Volume 1

Primeira Cova: Coveiro

CAPÍTULO 1

O chão sob seus pés estava úmido, e tudo o que conseguia ouvir ao redor eram os sons das árvores agitadas e os cantos dos pássaros. Embora o garoto usasse uma venda, rapidamente percebeu que foi largado próximo a uma floresta.

Depois de ser libertado do fedor de arroz no couro da velha viatura, encher seus pulmões com ar fresco era quase como um banquete doce. Até quando pensou sobre antes de ser preso, não conseguiu se lembrar de ter respirado um ar tão maravilhoso como esse antes.

Entretanto, no momento em que estava prestes a, mais uma vez, respirar profundamente, teve as costas chutadas com força.

— Ande logo, Remador¹ 5722.

Chamado por este nome, ele seguiu as ordens do oficial. O garoto era muito mais alto do que a média e seu corpo era robusto, de forma que, apenas ao olhar para sua sombra, parecia ser um completo adulto. Porém, coisas como sua boca, pele bronzeada e imaculada, seu pouco cabelo corporal, tornavam claro que ainda era apenas um jovem.

— Onde estou? Não, melhor ainda, para onde estou indo? — murmurou o garoto com uma voz baixa e rouca.

 Ele se perguntou se esta venda estava escondendo o campo de detenção, e, também, quantas horas passou no vagão de arroz. Ninguém se incomodou em lhe dizer para onde estava indo. No entanto, não se atreveu a perguntar. Porém, pelo bem do argumento, mesmo se tivesse, sabia que haveria apenas duas possíveis respostas. Ou lhe responderiam de forma adequada ou lhe bateriam na cabeça.

De certa forma, caminhar sendo incapaz de ver era difícil, mas na realidade, o caminho era plano. Já que não poderia depender de sua visão, seus outros sentidos estavam funcionando melhor que o normal para coletar informações sobre os arredores. Suas mãos estavam algemadas e, diante de si, um policial militar o puxava para frente. Diferente dele, aquele cara não mostrava sinais de ser humano.

O garoto conseguia sentir os gloriosos raios de sol do começo do verão e inalou o ar naturalmente perfumado das árvores da floresta. Embora pisasse em ervas daninhas às vezes, em nenhum momento pisou ou tropeçou em raízes no caminho. Este lugar não parecia ser uma mata selvagem e indomável.

Mas algo estava estranho.

“Que lugar é esse?”

Seu coração estava acelerado.

Embora não pudesse ter certeza, sabia que o chão no qual pisava não se parecia com nada que encontrara em seus dezesseis anos de vida.

Memórias e imagens dos cenários em que passou, e cenas que testemunhou, surgiram em sua mente as estradas sem nome cobertas por neve e o soldado solitário cavando trincheiras na terra desolada.

Não importava onde fosse, podia-se ver as trilhas dos blindados. O cheiro de óleo, carvão e areia permeavam o ar. Via os sulcos dos carros da unidade de suprimento e, além disso, a visão e o cheiro de esterco de cavalo espalhados por todo lado. Os restos dos acampamentos militares destruídos estavam cheios de vestígios de explosões causados por bombas. Também havia a fumaça da pólvora… e o cheiro de carne humana queimada.

Ele suava forte. Uma das gotas caiu sobre a coleira em seu pescoço, um grilhão que o impedia de fugir. Embora o incomodasse, não havia sentido em querer removê-lo. As algemas e a coleira impediam que fizesse o que bem entendesse. Além do mais, mesmo que suas pernas não estivessem presas, percebeu que tentar levantar suas coxas estava se tornando excruciantemente doloroso, além disso, conseguiu sentir suas pernas ficando cada vez mais pesadas.

Ele não queria continuar mais.

Porém, dentro da escuridão da venda, inesperadamente, um impulso estranho tomou conta de seu peito. Enquanto caminhava com sapatos sem cadarço, para evitar possíveis suicídios, começou a pensar que a terra em que andava não era escassamente coberta por mato como os pelos em sua barba.

“É como se eu estivesse caminhando sobre alguma coisa…”

A corda amarrada em seus pulsos foi puxada com força.

O oficial parou e estalou a língua com força. O corpo do garoto se enrijeceu em resposta, preparando-se para mais um espancamento. No entanto, não houve dor. Ao invés disso, a venda foi arrancada com força. Seus olhos estavam tão acostumados com a escuridão que os raios do começo do verão lhe atingiram com força. Ele se virou para o lado como se tivesse levado um tapa, cobrindo seu rosto e fazendo o oficial ficar incomodado.

— Moleque, levante a cabeça.

Piscando, o garoto seguiu a ordem.

Sua visão estava borrada, branca e turva.

A primeira coisa que viu direito foi seu guarda. Como imaginava, o homem parecia estar na casa dos trinta, com um rosto magro, longo e fino. A próxima coisa que entrou em sua visão foi o chão úmido e a vegetação alta e, então, os túmulos.

Lápides. Lápides. Aglomerados de lápides. Dentro da clareira da floresta, estavam alinhados inúmeros monumentos da morte. Havia lápides de todos os tamanhos e formas, e até mesmo os espaços entre elas eram estranhamente irregulares. Havia algumas espalhadas com uma distância de dez passos, até chegar a uma que estava isolada das outras. Metade parecia estar dentro da floresta. Algumas eram feitas de granito novo em folha, e outras já haviam ficado gastas por causa da chuva, seus epitáfios e inscrições já não eram mais legíveis. Não existia senso de uniformidade ou ordem neste lugar.

— Não me diga que… — perguntou ao seu guarda com uma voz jovial que deixava claro o choque — me fez caminhar até aqui só para te poupar o trabalho de ter que carregar meu cadáver?

Rindo, o homem respondeu:

— E se for o caso?

— Então acho que essa seria mais uma tragédia baseada em falsos pretextos.

Em resposta, o guarda o chutou na boca do estômago.

Ainda que tivesse se dobrado por causa da dor, as cores de seu rosto se mantiveram quase que inalteradas, ao mesmo tempo em que mostrava um sorriso amargo. Desde que recebeu a notícia da sentença de morte, em momento algum pensou que seria executado ali.

“Ha, acho que esse cara não seria punido se me matasse.”

— De qualquer forma — continuou o guarda —, este é o lugar para o qual está indo.

Com um dedo indicador esquelético, o guarda apontou para o local que iriam. Em um dos cantos da fronteira entre a floresta e o cemitério, o garoto teve um vislumbre de uma mansão e suas paredes brancas. Mal podia-se vê-la, como se tivesse sido enterrada dentro do verde-escuro das árvores de folhas espessas. Até onde se podia ver, parecia ser um local onde vivia apenas uma pessoa.

À medida em que se aproximavam da mansão, o garoto, sendo puxado pela corda amarrada aos seus punhos, percebeu que as paredes não eram pintadas de branco. Na verdade, a cor era o branco de pedras recém extraídas. A construção também não era tão grande, mas seu perímetro estava completamente cercado por uma grade de ferro preto, sem traço algum de ferrugem. As pontas das grades pareciam a ponta de uma lança, todas apontavam para o céu, protegendo contra bandidos. A entrada era um portão de ferro unido às grades de ferro e estava bem fechado. Naturalmente, não havia uma festa de boas-vindas para eles.

O garoto começou a duvidar sobre alguém viver naquele lugar. A área não parecia ter tido nenhum tipo de atividade recente. Entre a cerca e a mansão, havia um pequeno jardim, o qual, embora estivesse repleto de mato, era plano e não possuía nem mesmo uma árvore ou arbusto. Não havia fontes e esculturas, ele também não conseguiu encontrar nenhum varal para secar roupas.

Porém, ao invés dessas coisas, havia um mecanismo telefônico ao lado do portão de ferro. Pessoas de classes mais baixas não tinham acesso a isso, mas essa entrada possuía um. Quando se tratava desses mecanismos, mesmo tendo visto vários durante seu serviço militar, assim como blindados, ainda eram ferramentas que apenas oficiais especializados podiam utilizar. Pessoas como ele, as quais eram apenas “toupeiras de guerra”, não tinham a oportunidade de tocar nesse tipo de coisa.

“Uou. Que surpresa, esse lugar é bastante luxuoso”pensou o garoto com surpresa, mantendo sua opinião em segredo. O policial, sem saber como lidar com esse dispositivo, apertou o interruptor desajeitadamente. Então, pegou o receptor preso a um fio longo e estreito.

— Aqui é o Oficial Mandatório Barrida, da polícia militar de Filbard. Como mandado, escoltei o Prisioneiro 5722.

Depois de um tempo, alguém, que parecia ser velho, respondeu com uma voz terrivelmente rouca:

— Estávamos a vossa espera. Obrigado, oficial, apreciamos grandemente vosso trabalho. — O volume da voz do velho parecia tão alto que o garoto, ao lado do policial, não teve problemas para ouvir o que estava sendo dito. — Oficial, no dado momento, vossos deveres estão concluídos. Já que iremos lidar com a atual situação sozinhos, já não mais queremos lhe impor o fardo de vos incomodar. Por favor, esperamos assim que não encontre dificuldades no retorno a vossa moradia. Volte em segurança e desejamos-lhe demasiada abundância em saúde.

Ao ouvir isso, a expressão do oficial de rosto comprido pareceu ficar distorcida por causa da raiva. Não importava quão educadas fossem as palavras, dar meia volta e ter a entrada negada como se fosse um simples vendedor ambulante pareceu ter ferido o orgulho do oficial mandatório. Com um tom de queixa, respondeu:

— Mas o dever dado a mim é o de me certificar pessoalmente da escolta correta do prisioneiro. Gostaria que você abrisse o portão. E para começo de conversa, não é um tanto quanto rude não mostrar seu rosto?

— Apreciamos vossa réplica. Todavia, os documentos trabalhistas do prisioneiro já foram assinados pelas duas partes, por mim e seu exército, entretanto, ainda assim estamos gratos por vossa generosidade em deixar-nos trazê-lo até aqui. Outrossim, assunto relativo ao conteúdo do acordo, não me lembro de uma cláusula solicitando que vós entregásseis o garoto diretamente…

— Mas… — Ainda que o oficial se recusasse voltar, antes que pudesse insistir ainda mais, a voz do velho o interrompeu.

— Oficial, anuência peço. Tu não és o Oficial Mandatório Barrida Clemens, ligado à área de Filbard do Leste, do campo de prisioneiros de Racksand?

 — É, isso mesmo… — respondeu o guarda, demonstrando suspeitas diante da inesperada confirmação do nome.

Quem quer que fosse do outro lado do interfone, falou com o máximo de cortesia que sua voz permitia.

— Por vossa conveniência, a nosso critério, nos permita agendarmos-te uma visitação ao restaurante no sopé da montanha, chamado “Cotonete do Gato”. Lá, tu serás capaz de aproveitar com a mulher que desejares. Claro, bebidas e outros serviços serão completamente pagos e fornecidos por nós outros. E já que vosso retorno ao campo de detenção provavelmente será atrasado até o seguinte dia, devemos informar a vossos superiores sobre a dada conjuntura. Isto posto, o que achas vós desta oferta?

Ao ser presenteado repentinamente com uma consolação, sem dúvidas, óbvio, o oficial com cara de cavalo, com um olhar completamente desfocado, piscou. Mudando o assunto, como se a disputa tivesse sido resolvida como um inimigo que acabara de sofrer seu golpe final, a voz rouca continuou:

— Quanto ao garoto, ele está usando uma coleira?

— Ah, é… — O oficial, de forma decisiva, não hesitou por muito tempo. — Sim.

Desajeitadamente, largou o interfone e, impotentemente, murmurou para si mesmo:

— Não quero mais ficar neste lugar sombrio. — Ele se virou e, no momento em que o garoto entrou em seu campo de visão, o seu rosto começou a mostrar sinais de vergonha.

Então, parecendo ter se lembrado do fato de que estava olhando para um prisioneiro sem valor, cuspiu nos pés do garoto.

— Ei, assassino de Oficial Superior, nem mesmo pense em fugir! — Como se jogasse fora o toco de um cigarro, soltou a ponta da corda amarrada nas algemas do garoto. — Haverá uma inspeção por mês. Se houver qualquer problema que seja, você vai voltar direto para o campo de detenção. Além disso, caso seu empregador esteja insatisfeito, nem que seja um pouco, não haverá problema se ele preferir manter a coleira. E também, não importa onde você esteja, não há para onde fugir.

