movimento e tentou alcançar a alça pendurada ao lado do pescoço de Mélia, então, com gentileza, puxou-a para frente.
O que dissera foi mentira.
Colocou suavemente sua mão no capacete enquanto escorregava-o sobre a cabeça dela.
A beirada da parte dianteira ficou na frente dos lábios dela, cobrindo toda a sua visão.
Ao ver que ela não conseguia enxergar nada, aproximou seu corpo sem fazer barulho. Então, beijou o capacete logo acima da testa dela.
— Muoru?
— Parece que não serve em você mesmo — disse Muoru conforme se afastava e removia-o da cabeça dela.
“Será que sentiu isso?”
Seu coração parecia bater com força suficiente para quebrar suas costelas.
Se já estava tão nervoso apenas por tocar o aço, começou a se perguntar sobre o que aconteceria se beijasse-a diretamente.
Mexendo com a alça, deu uma espiada ao lado e viu Mélia encarando o capacete em suas mãos, uma expressão levemente decepcionada era vista em seu rosto.
Ela não havia percebido o que ele fizera.
— Mélia… — disse Muoru, movendo o corpo para esconder suas bochechas avermelhadas. — Assim como eu disse no outro dia, vim para cá como resultado de uma falsa acusação. E o fato de eu ter me tornado um prisioneiro não faz sentido. — A garota assentiu silenciosamente, e Muoru continuou: — Por isso, vou fugir deste lugar. Vou embora. E, quando terminar essa cova… será um adeus.
A expressão que Mélia mostrou quando entendeu foi a segunda pior reação que esperava.
— Sim… isso é o melhor… para você.
Havia surpresa em seu rosto…, além de tristeza.
Muoru sentiu uma certa alegria sádica ao ver que Mélia estava triste com sua partida. Mas a segunda pior reação também fez com que se sentisse mais tranquilo.
Embora não houvesse desculpa para o fato de ter uma imaginação fértil, não conseguia imaginar o que aconteceria caso sua confissão não ocorresse bem e ela recuasse chorando ou algo do tipo.
Porém, independentemente de sua reação, o que precisava fazer não mudou.
Não havia tempo.
Gostasse ou não, precisava fazer isso.
Seria a última vez que cavaria um túmulo como um prisioneiro.
Os únicos desejos que tinha era que o plano desse certo e que pudesse lidar com o que viria depois.
CAPÍTULO 8
— Que incrível, tu foste capaz de completar uma cova tão grande em míseros quatro dias.
Honestamente falando, nenhuma pessoa comum pensaria que o buraco gigante era uma cova apenas ao olhá-lo. O resultado de tudo aquilo, o que fez os braços de Muoru incharem por causa da tensão, parecia um local de escavação de alguma ruína histórica.
Ele já sentia que a pá de cor prateada, a qual lhe foi presenteada em sua chegada, ser tornara algo como uma companheira. É claro, não fazia muito tempo que a tinha, porém, durante este breve período, com certeza não era inconveniente. Sua antiga pá podia até ter sido feita a partir de bons materiais, mas esta era muito mais leve. Se manejasse-a milhares de vezes por dia, seu peso baixo seria definitivamente útil para seus braços. E não importava o quanto a usasse, ainda permanecia afiada. Porém, mais importante que isso, a lâmina era larga, permitindo que retirasse mais terra com cada pazada do que antes. Também, seu cabo foi feito de maneira engenhosa, para que fosse mais fácil carregar a terra.
A ideia de perder sua companheira após esta cova, caso falhasse em sua missão, o deixava triste. Pensou que ela com certeza o ajudaria a ter êxito. Mas é claro, sua principal motivação não podia ser comparada ao seu apego à pá.
— Sendo honesto, realmente aprecio vosso esforço. Tu provavelmente estás cansado, então peço-lhe, retorne e descanse — disse Daribedor com um sorriso, mas este sorriso não era de forma alguma uma recompensa.
Muoru se preparou para partir, mas, então, lembrou-se de algo e parou.
— Ah, queria te perguntar uma coisa — disse Muoru, olhando por cima do ombro para o velho de baixa estatura. — Seria melhor se eu não dormisse esta noite? Quero dizer, vou ter que trabalhar direto? — As palavras que usou nesta pergunta implicavam: Um monstro virá esta noite?
— Talvez. Bem, sim, seria bom. — As rugas ao redor da boca de Daribedor parecerem aprofundar.
Muoru deu um leve aceno e partiu.
“Uma coisa a menos para confiar ao destino.”
Porém, ao mesmo tempo, tinha um tempo limite definido.
Lavou-se no reservatório e, então, passou o resto do tempo que o sol levou para começar a se pôr no cemitério sob a árvore gigante.
Foi até o túmulo de Maria, próximo à árvore, e colocou uma flor desconhecida diante da lápide. Se parecia mais com mato, sendo apenas algo que pegou nas redondezas, mas supôs ser melhor do que nada.
Então, fincou a pá na terra e colocou a flor no chão.
Quando terminou, recostou-se no tronco da árvore e observou o sol do final da tarde se pôr no que parecia ser sua última vez.