Rindo, o garoto respondeu:

— Sinto que se eu me esconder debaixo da terra não seria encontrado, não importa quem procure.

Ao ouvir isso, o oficial riu alto. Seu humor parecia ter melhorado cem vezes comparado ao de alguns minutos atrás. Julgando pela cara de cavalo dele, o garoto conseguia ver que provavelmente receberia muitas visitas breves e inesperadas

O homem pegou a chave das algemas de um dos bolsos de seu uniforme e jogou-a no pátio. Então, com um andar que fazia parecer estar descendo degraus, voltou à viatura.

E assim, ainda com suas algemas, o garoto foi deixado diante do portão de ferro.

Ele se perguntava sobre o que fazer agora; afinal de contas, seu captor não falou nada.

“Bem, haja o que agora, tenho certeza que não será muito bom no final.”

À medida em que se aproximava da entrada, pisando sobre as folhas no chão, um alto soou com uma voz profunda sobre sua cabeça. Ao olhar para aquela direção, viu um corvo gigante de asas abertas, seu voo de há pouco agitou os galhos das árvores. Era difícil acreditar que este pássaro, com seu grito sinistro, poderia estar relacionado a pássaros como o pardal ou beija-flor.

Lembrando-se das palavras que o guarda dissera alguns minutos atrás, “não quero mais ficar neste lugar sombrio”, ele concordou completamente.

Mesmo agora, a sensação estranha que o penetrou quando ainda estava vendado não havia se dissipado. Ele olhou ao redor novamente. O clima não estava tão quente. E, provavelmente, uma pessoa comum acharia muito agradável ficar sob o sol do começo do verão e respirar o ar fresco filtrado pelas árvores. Mesmo assim, o garoto e o oficial compartilhavam da mesma opinião. Não era apenas o fato de ser um cemitério; parecia haver algo nesse lugar que incomodava as pessoas.

Novamente, desta vez usando seus olhos, tomou cuidado com o chão em que pisava.

“Este lugar é desagradável. Bem, não é de admirar que me sinto como se estivesse caminhando sobre as costas de cadáveres.”

Quando a figura do oficial desapareceu por completo nos limites do cemitério, o portão de ferro se abriu sozinho. Com um tinido, o som do metal pesado se colidindo reverberou pelo ar.

Então, a cerca de trinta passos de sua posição, na entrada da mansão, coberta com gravuras detalhadas, um cachorro preto mostrou o focinho por trás da fechadura. Ele era maior que qualquer outro cão que o garoto já vira. Se tivesse que dizer, a aparência digna lhe dava a impressão de ser um lobo, mas sua espessa camada de pelo havia sido penteada por completo. Além disso, dentro de seus olhos, havia um brilho calmo que só era presente em cães bem treinados. No entanto, além disso tudo, seus passos faziam um som elegante.

Quando o cachorro pegou, com a boca, a chave jogada pelo guarda, o garoto ficou completamente paralisado, seu olhar se fixou na criatura. De onde estava, não conseguia saber se era amigável ou hostil.

— Prisioneiro 5722, entre, por favor. Aquele cachorro será seu guia. — A voz veio de uma cobertura que servia para proteger o interfone da chuva. O homem rouco falou como se estivesse olhando diretamente para o garoto.

Então, o cachorro desapareceu na escuridão da entrada. Mesmo sendo grande, mesmo a uma pequena distância, o garoto não conseguia ver nada no interior escuro da mansão.

“Ele me disse para seguir, mas…” Não havia ninguém cuidando dele, nem mesmo o puxando por uma corda. Porém, mesmo que o oficial tenha saído há pouco, realmente estava sem guardas?

Não, não era isso. Seria melhor ficar grato que o cachorro não estava segurando a corda pela boca?

Mesmo para um prisioneiro, usar uma coleira e ser puxado por um cachorro, como se estivesse segurando suas rédeas, estava muito além de ser patético. Claro, não pensou que o cachorro entendia esse sentimento.

Logo depois de entrar na mansão terrivelmente escura e sem janelas, não conseguiu sentir nada além de um ar frio. Mas, no momento em que seus olhos se acostumaram com a escuridão, percebeu que estava na entrada de um corredor um pouco estreito com lâmpadas a óleo nas paredes, as quais iluminavam pouco.

Depois de esperar o garoto começar a andar, o cachorro continuou a guiá-lo, e ele seguiu a criatura como se estivesse sendo puxado. Havia um carpete de alta qualidade e com padrões geométricos no piso. Porém, ao ver seus sapatos sujos deixando pegadas nele, sentiu que estava cometendo algum tipo de crime.

— Bem-vindo ao Mass Grave.

A voz ecoou no momento em que ele entrou em um grande salão. Era a mesma voz rouca que havia silenciado seu guarda há pouco tempo.

As lâmpadas de parede que decoravam e iluminavam o salão eram feitas de um vidro tão bonito que seus sentidos de valor não poderiam compreender o quão extravagante eram. Também havia uma estatueta de um humano com asas abertas em suas costas, uma pintura a óleo de uma garota e seu animalzinho de estimação à beira de um lago e candelabros dourados decoravam o local. E, bem no meio do salão, uma poltrona de couro simples. Em sua almofada, estava sentado um velho extremamente baixinho e curvado. Ainda que o garoto quisesse esconder seu desconforto, sua boca se abriu e falou:

— Você é o dono deste lugar? — perguntou, mas não imaginava que o velho responderia.

Então, sem perceber, os olhos do garoto se depararam com o nariz do homem. Não, mais precisamente, o local onde o seu nariz devia estar. No caso deste velho, parecia ter sido arrancado e, agora, tudo o que estava no centro de seu rosto eram dois buracos profundos. Ainda mais inquietante eram seus olhos pequenos, que pareciam não enxergar bem. Ele se parecia completamente com um goblin vindo direto das fábulas antigas. Mas ainda assim, usava seu terno de forma elegante.

— Perdoe-me por não ter-me designado a vós antes. Meu nome é Daribedor. Sou o zelador deste recinto. Como já deves ter imaginado de antemão, foi decidido que, a partir de hoje, tu trabalharás aqui.

O garoto havia planejado falar propositalmente de uma forma cínica, para que conseguisse arrancar a verdade do velho, no entanto, a atitude educada não falhou. Apenas com sua intuição, ele soube que esse homem não era do tipo simpático.

Então perguntou:

— Qual será minha função aqui?

Ao ouvir isso, o velho mostrou um sorriso irônico e estranho, então disse:

— Ora, que outro trabalho tu achas que prisioneiros teriam neste lugar? — Então, pelos buracos onde seu nariz deveria estar, bufou de forma sarcástica.

 

CAPÍTULO 2.1

Remador.

Originalmente, a forma com que carcereiros diziam essa palavra era uma referência aos escravos remadores em antigas galés. Já que escravos trabalhavam arduamente em barcos comerciais, a palavra continuou a ser usada para representar ambientes de trabalho pesado. Porém, atualmente os barcos eram energizados por motores a vapor e rodas de pás ao invés de remos, mas todos os criminosos servindo sua sentença eram coletivamente chamados desta forma. De acordo com a lei, todos os prisioneiros, sem exceção, eram ordenados a trabalharem.

Abater animais, se livrar de excrementos e resíduos, minerar e limpar matas eram algumas das tarefas atribuídas. Devido à dificuldade e natureza esgotante do trabalho, quase ninguém conseguia realizar tarefas que realmente queriam. E, no caso de prisão perpétua, eram forçados a trabalharem até o fim de suas vidas, sem chance alguma de liberdade condicional.

A pá dada ao garoto tinha um tamanho um pouco menor do que as que ele havia usado no passado. A haste era feita de madeira lisa, extremamente seca e dura, e um aço com resistência a ácido foi usado na lâmina e no pegador. Parecia completamente nova, como se tivesse sido trazida direto da fábrica.

Já fazia três dias que a viatura o trouxera para o cemitério público. E sempre que o garoto, conhecido pelo nome de “Prisioneiro 5722”, não estava dormindo, estava usando a pá para cavar buracos sem parar.

Seu local de descanso era o completo oposto de sua pá de alta qualidade. Quanto à sua cama, foi lhe dado um pequeno espaço no estábulo decadente no fundo da propriedade. A palha que estava espalhada no chão era velha e, embora parecesse que cavalos não eram criados ali há muito tempo, em cada um dos pilares de madeira da parede, o fedor característico de animais de fazenda permanecia.

Logo depois que o sol apareceu, um senhor e uma senhora apareceram. Fora as roupas, cabelo e nariz adunco, o qual era semelhante ao de uma bruxa, eles pareciam exatamente iguais. No entanto, comparado ao homem, que não falhava em cortesia em nome da compostura, a mulher, com uma expressão que dizia ser melhor lidar com um cavalo, gritou:

— Seu miserável, levante-se e vá trabalhar.

Então, o garoto colocou pão duro e uma sopa extremamente forte e salgada em sua boca e foi até o cemitério. E com os raios fortes de sol, suportou o desconforto e continuou a abrir covas para o futuro cadáver de alguém.

Para dizer a verdade, a partir do momento em que a venda foi removida… em outras palavras, no momento em que percebera que foi levado a um cemitério, o garoto teve um vago palpite de que provavelmente teria este mesmo destino. De qualquer forma, este trabalho pesado lhe era adequado. Já era algo com que estava acostumado. Porque cavar buracos e trincheiras era a principal responsabilidade de soldados de infantaria.

Ele ficava imaginando quantos cavaleiros foram movidos para as linhas de frente do campo de batalha e apontados para serem soldados de infantaria… À medida em que armas de fogo se desenvolviam após a revolução industrial, cavaleiros, carregadores de pique e arqueiros ao redor do mundo foram privados da oportunidade de serem úteis. Já que todos os soldados de infantaria estavam armados com armas de fogo, como um resultado da produção em massa, havia uma grande demanda por cobertura para proteger seus corpos da saraivada de balas. E por ser conveniente, eles haviam se espalhado sem parar… e com uma pá em mãos, continuavam a cavar grandes trincheiras. Assim, os grandes “toupeiras de guerra” nasceram.

Ao terminar de arrancar uma pedra do tamanho de sua cabeça, o garoto jogou reclamações nas espessas raízes de árvores em seus pés. Ao mesmo tempo, ofereceu uma oração silenciosa aos ossos humanos que ninguém reconheceria. “Não importa se é uma mata, planície, floresta ou campo de trigo abandonado, rezo para que meus companheiros Toupeiras, não importa onde estejam… não importa onde estejam… rezo para que ainda estejam cavando também”.

Naquela época, ele ficou feliz, pois a pá que ganhou aumentou o comprimento de seu braço. Seu corpo se lembrava daquele comprimento. E assim, para o garoto, o calor forte que se formava sob a coleira e o redemoinho de cabelo em sua nuca, queimando à luz direta do sol, não eram tão desagradáveis quanto a nova pá dada pelo velho, sendo mais curta por um mindinho.

“Mesmo assim, um buraco grande como esse provavelmente é necessário para enterrar mais de uma pessoa.”

Ele respirou fundo por um tempo e encarou o local de trabalho. Como ordenado, cavou o buraco, mas esse parecia grande o bastante para caber uma pequena casa.

— Se o cadáver de um humano fosse enterrado aqui, provavelmente não seria necessário um décimo desse espaço. Talvez eles estivessem planejando usar um caixão extremamente grande —, murmurou para si mesmo.

Ou, como se tentassem fazer valer o nome de “Mass Grave”, o garoto ficou imaginando quantas pessoas planejavam enterrar nesta cova.

Depois de uma grande batalha, haveria muitos cadáveres vindo… era por isso que ele estava ali?

“Bem, não importa o uso dessas covas, nada disso é da minha conta.” Havia mais uma coisa que devia estar pensando, algo que devia descobrir.

Durante os três dias desde que chegou, a única coisa que pensava enquanto cavava era escapar. Mas algo estava estranho, parecia que neste grande cemitério, ele era o único prisioneiro trabalhando.

Seu guarda… não, embora parecesse que estava cuidando do garoto 24 horas por dia, se Daribedor quisesse fazer algo, não haveria ninguém que saberia onde o garoto estava. Se, de alguma forma, o garoto fosse capaz de se esconder, não seria libertado desta ridícula cavação de covas? No entanto, se não conseguisse sair, durante toda sua sentença de prisão perpétua, seria forçado a desperdiçar sua vida em um trabalho forçado como “Prisioneiro 5722”.

— Isso não é brincadeira — murmurou para si mesmo enquanto cavava. “Esta situação com certeza não é brincadeira. Preciso fugir deste lugar. Este lugar deprimente e sombrio…”

Comparado aos grilhões e grades de cadeia que enfrentou durante seu julgamento, as restrições fracas no Mass Grave eram uma boa oportunidade. Primeiro, daria um jeito de dar o fora deste lugar na surdina. Então, trocaria de nome, tornando-se uma nova pessoa, e começaria uma nova vida onde grupos, como o exército ou a polícia, não poderiam chegar…

Enquanto trabalhava arduamente, pensando apenas na fuga, seu terceiro dia de trabalho se tornou noite. O cemitério, no despertar do desaparecimento do sol, ficou mais misterioso do que nunca. No estábulo decadente, o vento assoprava pelas frestas, tornando-o extremamente frio. Ele duvidava que a ideia de precisar de uma lâmpada ou vela havia passado na mente de alguém nesta propriedade. Por isso, sempre que as nuvens cobriam a lua e as estrelas, seu estábulo ficava completamente envolto pela escuridão. Era exatamente igual a quando estava vendado. Não teve escolha a não ser puxar o cobertor. Adormecer na primeira noite foi extremamente difícil, e se precisasse confessar… foi assustador.

Não havia fantasmas. Sua mente já sabia disso. No entanto, dentro da total escuridão, onde não havia ninguém além dele, com as velhas dobradiças rangendo e o som assustador e sombrio do vento passando pelas frestas do estábulo, não conseguia parar de imaginar que alguém se aproximava.

Claro, caso saltasse e abrisse bem os olhos, seria capaz de confirmar que não havia mais ninguém ali. Ainda assim, à medida que essa sensação aumentava sem parar, começou a duvidar se realmente acreditava ou não em coisas como fantasmas ou espíritos saindo de seus antigos corpos.

“Bem, pelo menos este lugar não seria incomodado por cadáveres que mantinham arrependimentos.”

Embora estivesse assustado, por dois dias, seus medos se provaram ser nada mais do que desperdício de tempo.

Felizmente, (bem, se era felizmente ou não, ele não sabia) na terceira noite, não havia uma única nuvem, e a lua brilhava imensamente. Estava tão claro que conseguia ver as pontas dos dedos, fazendo com que a noite fosse ideal para dar um passeio.

O garoto levantou-se da cama composta por palha e lençóis. Quando se levantou, um cachorro preto, o qual sempre ficava deitado próximo à entrada do estábulo, olhou em sua direção.

— Só vou dar uma mijada. Acho que você também não faz na sua própria cama, né? — disse balançando mão. Então, o cachorro saiu do estábulo com o garoto seguindo logo atrás dele.

“Ele é cortês, mesmo tendo uma aparência assustadora, e realmente parece entender o que digo.”

Isso o lembrou de dois grandes problemas com relação à fuga.

A coleira em seu pescoço e também… este cachorro.

Não importava o que o garoto fizesse, o cachorro preto, chamado “Dephen”, sempre estava observando. E mesmo se não estivesse diretamente à vista dele, ainda sentia que sempre estava dentro de sua área de percepção. Por isso, caso tentasse ir para qualquer lugar que fosse, no final, Dephen estaria logo atrás dele, seguindo-o.

— Você nem mesmo devia pensar em fugir. — Daribedor havia lhe dito no primeiro dia. — Dephen é um excelente guarda sepulcral. Ao mesmo tempo, é um cão de caça inigualável. Seu olfato e suas presas o tornam digno de ser o melhor carcereiro.

“Um cachorro é meu carcereiro?” No início, o garoto não estava totalmente convencido, porém…

Durante os três dias sob observação, este cachorro havia realizado sua tarefa com um alto padrão de excelência. Em um passado distante, humanos lutavam com cães de caça, e era difícil vencer aquelas lutas sem sofrer ferimento algum. Mesmo que o garoto não soubesse o que realmente aconteceria caso tivesse sucesso em um ataque surpresa contra o cachorro usando sua pá, isso não importava, pois o mesmo nunca ficava em um bom alcance para ser atacado.

Seria bom se Dephen baixasse a guarda quando se alimentasse. Mesmo assim, ainda que algumas migalhas de pão fossem jogadas para o garoto, aquele cachorro com certeza ainda seria capaz de localizá-lo pelo cheiro persistente.

Depois de se aliviar, o garoto não voltou direto ao estábulo. Ao invés disso, caminhou ao longo da cerca da mansão. Ele estava relutante em ir direto ao cemitério. Até mesmo o farfalhar das folhas com o vento o deixava inconfortável.

“Mas…, obviamente, nada viria durante a noite, né? Nada como alguém perneta, ou algo do tipo.”

Bem, mesmo se decidisse adiar sua fuga, era necessário saber como o cemitério parecia durante a noite. Caso fugisse no meio dela, precisaria atravessar a escura floresta desconhecida, não importava a direção que fosse… e isso provavelmente seria suicídio. Porém, mesmo que pudesse caminhar bastante, não sabia se conseguiria realmente chegar à cidade mais próxima. Mesmo se fosse capaz de encontrar algumas marcas de pneu, e isso no caso mais otimista, ainda precisaria seguir uma estrada. E, para isso, precisaria sair do cemitério.

“Isso mesmo. Não existem fantasmas. Além disso, eu não estava mais assustado quando aquele revólver estava apontado para mim?”

Depois que esse pensamento passou pela sua mente, o garoto usou o mesmo passo cuidadoso de quando estava vendado e entrou no cemitério. As várias lápides, banhadas pelo luar, criavam um brilho azul que se destacava no meio da escuridão. Mas, ao mesmo tempo, a cor atual das lápides desgastadas o fizera pensar em ossos.

Seu plano era descobrir todas as entradas e saídas do grande cemitério, porém, pelo fato de sua visão não conseguir penetrar a escuridão profunda, começou a sentir que esse cemitério era vasto demais. Não importava a direção em que olhava, a única coisa que via era as mesmas lápides dispersas na densa floresta escura ao longe. E já que havia seguido por várias direções enquanto estava cego pela escuridão, o garoto tinha certeza de que não conseguiria encontrar o caminho de volta para o estábulo. Ainda assim, por mais estranho que seja, o fato de aquele antipático cachorro preto sempre estar logo atrás dele realmente o reconfortava.

“Prisioneiro, tu podes até estar aliviado que teu carcereiro tenha partido, mas tenha certeza, este cão irá vos acompanhar.”

Quando pensou nas palavras de Daribedor, um sorriso amargo apareceu sem querer.

“Então, está tudo nos conformes. Este lugar pode ter uma pitada dessas superstições fantasmagóricas, mas, no fim, fantasmas são coisas que só aparecem nas historinhas.”

À medida em que o vento soprava, ele caminhava pelo cemitério, sua coragem até ficou revigorada. Claro, sabia que isso era um blefe. A sua nuca, sob a coleira, e seus dois braços musculosos se arrepiaram. “Acho que por hoje já chega… seria melhor continuar amanhã…” com cada passo, esses pensamentos gentis passaram pela sua mente.

De repente, percebeu que, à sua frente, estava a cova que cavara durante o dia. De onde olhava, parecia que algum tipo de porão poderia ser construído dentro desse enorme buraco. O luar não chegava ao fundo e a escuridão parecia ser um líquido, cobrindo tudo lá embaixo… também não havia inscrições na lápide. Era um túmulo que não pertencia a ninguém.

Durante o dia, havia se perguntado quem seria enterrado nesta cova.

E agora, dúvidas sobre o que aconteceria caso morresse surgiram em seu peito.

Caso tivesse quebrado uma das regras dentro do campo de detenção, teria sido informado sobre o código penal com detalhes. Mas ninguém havia o informado sobre o que aconteceria caso morresse. Por exemplo, se sua fuga fosse um fracasso e tivesse sua traqueia mordida pelo cachorro preto e morresse, seu cadáver seria enterrado neste cemitério mesmo?

Para o garoto, isso não importava, já que ninguém sentiria por ele. Além disso, antes do julgamento, foi decidido que seu nome, aquele dado pelo seu pai, seria revogado. Por isso, era quase certo que não haveria um nome em sua lápide.

“O coveiro não terá uma cova.”

Quando esse pensamento sarcástico cruzou sua mente, um sorriso amargo apareceu em seu rosto. Mas não sabia se devia se sentir triste ou frustrado em tal situação. O sentimento era vago, fazendo-o sentir-se vazio. Na verdade, o vazio se assemelhava à escuridão dentro da cova.

Enquanto ouvia o som do vento repentino, ele pensou ter ouvido algo mais. Soava como o esvoaçar de roupas… como se algo se movesse.

Ao virar sua cabeça na direção do som, percebeu que, sem ao menos notar, o cachorro desaparecera.

Suor frio começou a escorrer pelo seu pescoço.

Então, deixado sozinho, finalmente lembrou-se em que tipo de lugar estava. E, por isso, como uma pessoa com consciência pesada, rapidamente checou os arredores.

As diversas lápides que o cercavam…

A cova gigante aos seus pés…

A floresta sombria e agitada…

A lua minguante…

E também, entrando em seu campo de visão…

Havia algo lá.

“Há alguém além de mim, quem poderia estar em um cemitério no meio da noite?”

Sua mente ficou em branco.

Independentemente do que fosse, era quase do tamanho de um humano e usava um capuz azul muito escuro. Seu sobretudo chegava até os pés e tremulava ao vento.

Espectro. Criatura. Fantasma…. As misteriosas fábulas sobre fantasmas que os adultos lhe ensinaram arduamente quando era pequeno apareceram em sua mente.

O capuz criou uma sombra, impedindo que o rosto fosse visto. No entanto, tinha certeza absoluta de que aquilo havia o notado. Até porque estava indo direto em sua direção.

“Será… que devo… correr?”

Respirar ficou difícil. Ele não correu, mas isso porque seu corpo não obedecia às ordens de sua mente para fugir. O medo tomou conta dele, deixando-o em pânico, sua mente caiu em um caos completo. As pernas estavam paralisadas, como se fosse um soldado diante de uma granada prestes a detonar. Se sentiu extremamente tonto, sem conseguir parar de tremer. O fato de sua bexiga estar vazia talvez fosse uma benção divina ou misericórdia dada pelos céus.

Balançando com lentidão de um lado para o outro, o ritmo da pessoa que se aproximava era surpreendentemente lento, mas não havia como o garoto conseguir sentir isso.

“Acho que… vou desmaiar…”

Era uma sensação estranha. Ele devia fugir. Era a única coisa que pensava. Devia fugir. Daquele fantasma… deste cemitério. Mesmo assim, parecia que suas pernas estavam enraizadas, tentou mexer seus membros com toda a energia que ainda restava neles.

Mas, no instante seguinte, toda a energia esgotou-se de seus joelhos e, com uma sacudida, caiu. Enquanto caía, sentiu que a distância entre ele o chão estava maior do que devia ser.

“Nada de bom aconteceu no final.”

No meio do cemitério, no meio da noite, o garoto perdeu a consciência.

Mas antes de seus olhos se fecharem por completo, dentro do capuz daquela criatura, pensou ter visto um rosto branco.

 

CAPÍTULO 2.2

Sua memória mais antiga era a de um som… De vez em quando, uma batida alta podia ser ouvida, kiin kiin, vinda da área próxima ao seu quarto. Ele estava olhando para o teto de aparência velha, algo que já estava familiarizado… o teto de sua casa… o teto da casa de sua cidade natal.

Tentando não acordar seus irmãos, o jovem garoto saiu da cama silenciosamente. Com os pés no chão, seu campo de visão ficou muito mais baixo do que era agora… Havia apenas uma leve ideia de que isso era um sonho de sua infância.

Kiin… kiin…

Logo percebeu do que se tratava o som. Seu pai, um escultor, estava empunhando uma talhadeira e um martelo.

O jovem encarou fixamente as costas arredondadas de seu pai, enquanto o mesmo estava em uma escadinha e focava toda sua mente e energia em esculpir a pedra.

Porém, não conseguia se lembrar da voz dele. Mas ainda se lembrava que era uma pessoa teimosa e quieta. Na verdade, era extremamente quieto… muito igual a uma pedra. Possivelmente, encarar uma pedra por tanto tempo poderia fazer com que o corpo e coração ficassem duros como uma. A barba aparada parecia ser espinhosa como a escova que usava. E as palmas de suas mãos levemente sujas eram tão ásperas quanto a pele de um elefante.