Quando se pôs à distância, sumindo por detrás da profunda e escura floresta, pensou que o sol era grande, quente e até mesmo gentil.
Em algum momento, cochilou e teve um sonho. Nele, relembrou-se das costas fortes e robustas de seu pai. Isso criou uma sensação de solidão, fazendo-o desejar poder vê-lo mais vezes todos os dias. Até então, não fazia ideia de quão importante era para ele.
A noite chegou.
A última noite.
Não havia necessidade de procurar por Mélia; ela veio quase que no mesmo momento em que o sol se pôs.
Aquela noite, quatro dias atrás, ela parecia miserável após ouvir que não se veriam mais. Até mesmo seu manto escuro que usava parecia ser de uma tonalidade mais escura.
E agora, ele foi guiado pela vontade de confortá-la enquanto estava ao seu lado, mesmo se tivesse que mentir. Mas não poderia. Se lhe dissesse o que faria logo mais, ela com certeza seria contra.
E era preferível que Mélia não soubesse disso.
Ele era realmente uma pessoa cruel. E mesmo que sua falsa acusação fosse esclarecida, precisaria suportar o fato de tê-la machucado como punição.
“Se eu tiver que me punir por causa disso, não seria apenas um prisioneiro normal. Eu me colocaria em um corredor da morte, com toda a certeza.”
— Muoru… — A garota chamou seu nome com uma voz que parecia desprovida de energia.
Então, olhou para o chão por um tempo, agarrando as mangas, como se quisesse dizer algo. Muoru não se atreveu a olhar para o rosto dela.
Mesmo agora, sentiu que era covardia.
— É aqui que nos despedimos. — A garota finalmente disse, após o longo silêncio.
— Isso mesmo.
— Se este é o fim… tenho apenas um pedido. — Mélia levantou a cabeça. Seus olhos estavam úmidos, mas seu olhar substancialmente forte. — Olhe para o outro lado — disse ela.
Ele não sabia qual era sua intenção, porém, virou-se de costas para ela no fim.
“Isso não pode estar acontecendo…, seja como for, não me apunhale com uma faca.” No momento em que teve essa ideia idiota, sentiu um leve impacto, como se suas costas tivessem sido atingidas por uma grande bola.
— Mélia?
Não conseguia acreditar. Ela havia enterrado seu belo rosto em suas costas robustas.
À medida em que ficava enrijecido, ouviu-a respirar fundo.
— Você tem o mesmo cheiro do sol — disse ela, mas ele não ouviu isso apenas pelo ar, também ouviu pela sua pele. — Desejei isso por muito tempo.
Muoru sentiu seu corpo começar a ferver, mas muito além disso, conseguia sentir o calor vindo do nariz e da boca dela pressionando contra ele.
— É apenas fedor de suor — disse ele, sem pensar e sentindo-se um tanto envergonhado.
— Quieto — disse ela, como se ordenasse uma criança travessa.
À noite, o cemitério estava em silêncio. E com os dois também em silêncio, a única coisa que ele conseguia ouvir eram as respirações profundas da garota.
Finalmente percebendo as mãos dela, notou que ela havia cruzado seus braços em sua barriga, sem que percebesse.
“Você é astuta”. Pensou Muoru no mesmo instante. “Deste modo, não posso abraçá-la de volta sem quebrar seu braço, né”?
Ali parados, naquela posição, a respiração de Mélia parecia a de uma criança adormecida.
Tentando preservar o silêncio, Muoru virou-se devagar e, com desespero, suportou a vontade de abraçá-la de volta. A sensação parecia ter desaparecido com a mesma lentidão do sol poente, e quando finalmente desapareceu por completo, ele conseguiu ouvir o som de seu coração batendo à mesma medida em que sentia a respiração morna da garota.
“Tente dizer isso de novo, pássaro estúpido”, pensou o garoto, em sua mente, praguejando sobre o que Corvo dissera.
“A garota é vazia, como se tivesse o coração de um esqueleto.”
Ele não sabia por quanto tempo o rosto de Mélia ficara pressionado em suas costas, porém, pelo menos, foi tempo o bastante para deixar as marcas de suas roupas nas bochechas ruborizadas dela.
— Obrigada — murmurou Mélia para Muoru, depois que ele se virou.
Com grande vergonha, os dois não conseguiram cruzar olhares.
No entanto, a vergonha não era a principal razão do fato de Muoru não conseguir olhá-la direto nos olhos.
— Agora, você olha para o lado — disse ele.
Ainda vermelha, Mélia assentiu uma vez e seguiu o pedido dele com obediência.
Ele tocou o capuz escuro e baixou-o. A visão de seu cabelo era como a beleza vista quando se abria uma caixa de joias.
Empurrou o cabelo com os dedos, revelando sua nuca. Os dois tremeram no momento em que os dedos tocaram a pele dela e, por um momento, Muoru afastou a mão. Mas então, respirou fundo para se acalmar.
Depois, suspirou uma única palavra e colocou seus braços ao redor do pescoço delgado dela…
E quebrou-o.