Também havia sua altura. O homem não era mais alto que o garoto de agora. Na verdade, se pensasse nisso nesse momento, era até estranho que alguém como ele fosse filho de um homem tão baixinho. No entanto, em suas memórias, seu pai parecia ter uma altura considerável. Além disso, essa imagem forte e sólida deixou uma impressão forte.

Enquanto o garoto, imóvel, continuava a encarar as costas de seu pai, o mesmo virou a cabeça em sua direção.

— XXXXX, perdeu o sono? — perguntou, chamando o nome do garoto.

Ele não conseguia se lembrar direito do som da voz, talvez porque era um sonho. E a voz que ouvira parecia mais rápida do que quando seu pai realmente falou. Mesmo assim, o garoto sentiu um certo alívio. Muito provavelmente porque seu pai disse seu nome…

“Desde quando comecei a sonhar com meu pai…?” O prisioneiro pensou em meio ao seu sono.

Ele rapidamente despertou… se possível, precisava se preparar para o trabalho diário antes que a velhota rabugenta voltasse. Porém, por alguma razão, o conforto e aconchego eram tanto que não sentia vontade de se levantar. Era semelhante à sensação maravilhosa de ter os sentidos e consciência começando a relaxarem em uma banheira agradável. E por isso, mesmo sendo por pouco tempo, achou que não havia problema em sonhar com seu pai.

Um gosto de terra preencheu sua boca.

Quando a sensação desagradável tomou conta, o garoto abriu os olhos.

No entanto, apesar de suas tentativas, por algum motivo, seu lado esquerdo estava completamente escuro. Tentou piscar, mas uma dor aguda atingiu seu olho esquerdo. E como estava deitado de lado, à sua direita, conseguiu ver uma parede de terra.

— Mas o quê…?

Com pressa, se levantou e, ao invés de um futon, de todas as coisas possíveis, terra caiu de seu corpo. Metade dele estava enterrada no chão… não, melhor, havia sido enterrada. O fato de que o garoto estava dentro da mesma cova que cavara antes não era nenhuma brincadeira.

“É mesmo, eu desmaiei.”

Antes que pudesse compreender a situação, montes de terra caíram e cobriram sua cabeça.

— Ei, mas o, ugh. — cuspindo a substância estranha, olhou para cima.

— Você estava vivo? — disseram os lábios cor de flor de cerejeira.

A lâmina de uma pá, exatamente igual à nova que ele recebera, parecia brilhar com uma luz prateada, sendo este o reflexo do luar no metal. Nela, havia um amontoado de terra, mas o mais interessante era a garota que segurava a pá e olhava para ele à beira do buraco.

— …

O manto azul escuro que a garota usava era exatamente o mesmo que vira antes de desmaiar. E o que ele viu dentro do capuz antes de desmaiar, com toda certeza, parecia ser humano, mas na realidade, era algo lindo. Pelo menos foi isso que pensou. Apenas por causa do medo, vê-la fez com que até mesmo se esquecesse de respirar.

Por um tempo, ela olhou de forma misteriosa para o garoto imóvel dentro do buraco. Mas então, levemente dobrou a cabeça para o lado e perguntou:

— Ou está se movendo, mesmo estando morto?

— Do que está falando…? — O garoto proferiu uma resposta à pergunta extremamente estranha, seu comportamento rígido havia desaparecido por completo.

A voz dela era leve e linda; seus olhos azul-escuro pareciam estar cheios de suspeita, e pelo seu capuz, um cabelo castanho-avermelhado aparecia. E ele pensava que jamais veria algo tão bonito no futuro.

“Espere, não se irrite… Já se esqueceu de onde está?” O garoto perguntou a si mesmo, estreitando os olhos.

Tentando acalmar seu coração agitado, um grande número de dúvidas surgiu em sua mente.

Não eram necessárias palavras, a expressão da garota mostrava que não havia o visto trabalhando no cemitério nos últimos dias. Mesmo com um olhar rápido, acreditava que jamais poderia esquecer seu rosto. Mas o que diabos ela estava fazendo em um lugar desses a essa hora? Não, ele achava que não era natural uma garota estar sozinha em um cemitério a essa hora da noite.

“Ela parece humana, mas não posso dizer com certeza se não é simplesmente um fantasma bonito.”

Não, para começo de conversa…

— Quem é você? — perguntou o garoto ao ficar de pé.

A garota encapuzada, como esperado, o encarou com um olhar misterioso. Ainda que não mostrasse pânico ou medo, sua expressão parecia estar entre confusão e interesse. Era como se, no meio de uma estrada, cruzasse com um pintinho saindo do ovo.

No começo, ela não disse nada, mas quando ele começou a se perguntar se seu silêncio se dava pelo fato de não ter entendido a pergunta, a resposta finalmente veio de sua boca:

— Mélia Mass Grave².

Levou um tempo para que entendesse aquela série de palavras no nome dela.

— Mélia? — Para ter certeza, acabou repetindo o nome, e ela assentiu levemente.

Em seguida, o garoto perguntou:

— O que diabos faz aqui no meio da noite?

Ela respondeu:

— Não há nada de estranho nisso, já que sou a guarda sepulcral.

Como se essas poucas palavras explicassem por completo, a garota…, Mélia, não disse mais nada.

Sem conseguir aguentar mais seu olhar silencioso, o garoto virou os olhos e decidiu se focar em sair dali. Enquanto tentava sair da cova, a qual tinha uma profundidade igual à sua altura, notou as pegadas desordenadas de onde havia perdido o equilíbrio.

Parecia que, quando imaginou-a sendo um fantasma, tentou fugir, mas acabou caindo e batendo a cabeça, perdendo a consciência. Esta também devia ser a razão por trás da forte dor no pescoço. Com certeza não havia nada mais desagradável que aquela dor. Bem, o fato de que a garota não estava dando muita atenção ao seu esforço fez com que seu rosto ardesse. Então, com uma face vermelha, escalou a parede da cova.

Quando seus pés finalmente tocaram a superfície, ele ficou de pé e percebeu que agora a garota o olhava de baixo. Lado a lado com ela, sua altura era próxima ao seu peito. Ele podia dizer que, por ser uma garota, era bem comum neste aspecto.

Aparentemente, eles tinham a mesma idade, no máximo, ela seria um pouco mais nova. Seu corpo pequeno estava coberto pelo manto azul-escuro da cabeça até os tornozelos e, além de seu rosto, a única parte que estava descoberta eram seus pés brancos.

— E quem é você…? — perguntou ela, dobrando a cabeça para um lado.

A imagem dele foi refletida em seus olhos azuis, os quais eram como a superfície de um lago calmo.

Quem é você?

Esta pergunta e seu olhar pareciam ter perfurado diretamente as profundezas de sua mente.

“Bem… afinal… quem sou?” Se perguntava como deveria responder, e várias respostas possíveis passaram pela sua mente.

O terceiro filho de um escultor, uma toupeira de guerra, um assassino de superiores, Prisioneiro 5722. E agora, o coveiro sem nome. Cada um desses nomes estava correto e certamente o representavam bem.

Porém…

“Para mim, qual nome prefiro?”

— Muoru.

Seu nome verdadeiro… foi tomado…

— Meu nome é Muoru Reed³.

Quando nasceu… foi esse o nome que seu pai lhe deu…

Esta palavra foi diferente da terra que estava em sua boca. Ele foi capaz de cuspir sem se sentir desconfortável ou perdido.

Se pensasse mais a respeito, veria que era um nome idiota. Mas contanto que a memória não fosse perdida, seria impossível retirá-lo dele.

 — Muoru, né? — Como se estivesse imitando a expressão perplexa do garoto, ela repetiu o nome dele.

Ele deu um passo para trás, distanciando-se dela.

Então, como se protegesse seu coração, segurou o peito.

“Por que fiquei tão surpreso, sendo que apenas falou meu nome?”

Surpreso por ter ficado chocado com uma coisa dessas, pensou muito em uma razão. Talvez, embora conseguisse dizer, havia esquecido completamente como era realmente ouvir seu nome.

“Deve ser isso. É a única razão.”

A garota inclinou a cabeça para o lado novamente, seu cabelo liso balançou levemente sobre seu peito.

— Então, o que está fazendo? —perguntou.

 — Eu só estava… Miiii….

— …

— …

— Mi? — perguntou Mélia com uma voz suave, repetindo a frase incompleta que ele estava evitando dizer.

— Fazendo uma necessidade. — Muoru, com o peito apertado, reformulou a frase.

— Entendo. — Ela acenou com a cabeça, e quando o fez, no espaço entre o capuz e seu cabelo, .

— É, umm… — Ele buscava por palavras enquanto murmurava.

Ainda que houvesse muitas perguntas que poderia fazer, os pensamentos em sua cabeça estavam estranhamente reagindo de forma lenta, e não conseguia pensar em nada. Ao fixar os olhos na garota, conseguiu sentir sua mente ficar mais confusa, como na vez em que ficou bêbado e cheirou flores. No entanto, foi a primeira vez que sentiu isso por simplesmente conversar com alguém. E isso estava muito longe de ser desagradável…

De repente, a garota se virou.

— Bem, então… — disse Mélia, rapidamente começando a ir embora, como se tivesse perdido o interesse nele.

— Es… espere um segundo! — gritou Muoru impulsivamente.

— …?

— Não… é… — Embora tenha conseguido pedir para que parasse, pelo fato de sua mente não estar funcionando direito no momento, não tinha ideia do que dizer em seguida. Ela olhou por cima do ombro. Com seu capuz, apenas metade de seu rosto ficava à mostra. A garota olhou diretamente para ele, sem piscar, como se os dois fossem crianças tentando ver quem ficava mais tempo sem piscar.

Ele não sabia se ela estava sendo muito conscienciosa ou não, mas mesmo que o garoto não conseguisse juntar duas palavras, a garota esperou sem se mexer, como se o tempo tivesse parado.

— Esta pá é minha… Me desculpe sobre isso, mas poderia deixá-la aqui? — perguntou com um tom pouco confiante enquanto apontava para a pá.

Mélia ficou segurando a pá, mas depois que ele falou, como se finalmente se lembrasse, olhou para as próprias mãos. Então, olhou para a cova de Muoru, a qual estava enchendo, antes de se virar em sua direção.

— Você é o responsável por esta cova? — perguntou.

O garoto assentiu, e Mélia, com uma expressão difícil de compreender em seus olhos, continuou encarando-o.

Então, sem avisar, correu até sua direção, quase caindo por causa da velocidade. Mas antes de chegar perto, parou a quase um passo de distância e entregou a pá de metal. Por reflexo, o garoto aceitou-a. Da mesma forma que antes, nenhuma piada ou brincadeira veio à sua mente.

Ao invés disso, disse:

— Obrigado.

Embora sentisse que educação não era necessária ao ter sua própria propriedade devolvida, não seria capaz de dizer qualquer outra coisa mesmo.

— …

Por alguma razão, a garota rapidamente piscou os olhos. Enquanto ela o encarava, ele conseguia ver o reflexo da bela lua. Então, subitamente, se afastou dele, como se estivesse recuando.

— Adeus — disse a garota —, é… Muoru?

— Sim…

Enquanto ele permanecia ali como uma estátua, Mélia, sem olhar para trás, foi embora.

Muoru encarou o manto dela, mas depois de um tempo, desapareceu dentro da escuridão… como se fosse um fantasma…

 

CAPÍTULO 3

Quando a minhoca foi tirada da terra, a pobre criatura foi cortada ao meio e morreu.

Embora provavelmente não estivesse nem perto do mesmo nível de uma verdadeira toupeira, até mesmo uma toupeira de guerra como Muoru estava acostumado a ver vermes todos os dias. E sempre que apareciam do nada, ele acidentalmente cortava as criaturas ao meio.

Porém, apesar da frequência desses casos, hoje, Muoru foi cativado pelo que deveria ser apenas algo comum. Não sabia por que estava olhando com tanto entusiasmo para o corpo cortado da minhoca, mas no final, largou-a no chão.

Lhe foi ordenado a abrir uma nova cova hoje, talvez tenha se enganado quando pensou que a cova cavada ontem lhe pertenceria. Felizmente, desta vez era apenas um buraco para um humano de tamanho comum. Porém, conforme cavava mais fundo, precisava levar a terra para cada vez mais longe, a ponto de que o tempo necessário para a transportar se tornara maior que a quantia de tempo usada para cavar.

Quanto ao tamanho, bem… já havia cruzado com quatro minhocas. Além disso, como se fosse um idiota, a profundidade que precisava cavar era demarcada com uma longa régua de madeira, amarrada com um pedaço de pano preto. De acordo com o manual, a tarefa de hoje era de aproximadamente um metro e meio.

Porém…, Muoru percebeu que havia cavado uma profundidade da altura de seu joelho. Sem querer, sua falta de atenção fez com que errasse o chão várias vezes e acertasse o próprio pé com a pá.

— Pare de sonhar acordado e tenha foco — murmurou o garoto em voz alta, batendo na própria cabeça.

Mesmo tentando ao máximo, não conseguiu se concentrar durante o dia inteiro. Ou devia dizer que sentia seus pensamentos desviando de sua tarefa. Mesmo assim, seu corpo continuava cavando, parecia que metade de sua mente ainda não havia despertado.

No momento em que terminou de cavar, o sol já havia se posto. Para Muoru, o trabalho de hoje demorou mais que o normal. Não estava exigindo demais de si mesmo, ainda mais porque não havia ninguém vindo para elogiá-lo… sem contar que a forma com a qual era tratado não estava melhorando. Por outro lado, ainda optou por não ir pelo caminho mais fácil, pois sabia que não seria a melhor decisão.

— Senhor Prisioneiro.

Muoru ouviu Daribedor o chamando logo que começou a arrumar seu equipamento.

— Parece que tu acabaras de finalizar. — O velho continuou e, então, olhou para a cova feita por Muoru.

— Bem, sim…

“Isso mesmo, foi moleza.” Se esforçou para conter a afirmação sarcástica em sua garganta. A sensação de que seria difícil lidar com esse velho sem nariz não havia mudado desde o primeiro encontro dos dois.

— Sei que tu podes estar cansado, mas no momento, ficaria grato se pudesses ajudar com o enterro… ó, não te preocupes, apenas colocar terra sobre algo é simples. Quanto ao local, é onde tu estavas cavando ontem, creio que não haja a necessidade de te acompanhar, correto?

— Sei onde é — respondeu Muoru, de forma simples, distanciando-se com a pá em mãos.

— Ah…, sim, sim.

Porém, quando estava saindo, Daribedor pediu para que esperasse.

— Como vivo nesta terra a mais tempo, tenho um conselho para vós. Mesmo para prisioneiros, se não quiseres acabar dentro de uma cova feita por ti, seria melhor controlar-se e não bisbilhotar excessivamente certos assuntos.

— …?

Seja qual for a história que ele mencionou, Muoru não entendeu. Mas antes que pudesse perguntar qualquer coisa, o velho rapidamente voltou à mansão.

Enquanto caminhava, Muoru pensava sobre o significado das palavras daquele homem.

Talvez o velho soubesse que ele esteve caminhando por aí durante a noite…, procurando por uma forma de escapar.

Então, o encontro apareceu em sua cabeça.

Mélia.

A garota que tinha o nome de Mélia Mass Grave.

Se acreditasse no que havia dito, ela seria a guarda sepulcral desta terra.

No entanto, por intuição, não sabia quais eram as tarefas de um “Guarda Sepulcral”. Quanto a abrir covas, ele já fazia isso, e os zeladores deste cemitério eram os humanos na mansão, Daribedor e os outros.

Se tivesse que especular, talvez um guarda sepulcral estivesse encarregado com a proteção do cemitério contra ladrões ou pessoas tentando furtar as coisas sob os túmulos. Mas mesmo que pudesse dizer com certeza que este era o caso, ela não parecia ser a pessoa certa para algo tão violento. Porém, ainda que suas palavras parecessem ser algo de outro mundo, aos olhos de Muoru, ela era bem normal e não parecia ser forte… bem, talvez fosse difícil dizer que a aparência dela era apenas normal.

De qualquer forma, talvez pudesse estar fazendo uma busca pelo cemitério esta noite. Bem, pelo menos foi o que Muoru pensou. Toda noite, a garota parecia estar patrulhando a área ou algo do tipo, algo que deveria ser levado em consideração em seus planos quando fosse fugir. E, por esta razão, ele começou a checar se Mélia estava lá ou não.

Mas conforme avançava no cemitério, foi capaz de ver pessoas se reunindo ao longe. Havia muitos homens se reunindo, em grande número, ao redor da cova que abriu no dia anterior.

“Acho que estão realizando um enterro.”

Entretanto, de longe…, não parecia ser um evento melancólico. Ainda que fosse um enterro, Muoru não sentiu nem um pouco de tristeza, a qual devia ser natural em tal ocasião. Não havia nenhum lamento ou choro.

Quando tentou se aproximar mais, viu que as pessoas estavam de luto, usando roupas e ternos pretos, e… o rosto delas estava coberto por máscaras brancas. Elas não possuíam expressão alguma, exceto pela área dos olhos, onde podia-se ver as fendas semicerradas. Eram muito parecidas com máscaras de morte. E, ainda que o físico das pessoas fosse diferente, todas as máscaras eram idênticas.

“Que tipo de evento é este? Não acredito que possa ser um baile de máscaras em um cemitério”, pensou Muoru. Claro, o garoto toupeira nunca participou de um baile desses.

“Talvez seja falta de educação mostrar o rosto ou algo do tipo…?”

 Ainda que tivesse dúvidas sobre o motivo, o garoto se curvou ligeiramente para as pessoas que pareciam tê-lo notado e continuou se aproximando… foi então que viu algo estranho.

No meio da gigantesca cova que a garota havia o enterrado pela metade ontem, neste exato momento… havia a cabeça gigantesca de um monstro.

Quando seus olhos encontraram tal cena, ele entendeu na hora o que era aquilo. Claro, isso era compreensível. Seja o que for, era algo fora de seu conhecimento comum. Com pressa, esfregou os olhos, rezando para que aquilo fosse uma alucinação. Então, abriu-os mais uma vez.

Então, conseguiu ver seu rosto refletido nos gigantescos olhos da criatura, os quais tinham o tamanho da cabeça de um humano.

Agora não havia mais dúvida, a coisa sendo enterrada na cova era a cabeça de um monstro gigantesco vindo de outro mundo. Não, para ser mais preciso, era um monstro gigantesco e colossal, cujo o corpo era composto por sua enorme cabeça. O mais inacreditável era que, sob a mandíbula do monstro, a qual era coberta por pelos e onde, se fosse um humano, seria o pescoço, havia um corpo de lagarto crescendo. Comparado à enormidade de sua cabeça, seu corpo de lagarto era extremamente pequeno, mas mesmo assim, parecia ter músculos fortes e garras de aparência perigosa.

O corpo da criatura havia sido perfurado por lanças, e sua mandíbula e lados foram cobertos e amarrados com arame farpado. O monstro não tinha como se mover. Mas ainda assim, sua aparência deixou Muoru com um medo extraordinário. Ele não acreditava que aquela coisa era realmente uma cabeça. Mesmo agora, teve a sensação de que, caso suas restrições fossem retiradas, saltaria direto em sua direção.

— …

Uma voz estranha saiu de sua garganta, mas no fim, recobrou sua compostura. Suor frio estava jorrando de seu corpo, o centro de seu rosto estava quente, como se estivesse queimando. Seus joelhos se chocavam enquanto tremia. Não sabia para o que estava olhando, mas tinha noção de que uma criatura inacreditavelmente perigosa como essa não era algo que humanos encontravam no dia a dia.

Buscando ajuda, olhou para as pessoas próximas… mas os homens mascarados, parados um ao lado do outro em fila, pareciam estar cercados por uma barreira negra, evitando que Muoru olhasse diretamente nos olhos deles. Daquela fila, uma pessoa deu um passo à frente e se aproximou do garoto.

— Bem, mãos na massa — ordenou uma voz abafada, vinda de trás da máscara.

Sem entender o que o homem queria dizer, Muoru o encarou de volta. Então, lembrou-se que estava segurando a pá em sua mão esquerda com força.

— Rápido! — disse com uma voz irritada o homem baixinho e mascarado. — Se apresse e enterre-o!

Muoru fincou sua pá nos montes de terra que havia feito anteriormente e começou a jogar a terra dentro do buraco freneticamente. Ele não via suas mãos ou corpo… a única coisa em sua vista era o monstro ferido.

“O que… é isso? O que diabos… é isso?”

Ele não havia ouvido falar de uma existência dessas, apenas em histórias. Aquilo tinha uma forma contorcida e distorcida, ignorando as leis e padrões deste mundo. Por exemplo, sua mandíbula provavelmente poderia comer uma cabeça igual à de Muoru com uma bocada. Apenas um décimo de sua aparência externa já era diabólico ao extremo, e, certamente, adoraria aproveitar o sabor de humanos.

Embora estivesse usando o movimento que devia estar acostumado, pois o fizera várias vezes, já estava ficando sem fôlego. Enquanto o garoto respirava de forma rasa e irregular, algo parecia ter tomado conta de sua mão, fazendo com que não parasse. Não havia distinção entre branco e preto nos olhos do monstro, apenas a cor opaca da cólera. Mas o mais notável era que, ao redor deles, havia muitos outros menores.

E agora, o garoto sentiu que estavam voltados para ele… sem exceções.

Sentindo-se parcialmente espantado, continuou seu trabalho. Quando terminou a última pazada, o solo parecia estar igual à área ao redor. Ninguém jamais pensaria que um monstro daqueles estava enterrado ali.

De repente, parecia que o cemitério havia se expandido, aumentando de tamanho.

“Não pode ser… criaturas como essa são a única coisa enterrada aqui? Sob essas lápides, há apenas cadáveres de monstros como esse?”

Embora suas perguntas repletas de medo corressem sobre sua cabeça, parecia que não havia ninguém para respondê-las. Do grupo de homens mascarados, um se moveu em direção ao local onde Muoru enterrou a coisa gigante com uma cabeça que tinha o dobro do tamanho da sua. O homem colocou uma lápide em forma de cruz que carregava no ombro, no mesmo instante, ele ouviu um gemido emitido do chão.

Parecia que os mascarados sentiam que não era necessário oferecer coisas como escrituras ou oferendas ao monstro e, assim, observaram em silêncio até que a lápide fosse colocada. Quando tudo ficou pronto, partiram.

Na distância, Muoru conseguiu ouvir um fraco som de exaustão sendo expelido de um veículo grande na direção da entrada do cemitério. Mas o som logo desapareceu, deixando-o completamente sozinho e encarando o chão em um estado de choque semelhante ao de quando estava abrindo esta cova.

Embora sentisse que estava em um pesadelo, parecia não conseguir acordar, não importava quanto tempo passasse.

“Isso é… verdade? Uma coisa dessas?”

Muoru precisava que alguém batesse em seu ombro e dissesse que era apenas uma piada. Mas mesmo se esperasse o sol desaparecer sob o dossel das árvores, ninguém apareceria.

Sua cabeça fervia e ele não conseguia pensar em nada na hora. Tudo isso era muito estranho.

Se tentasse pensar com calma…, esse tipo de monstro provavelmente não existia. “Sim, isso mesmo, talvez eu devesse cavar.” Se cavasse ali mais uma vez, com certeza, nada sairia. Tudo não passou de uma alucinação.

O garoto pegou sua pá e cravou-a no chão. No entanto, quando levantou o primeiro amontoado de terra… sua mão parou e seu ânimo desapareceu. Se tentasse expressar isso com palavras, teria dito que era um absurdo se sentir desta forma.

“Não importa o que está enterrado aqui, quando escurecer, não serei capaz de enxergar nada mesmo.”

Com a força sendo drenada de sua mão, soltou o cabo e a terra se espalhou sobre o chão.

“Será que devo voltar…? Para onde…?”

Era possível ouvir o som de seus dentes rangendo. Voltar? Ele era um prisioneiro. Este era o lugar onde estava preso, um escravo forçado a trabalhar. Não era possível sair dali. E mesmo que tentasse, não haveria para onde voltar. Supôs que a cama no estábulo acabado e em ruinas era o único bônus neste cemitério, mas fora isso, para onde realmente poderia ir?

“Por que estou hesitando? Vamos, mova-se…”

Sua perna direita parecia muito pesada, mas conseguiu dar um passo à frente. Porém, seus dedos não estavam apontando para o estábulo, eles apontavam em direção à entrada do cemitério. E depois de se forçar a dar o primeiro passo, o próximo foi muito mais fácil.

Ele largou a porcaria da pá e, com toda a energia que tinha, começou a correr como se estivesse fugindo de um campo militar totalmente destruído.

Embora não tivesse nenhum destino ou plano em mente, e mesmo que pudesse se ferir, evitou todos esses pensamentos e, com uma naturalidade imprudente, correu, correu e correu. Só sabia que cada passo o distanciava pouco a pouco daquele monstro.

Correr com toda sua energia não era agradável. Porém, apesar da profunda escuridão e a luz fraca do luar, realmente sentiu como se o mundo estivesse ficando cada vez mais brilhante, como se o sol estivesse nascendo logo à sua frente.

Mas logo percebeu que a esperança de escapar não passava de uma ilusão.

Não havia avançado muito, na verdade, nem mesmo saiu do cemitério, quando sentiu um tipo de vento se aproximando por trás. A única coisa que o garoto imaginou foi o monstro com a cabeça gigantesca, o qual saiu tranquilamente de sua cova e estava atrás dele.

O medo trouxe-o de volta à realidade e, em resposta, levou seu corpo aos limites e disparou. Era como se fosse um herbívoro fugindo de um carnívoro, porém, já estava pateticamente ficando sem ar. Visto que a especialidade de toupeiras era cavar buracos, sua capacidade de corrida era baixa até demais.

 Então, sentindo que a perseguição chegaria ao fim de uma forma ou de outra, Muoru juntou toda a coragem que tinha e se virou.

E, sem dúvidas, uma criatura sombria estava atrás dele. Porém, não chegava perto da que enterrou mais cedo.

Ao invés disso, ela rapidamente movia seus membros e sua cauda como se fosse um espanador de pó… Então, a perna direita de Muoru se contorceu tanto que sentia como se estivesse pegando fogo.

A criatura passou por ele com ímpeto, fazendo que a gravidade puxasse Muoru para baixo. Ele colapsou enquanto tentava acertar um golpe.

— Ugh… maldito cachorro!!

Muoru estendeu seu braço em uma tentativa de quebrar o pescoço do cachorro, o qual mordia sua coxa e foi responsável por levá-lo ao chão. Entretanto, no instante em que tocou a pelugem preta do mesmo, seu mundo foi virado de cabeça para baixo mais uma vez. Quando estava aprendendo artes marciais no exército, precisou aprender como ser derrubado pelo seu instrutor sem se machucar. Mas, quando o cachorro o forçou para baixo, não conseguiu fazer nada e acabou beijando o chão. Uma dor estranha e fraca o atingiu quando seu nariz tocou o solo. Tentando aguentar a dor, cerrou os punhos e pensou, “vou quebrar o crânio deste cachorro com minha perna”.

— Dephen, pare!

A voz veio de longe.

Foi a voz firme e séria de uma jovem mulher.

Os movimentos do cachorro pararam. Ele retirou a força de sua mandíbula, restando apenas um som úmido e de sucção à medida que suas presas saíam da coxa do garoto. Um líquido vermelho preencheu a superfície e, depois de alguns segundos, sangue fluiu livremente do vaso sanguíneo machucado.

Quando viu que o cachorro não voltaria a atacá-lo novamente, Muoru observou seu ferimento repugnante. Sua calça de linho foi rasgada como papel e, sob ela, conseguia ver buracos em sua perna. Ao olhar para o cachorro, viu carne fresca pendurada em suas presas. Pelo fato de estar repleto de adrenalina, não sentia nada além de um formigamento; no entanto, sabia que uma ferida suja igual a essa doeria bastante depois.

— Droga — murmurou o garoto.

— Muoru?

A garota de capuz escuro foi ao lado do cachorro para confirmar sua identidade. E, ainda que não fosse intenção dele, eles estavam em posições onde ela o olhava de cima, da mesma forma que durante a noite passada.

— Está doendo…?

A garota olhou para a perna direita encharcada de sangue sem vacilar.

Muoru olhou de volta para seu ferimento em silêncio, se perguntando sobre o que ela pensaria dele por não responder. Por um tempo, a garota ficou parada ao lado do garoto, mas, no fim, como se falasse para si mesma, suspirou.

— Não gosto da dor — ela murmurou.

Com um salto, Muoru ficou sobre um pé.

O rosto da garota tinha uma expressão levemente perplexa. Além do ferimento dele, ela também percebeu que o estado de Muoru estava diferente do de ontem.

Muoru encarou ferozmente a garota preocupada. E, em resposta, ela ficou inquieta, o olhando com hostilidade nos olhos, como se ele fosse uma fera ferida… “é realmente hostilidade, ou medo?”

— Você disse que era a guarda sepulcral deste lugar — disse Muoru com um tom ameaçador —, então você não sabe o que está enterrado sob este solo? — Enquanto gritava, apontava para o chão.

As emoções estavam fervendo internamente, e o medo que sentia daquele monstro misterioso havia travado seus pensamentos. Também conseguia sentir a dor forte em sua perna direita, tudo isso acabou com seu raciocínio e comportamento calmo.

Mas ainda assim, sabia que a raiva para com ela era apenas um desabafo e não fazia sentido, mesmo assim, a garota continuou o encarando com olhos tão claros quanto um lago. Ele não fazia ideia se ela podia ou não mostrar outra expressão.

No entanto, aquela beleza e transparência o irritava.

— O que era aquilo, me diga!? Ou você é amiga daquela coisa…?

Como se fosse bater nela, Muoru esticou os braços e segurou-a pela lapela… melhor, tentou. Justo quando as grandes mãos do garoto a tocaram, ela imediatamente caiu no chão com um grito fraco, — Ah.

Não houve resistência, foi como enfiar a mão na água.

Ela caiu na hora. Mas como Muoru estava apoiado sobre um pé, para que pudesse proteger seu ferimento, quando ela caiu do nada, ele também perdeu o equilíbrio. Seus joelhos atingiram o chão e, então, acabou deitado de bruços, exatamente sobre o corpo da garota.

Era como se tivesse tentado derrubá-la…

Quando corpo a corpo, Muoru finalmente teve certeza de que a garota tinha um corpo, peso, cheiro humano… e pele quente. Ela piscava como se não soubesse o que havia acabado de acontecer. E, como ele estava sobre ela, o corpo dos dois se tocavam a partir dos cotovelos até os dedos, ela observava diretamente os olhos dele.

 Quanto a Muoru, ele congelou, como se fosse uma criança em choque por ter derrubado um prato no piso. Esta não era sua intenção. Foi um acidente…, mas era provável que ainda havia a machucado. Ao pensar nisso, finalmente voltou aos seus sentidos.

— Você tem o cheiro do sol… — sussurrou a garota bem ao lado de sua bochecha, completamente coberta pelo corpo do garoto.

Apressadamente, ele se afastou do corpo dela.

— Eu… eu sinto muito. Você bateu a cabeça ou algo do tipo? — Esquecendo-se da atitude arrogante que mostrou anteriormente, as palavras saíram de sua boca de repente. Suas emoções sobrecarregadas pareciam ter voltado ao normal.

Pensou em tentar ajudar a garota a se levantar, mas quando tentou levantar seu próprio corpo, descobriu que não conseguia. Havia esquecido do ferimento em sua perna direita, mas então, ela ficou mais pesada e uma dor severa disparou pelo seu corpo até chegar ao centro de sua cabeça.

Ele conseguiu fazer com que seu corpo ficasse agachado, mas ainda foi incapaz de conter o gemido de dor. Por um momento, não conseguiu pensar direito e a dor tomava conta de todos os outros sentidos. Até que passasse, não havia nada que pudesse fazer a não ser ficar parado e esperar. Fechou bem os olhos, cerrou os dentes e, sem movimentar-se, resistiu à dor em silêncio.

Depois de um tempo, levantou seu rosto suado, mas Mélia já havia desaparecido.

— Bem, não é de admirar.

Depois do que fez, fazia sentido ela se afastar dele. Ele provavelmente teria se desculpado se ainda não estivesse zangado com aquele maldito cachorro…, porém… apesar de estar pagando pelos seus erros, por alguma razão, um gosto amargo tomou conta de sua boca. Suas ações fizeram com que se arrependesse e se sentisse culpado por sua imprudência com Mélia.

 Ao tentar estancar o sangramento de suas veias rompidas, Muoru checou novamente a condição de sua coxa.

A perna direita de sua calça foi completamente rasgada e o tecido estava encharcado de sangue. Ele conseguia ver as terríveis marcas de dentes em sua carne. Porém, felizmente, mesmo que as marcas de mordida fossem profundas, não parecia que alguma de suas artérias principais, ossos ou nervos foram tocados…, no entanto, um desconforto tomou conta dele. Ao ver a mandíbula forte do cachorro, soube que, caso tivesse usado toda sua força, provavelmente teria sido fácil arrancar sua coxa.

Justo quando pensou nisso, virou a cabeça e viu a besta preta sentada de forma tranquila, o cheiro de sangue não o atiçou, nem um pouco. Era como se não estivessem brigando agora há pouco. Os cantos da boca do garoto formaram um leve sorriso.

“Haha… então você pegou leve comigo.”

Mesmo que tenha sido apenas uma piada quando Daribedor disse que o cachorro era seu “caçador superior”, Muoru teve que admitir, o título fazia jus ao animal. Ele realmente era um estorvo, e era mais de cem vezes melhor que um guarda humano, o qual cochilava às vezes. E mesmo que suas ações tenham sido ou não um bom ensaio de fuga, o preço pago fez com que fizesse uma careta.

No entanto…, se deixasse o ferimento como estava, com certeza iria infeccionar. Mesmo se usasse um curativo limpo ou um desinfetante, precisaria de pelo menos algum tipo de álcool, então poderia limpar o ferimento e sua boca. Mas era improvável que a velha avarenta entregaria essas coisas a um prisioneiro que falhou em sua tentativa de fuga.

E, por isso, seu futuro parecia miserável. Especialmente quando sentiu que, caso voltasse ao estábulo em seu estado atual, não passaria apenas uma noite se dormisse.

Enquanto ainda estava ali, pensando em desistir, viu uma luz laranja do outro lado do cemitério, a qual balançava de um lado para outro lentamente e se aproximava.

Se fosse a mesma pessoa de algumas horas atrás, poderia ter se enganado feio, achando que fosse uma alma penada ou algo do tipo…

Mas não se assustou como antes. Esta com certeza era uma situação onde ficar assustado era benéfico, mas, para onde foi seu medo?

Bem… ele estava com medo de algo muito maior que fantasmas e aparições… Esse algo estava enterrado logo abaixo de seus pés.

Esperou mais tempo e viu que a luz vinha de um lampião quadrado. “É mesmo. Não faz sentido uma luz de cor quente pertencer a uma alma penada.”

À medida que a lampião se aproximava, viu-se que estava sendo segurada pela mão esquerda de um humano de manto negro. Surpreendentemente, era Mélia Mass Grave. A garota realmente não se movia rápido, mas vê-la caminhando era o suficiente para fazê-lo ficar ofegante. Ainda assim, talvez ele estivesse se preocupando por nada; era quase certo que sua falta de ar se dava pelo fato de estar fora de forma.

Na outra mão de Mélia, havia uma caixinha de madeira.

Depois de um breve silêncio, a garota agachou-se ao lado do garoto, colocou o lampião no chão e estendeu a caixa. Antes mesmo de pegá-la, Muoru conseguiu sentir o fraco cheiro de uma solução desinfetante.

Quando pegou, percebeu que se sentia nervoso por aplicar a solução antisséptica em sua ferida.

Desde que chegou, ela permaneceu em silêncio, e Muoru não conseguia saber que tipo de emoção estava presente em seus grandes olhos… Olhos que o encaravam sem parar. Depois de entregar os suprimentos médicos, ela não tentou correr ou algo do tipo, tampouco mostrou sinais de medo em seu rosto. E por estar agachada, seu manto curvou-se ligeiramente para cima, , com uma pele tão lisa quanto porcelana.

— Não tem problema se eu usar isso?

Ainda que fosse engraçado se ela dissesse não, Muoru pensou ser melhor perguntar. A garota afirmou com um aceno de cabeça.

— Obrigado pela ajuda.

Dentro da caixa havia um conjunto completo de produtos, como gazes, algodão absorvente, desinfetante, compressas e coisas para aquecer o ferimento, tudo fornecido metodicamente. E nenhum deles possuía traços de uso, mostrando que ainda eram novos.

Murou limpou novamente o sangue com o tecido da perna direita da calça, então, aplicou o algodão encharcado de desinfetante. O álcool estimulou seus nervos, fazendo com que sentisse uma dor intensa.

Mélia estava em silêncio, encarando-o sem parar, como se estivesse olhando para uma rara apresentação teatral ou algo do tipo.

Por algum motivo, ele não conseguia se acalmar e, como resultado, a mão que aplicava a atadura tremia de forma desajeitada. Além disso, não gostava do fato de ela conseguir ouvir sua respiração frenética.

Depois que conseguiu terminar o próprio tratamento, devolveu a caixa de madeira a Mélia, então, ela se levantou.

Com um tom baixinho, disse:

— Não sou A Escuridão.

— … A… esc…?

O garoto tentou repetir a frase estranha que ela usou, mas lembrou-se repentinamente das palavras que dissera no momento em que a derrubou… “Você é amiga daquela coisa?”.

No instante seguinte, como se o combustível tivesse sido cortado, houve um whoosh e a chama desapareceu. Já que seus olhos haviam se acostumado com a luz, quando foi consumido pela escuridão, acabou perdendo a garota de vista.

Então, antes que Muoru fosse capaz de dizer qualquer coisa, de algum lugar, ouviu-a dizer:

— Adeus.

Aquela voz monótona soou terrivelmente solitária. Mas essa impressão foi apenas em engano de sua parte… ou era justamente o que ele queria ouvir…?

Seja o que for, o garoto foi deixado sozinho e não havia ninguém para quem pudesse perguntar.

 

CAPÍTULO 4-1

Mouro pensou no passado por alguns instantes…

Ele estava no meio de uma câmara no campo de detenção de Rakasand. Foi o dia em que recebeu o veredito de culpado, por volta da época em que esperava para que as pessoas atrás dele rejeitassem sua sentença.

Como havia dito antes, a grande maioria das pessoas culpadas era forçada a trabalhar. Mas, claro, sempre havia exceções, por exemplo, no caso de um prisioneiro ter armado o assassinato de um nobre e não ter um corpo adequado para trabalhos forçados.

Aquele homem não tinha um braço direito, ombro direito e uma orelha direita. Era conhecido como Bombardeiro Ferroviário e estava preso na cela de frente à de Muoru. Porém, Muoru não sabia seu nome. Assim como passou a ser chamado de Prisioneiro 5722, aquele homem teve seu nome retirado e agora era o Preso do Corredor da Morte 367.

Alojado no mesmo hospital que suas vítimas, por algum milagre, ele sobreviveu, mas perdeu grande parte do lado direito de seu tronco. E como resultado, foi fácil concluir quem era o culpado.

Murou lembrou-se do homem lhe dizendo com um rosto sorridente, dominado pela sua dor, que se fosse morrer ali mesmo e naquele estado, seria uma benção.

Ainda que o garoto não soubesse dizer se o homem já tinha feito quarenta anos ou não, os dois não tinham o mesmo corpo robusto. E mesmo que tenha sofrido aqueles ferimentos graves, reclamava sem parar sobre a comida e pedia bebidas alcoólicas da mesma forma que os outros prisioneiros.

Devido à disposição dos corredores, o campo de detenção estava terrivelmente barulhento, mas a voz daquele prisioneiro ainda agitava o local. Seu estado de espírito e mente pareciam estar saudáveis… até o momento em que sua sentença foi anunciada.

Três dias depois… um dos carcereiros sorridentes de Muoru disse que, após ver o estado do Preso do Corredor da Morte, pensou que o homem parecia ter se tornado uma pessoa totalmente diferente.

O cabelo restante em seu lado esquerdo havia ficado branco, parecia que havia envelhecido mais de vinte anos de uma só vez. Se alguém tentasse conversar com ele, acabaria não recebendo qualquer tipo de resposta normal. E parecia que não sentia mais alegria ao comer.

As pessoas nas celas ao lado da dele tremiam de nojo ao verem-no beliscando os próprios ferimentos.

Assim que isso aconteceu, o Prisioneiro 5722 foi capaz de ver essa mudança acontecer diante de seus olhos.

Quando decidiu passar pelo bombardeiro suicida, já devia estar preparado para morrer. E por isso, devia ter assumido que morreria caso tudo ocorresse de acordo, mas por causa do carma ou de seu destino, escapou por pouco da morte. Mas agora, estava sendo atormentado pelo medo da morte eminente, aproximando-se com a rapidez dos ponteiros. Mesmo assim, na manhã do terceiro dia, algo estranho aconteceu. Quando Muoru acordou, o Preso do Corredor da Morte 367 levantou uma mão e o cumprimentou com um grande sorriso.

Ainda que a brancura de seu cabelo e as feridas que beliscou estivessem iguais, seu comportamento parecia o mesmo de antes da sentença de morte. E, em seus olhos, não havia sinal de loucura… pelo contrário, parecia que havia encontrado uma certa paz.

Então, começou a se perguntar se havia algum tipo de mudança psicológica dentro da mente do Preso do Corredor da Morte 367 durante esses três dias…, porém, não havia como saber, da mesma forma como não haveria no futuro.

Os corredores do campo de detenção transmitiam sons de forma primorosa. Provavelmente, isso foi feito de propósito para um momento como este.

Muoru ouviu claramente o som do tiro que acabou com a vida do Preso do Corredor da Morte 367, como se realmente estivesse tentando ouvir.

A alvorada limpou a escuridão, as inúmeras lápides e árvores produziram sombras longas no chão. O orvalho da manhã brilhava, como se decorasse as ervas daninhas sem nome com a habilidade de um perito em joias.

Mesmo que Muoru estivesse ciente das estranhezas do cemitério, a cena da manhã não mudou nem um pouco. O mesmo podia ser dito sobre sua vida. A velhota o acordava no chute, então, ele enchia o estômago com uma comida merreca, depois disso, começava a trabalhar no cemitério, abrindo covas.

No entanto, desde ontem, seu trabalho continuou quase o mesmo.

A ponta da pá bateu em algo duro…

Quando removeu a terra, os gigantescos olhos de cor amarela apareceram, encarando o garoto que havia perturbado seu sono.

Esta alucinação veio do nada, e quem olhasse de longe veria apenas um garoto com braços musculosos que havia congelado repentinamente. Mas, para Muoru, cada vez que via aquela alucinação, suor frio começava a escorrer pelo seu corpo. Este medo não era algo engraçado.

Ainda assim, sua mente tentava entender o que era aquela coisa de ontem. Porém, da mesma forma que era no campo de detenção, como esperado, não haveria ninguém para lhe dar uma dica ou algo do tipo, talvez assim ele pararia de ver a mesma ilusão no chão… A este ritmo, logo a criatura começaria a aparecer em seus sonhos.

E após rir para si mesmo várias vezes de maneira autodepreciativa, abruptamente…

— Yo, coveiro prisioneiro. — Uma voz desconhecida o chamou.

Muoru virou rapidamente, como se fosse um peixe atingido por uma pedra.

A cerca de dez passos atrás dele, um garoto baixinho estava sentado em uma lápide. Ele não reconheceu o garoto, e o fato de essa pessoa tê-lo pegado de surpresa o deixou incomodado… “Espera, garoto? Não, garota…?” Havia incerteza em sua mente. O rosto e o corpo dele ainda eram o de uma criança, sem possuir qualquer característica sexual para diferenciar seu sexo.

Ele tinha um cabelo preto chanel que batia no queixo, além disso, usava um casaco amarelo e infantil. Pernas esbeltas saiam de seu calção xadrez e, apesar de não usar meias, por alguma razão, usava botas militares.

— Quem é você? — perguntou Muoru, sem tentar esconder sua suspeita.

— Nossa, que indelicadeza ao falar. Você provavelmente nos viu ontem, não é? — Ele inclinou a cabeça na direção de Muoru e levantou os lábios com força, mostrando um sorriso amigável. — O que estou dizendo? É claro que não me reconheceria assim. Aqui… olhe.

O indivíduo enfiou as mãos no bolso do casaco… e pegou uma máscara branca. Era loucura acreditar que não se lembraria daquilo.

Calafrios percorreram as costas de Muoru. A memória que veio à sua mente era como um pesadelo. Apesar de haver uma criança adorável diante de seus olhos, não conseguia ver nada além do rosto daquela criatura gigantesca.

“Isso, lembre-se… Embora eu estivesse abrindo covas, como não ouvi os sons de um calçado pesado como esse?”

Se o indivíduo viu o rosto de Muoru enrijecer, fingiu não ter visto e continuou:

— É bom que você tenha completado a primeira parte de seu trabalho, mas descanse um pouco. Se estiver tudo bem por você, o que acha de tomarmos algo?

Estranhamente, enquanto falava de uma maneira madura, guardou a máscara em seu bolso e pegou uma garrafa de licor. O líquido de cor âmbar estava pela metade na garrafa.

Sem dizer nada, Muoru voltou a cavar. Ele não achava que havia razões para se envolver com essa pessoa.

— O quê? Está me ignorando? Sim, está me ignorando. Não acredito que, ao ver seu sofrimento, cogitei a ideia de te contar sobre a coisa que viu ontem.

Enquanto considerava se deixava ou não esta oportunidade passar, o baixinho levantou o queixo, como se estivesse ofendido, e sentou-se de pernas cruzadas em cima de uma das lápides. A garrafa de licor estava em sua boca e, então, tirou as mãos, segurando a garrafa com apenas os lábios e dentes conforme bebia o líquido.

E, de vez em quando, seus olhos viravam em sua direção.

Decepcionado, Muoru suspirou. Este pirralho queria conversar e não havia nada que pudesse fazer. E mesmo agora, independentemente se queria ou não saber mais sobre aquelas criaturas, isso não significava que desejava ser questionado sobre elas. Porém…

— Se me contar qualquer coisa, algo de bom vai te acontecer, tipo, você será recompensado ou algo assim?

Esta pergunta servia para ver o quão sério ele estava sobre contar a verdade sobre a situação. E, embora houvesse muita coisa que não sabia sobre os monstros, essa pessoa era extremamente suspeita. Para Muoru, não importava quantos monstros existissem no mundo, ainda não era capaz de aguentar alguém que coloca a bunda sobre uma lápide.

Ele removeu a garrafa de licor da boca e, com um rosto levemente vermelho, disse com uma voz chocada:

— Bem…, você é uma toupeira profundamente cética, não é? Você come minhocas fritas ou algo do tipo?

Murou respondeu inexpressivamente:

— Sopa salgada já está de bom tamanho para mim.

Ao ouvir sua resposta, a pessoa sobre a lápide suspirou profundamente, mas logo recobrou a compostura com um sorriso.

— Aham, coisas boas vão acontecer — disse.

— Então existia algo.

— Certo, mas quanto ao porquê… — Ele saltou, ficando de pé na lápide com suas pernas e mãos bem abertas. — Bem, por enquanto, vamos só dizer que sou muito teimoso, assim como você; simplesmente amo plantar meias verdades na mente das pessoas.

Então, como se estivesse impressionado com o próprio discurso, a criança, silenciosamente, olhou para ele de cima da lápide. No entanto, a altura dessa pessoa não chegava perto da metade da de Muoru. Por isso, mesmo com a altura extra da lápide, mal conseguia o olhar de cima, agora, Muoru era apenas um pouquinho mais baixo.

Inconscientemente, um riso escapou da boca de Muoru, que tentou encobrir isso com um bocejo.

“Bem, acho que isso é o suficiente para fazê-lo falar.”

Agora, se ia acreditar ou não já era outra história.

— Tudo bem, vamos conversar sobre o que aconteceu ou não… ah, antes disso… — Muoru cravou a pá no chão, usando-a como uma muleta para tirar o peso de sua perna direita machucada. Então, perguntou: — Como se chama?

O indivíduo ajeitou a franja de seu corte de cabelo chanel, mostrando o rosto a Muoru.

— Me chamo Corvo — disse —, veja o meu cabelo, não parece ter a cor das asas de um corvo?

Muoru revirou os olhos e sorriu amargamente. Ele não sentiu a necessidade de retorquir. Não importava o quanto pensasse, “Corvo” não era seu nome verdadeiro.

Depois de sentar-se novamente na lápide, o autoproclamado “Corvo” perguntou de volta:

— E quanto a você?

Por um momento, o garoto não soube o que dizer. Honestamente, não tinha intenção de dizer seu nome verdadeiro. Então, repentinamente, o nome Corvo fez com que pensasse em algo.

— Pode me chamar de Toupeira — respondeu Muoru.

— Bom, então somos o Corvo e a Toupeira. — Corvo riu com alegria. — Ei, Toupeira-kun. Gostei de você. Por isso, vamos ser amigos. O que acha?

— Passo. — Muoru respondeu na mesma hora.

— Sério? Que pena. — Corvo gritou sem mostrar traços de decepção em sua voz. Então, sem aviso algum, falou misteriosamente: — 30.270.000. Você sabe que número é esse?

— Hmmmm…

Por ter pensado que só ouviria sobre a verdadeira natureza dos monstros, Muoru foi pego de surpresa, por este motivo, parou para pensar um pouco. Mas no fim, não sabia.

— Me pergunto se é a quantia em minha carteira — disse, tentando dizer algo engraçado. Porém, não existia carteira, quem dirá dinheiro.

Corvo anunciou alegremente a resposta correta:

— É a população atual deste país, de acordo com o censo populacional da Agência de Assuntos Gerais de Filbard. Não sabia disso?

Não tinha como saber. Melhor dizendo, fora o número de soldados aliados e inimigos, a população do país nunca passou pela sua mente. Dessa forma, não sabia dizer se era grande ou pequena. Além disso, ouvir essas palavras da boca de alguém que parecia uma criança fez com que se sentisse desconfortável.

— Então, a população de cem anos atrás era cerca de 2.600.000. Bem, devido ao tempo que faz, é difícil saber o número exato. Ei, não acha que é um pouco incrível? Em apenas cem anos a população aumentou em mais de dez vezes. Por que acha que esse crescimento fora do comum aconteceu?

Muoru ficou um pouco mais de tempo pensando na pergunta em comparação a antes. Embora não houvesse provas para apoiar o valor dado por Corvo, no momento, preferiu assumir que era verdade. Se a população realmente aumentou mais de dez vezes, provavelmente haveria um fator envolvido. No caso de formigas, haveria uma rainha, a qual poderia criar uma colônia, mas isso não era simples para humanos.

Ele estava tendo dificuldade para conceituar o número que parecia gigantesco na história de Corvo, por isso, tentou reduzir para uma escala na qual conseguisse imaginar. Primeiro, imaginou uma vila com cem pessoas. Que tipo de fator seria o suficiente para aumentar a população para mil em cem anos?

Muoru respondeu:

— A quantidade de comida distribuída aumentou?

Para humanos, não importava o que fizessem, a maior prioridade sempre era comida. Como um carro que não pode andar sem gasolina, se um humano não se alimentasse direito, não seria capaz de se mover. Por isso, se a quantidade de pessoas aumentava, mais comida seria necessária. Não, não era a quantidade de comida disponível, mas sim a habilidade de cultivar alimento que determinava o tamanho de uma população?

Corvo assentiu com a cabeça em resposta à sua pergunta anterior.

— Aham, nada mal. Dez pontos — riu. — Claro, uma pontuação perfeita é cem.

— Isso não é nada mal.

— Este é um dos motivos. Claro, devido ao melhoramento das sementes e adubo, a produção de alimento de qualidade melhorou. Mas ao mesmo tempo, se a população de fazendeiros aumentasse, a quantidade de terra cultivada também expandiria. Se este fosse o caso, a população geral não poderia aumentar dez vezes mais. Também há vários outros fatores envolvidos. Por isso só ganhou dez pontos.

— Vários? — Muoru pressionou. Não havia ligação alguma com a questão dos monstros, mas a forma habilidosa da narrativa do Corvo o intrigava. Além disso, sentia que fazia muito tempo desde que conversara com alguém de uma maneira tranquila como essa.

No entanto, as palavras seguintes do Corvo eram diferentes de tudo que já ouviu dos mais variados tipos de pessoas que encontrou em sua vida.

— Bem como você disse, devido ao avanço na indústria agrícola, as colheitas aumentaram. Depois, coisas como luzes a gás e eletricidade foram colocadas em prática e aconteceu um aumento nítido no tempo de vida humana. Motores a vapor foram inventados. Por isso, trens e barcos a vapor foram feitos e, com esses avanços, a rede de transportes foi fundada e o deslocamento tornou-se mais rápido. Graças a essas coisas, o número de pessoas talentosas, recursos e deslocamento de informações aumentaram grandemente, e a morte causada pela fome diminuiu…

Muoru estava completamente em silêncio, fazendo com que Corvo perguntasse:

— Está acompanhando?

Pego de surpresa, Muoru balançou a cabeça.

— Bem… se eu lhe desse todos os exemplos possíveis, essa conversa não teria mais fim. Porém, se precisasse juntar todas essas razões em um único fator, diria que foi o desenvolvimento da civilização.

— Civilização… — O garoto repetiu a palavra vaga com suspeitas.

— O desenvolvimento da civilização — continuou o Corvo —, em outras palavras, você poderia dizer que também foi o aumento na qualidade de vida…. Ouça, você provavelmente chama geladeiras de “conveniências da civilização”, né? À medida que se expandiam, através da ganância, humanos foram capazes de gerar um excedente de tempo e espaço para viver. E enquanto isso acontecia, também faziam sexo.

Neste momento, Corvo parou de falar, talvez com o intuito de ver se suas palavras causaram alguma reação no rosto de Muoru. Porém, ele parecia distante e não disse nada. Então, como se estivesse completamente satisfeito, Corvo mostrou um sorriso presunçoso.

— Bem, acho que não preciso dizer que a quantidade de crianças aumentou. E graças aos avanços na medicina, coisas como abortos e natimortos diminuíram nitidamente. Provavelmente estes eventos eram causados porque as pessoas não lavavam as mãos antes de cirurgias, sem contar que não recebiam anestesia ou transfusões de sangue. Por este motivo, o nascimento trazia um risco significante para a vida das mulheres. Claro, com o tempo, coisas como a existência de bactérias foram descobertas com o microscópio, e a pesquisa acerca da imunização avançou, fazendo com que o tempo de vida médio aumentasse em vinte anos.

Enquanto Muoru ouvia o Corvo, o ferimento sob o curativo em sua perna direita doía.

Ele havia esterilizado na noite passada. Mas se Mélia não trouxesse a caixa com suprimentos médicos, seu ferimento teria começado a infeccionar. E, no pior dos casos, morreria de tétano. Mesmo não sendo o melhor aluno na escola, este era um conhecimento comum, que até uma toupeira como ele saberia.

Porém, mais de cem anos atrás, não havia coisas como microscópios, até mesmo médicos não sabiam da existência de bactérias.

Naquela época, muito diferente de hoje, não importa que tipo de ferimento ou doença uma pessoa tivesse, ela poderia facilmente morrer. O fato de que isso não acontecia mais é exatamente o que eles chamam de avanço da civilização.

Entretanto, depois da explicação fluente de Corvo sobre as várias coisas que não sabia, enquanto também resumia o que aconteceu cem anos atrás, Muoru passou a sentir que o milagroso crescimento populacional de dez vezes era improvável.

Lendo os pensamentos do garoto pela cor em seu rosto, Corvo continuou explicando:

— Bem… a questão principal é: a história humana continuou sem parar por muitos milhares de anos, mas por que só depois da passagem dessa era que a civilização começou a avançar repentinamente? Deixa eu refazer a pergunta, por que a civilização foi incapaz de avançar antes da suposta “Idade das Trevas”?

— …

— É simples… Havia algum tipo de obstáculo impedindo a civilização de fazer isso. — Corvo não esperou pela resposta do Toupeira e continuou: — E o culpado está sob seus pés.

Inconscientemente, o garoto baixou o olhar e olhou para seus velhos sapatos sujos de lama e com insetos pretos passando sobre eles.

— Para sua informação, não estou falando destes tatuzinhos — disse o Corvo com uma voz sarcástica.

Com um olhar frio, Muoru chutou o chão e respondeu:

— É como se eles fossem formigas de outro mundo.

Para ser honesto…, ele ficou feliz com o fato de o Corvo ter feito uma piada no meio da conversa.

Não importava quantos enterros fossem feitos, sua mente não poderia aceitar completamente a realidade que parecia destruir todo o conhecimento comum que possuía até agora.

Então, o comportamento alegre de Corvo desapareceu.

— Demônios. Monstros imortais. Pesadelos noturnos. Anfitriões bizarros. A Escuridão. — Um dedo era dobrado para cada nome, e seu rosto mostrava sinais de que estava prestes a vomitar.

— Eles possuem vários nomes, mas todos são considerados a mesma coisa: o pior inimigo da raça humana. Essas coisas não têm aquilo que chamamos de vida. Assim como as palavras sugerem, são mortos-vivos. Mesmo que você corte, queime ou pique em pedacinhos minúsculos, ainda voltam à vida, como se fosse uma piada…

 — Sua cara me diz que não acredita em mim. Talvez seja porque realmente é assustador pensar sobre isso. Mesmo se os membros desses monstros sejam arrancados e jogados para longe, ainda se arrastam pelo chão e voltam para o mesmo lugar. Um espetáculo desses causaria um trauma bem grande, mas tenho certeza de que você ainda verá, pelo menos uma vez.

Muoru inclinou a cabeça e respondeu:

— Bem, fiquei tão chocado que já não consigo mais sonhar… — Talvez não houvesse por que se preocupar, mas algo que Corvo disse incomodou sua curiosidade. Entrando em outro assunto, perguntou: — Então, quanto aos membros, você está me dizendo que o corpo inteiro daquele monstro não é apenas uma cabeça?

— Isso mesmo, existem uma infinidade de formas. Mas tudo o que têm em comum é o desejo de matar humanos. Ah, também odeiam o sol. Felizmente, essas criaturas são completamente incapazes de se moverem sob a luz dele. Quanto ao resto… bem… quanto maior, mais forte. E seguindo esta regra, o monstro de ontem era um bem fortinho.

— O qu… sério?

— Bem, coisas como nomes e aparências não são importantes. Mas o que você precisa se lembrar é que, para os humanos, eles são os piores inimigos… Em outras palavras, podem ser chamados de “inimigos naturais” da humanidade. Essas coisas matam pessoas, mas não os comem. Apenas matam. Entende a diferença?

 Muoru balançou a cabeça, sentindo vergonha. Mesmo se não contasse com a falsa acusação contra ele, quando se tratava de matar, sua personalidade de soldado era inigualável.

Corvo estava pensando nas próximas palavras, então, começou a contar uma história desagradável:

— Por exemplo, ainda que seja difícil, se você conseguisse aprisionar um leão dentro de uma jaula com um grande suprimento de comida, digamos que seja uma toupeira, quando ficasse com fome, não importa o quão duro tentasse resistir, depois de três minutos a toupeira provavelmente seria morta. Enquanto isso, o leão teria feito sua refeição. Caso isso não acontecesse, morreria de fome. Mas e se o leão estivesse cheio? E dentro da mesma jaula tentassem colocar uma toupeira e uma carcaça de cavalo? Certamente, a toupeira não seria morta tão cedo.

— O que está tentando dizer?

— A única razão pela qual carnívoros enfrentam uma tarefa tão problemática quanto caçar, é porque precisam fazer isso para sobreviver. Seguindo essa lógica, se um gato de estimação recebe comida de seu dono, não é improvável que ele vá à casa ao lado para caçar ratos?

 — Humanos… esses monstros provavelmente matam humanos. — disse repentinamente o garoto, inclinando um pouco a cabeça.

— Isso mesmo, mas não é como se tivessem um objetivo específico. — Em algum lugar dentro das palavras do Corvo, havia um pouco de simpatia. — Com certeza há uma grande quantidade de pessoas em nosso mundo que possui um coração cruel e, como resultado, muitos eventos trágicos acontecem. No entanto, provavelmente há algumas pessoas que matam apenas porque querem, né?

— Isso não é loucura? Essas pessoas não são humanas, são monstros.

— Exatamente. Por isso mesmo as coisas sob seus pés são monstros desumanos.

Muoru respondeu com silêncio.

— De qualquer forma, por causa desses desgraçados, os humanos foram incapazes de avançar consistentemente a própria civilização nos últimos mil anos. Mesmo se alguém inventasse algo por acaso, não teria como falar sobre isso ou seria morto antes de compartilhar sua descoberta. Primeiramente, apesar de fazerem tudo o que podiam para sobreviver, os cidadãos comuns eram, de certa forma, limitados quando se tratava do conhecimento sobre essas criaturas. Todos ficavam inquietos e não sabiam em que momento da noite esses demônios apareceriam para matar a todos.

— Porém, quando aqueles dias completamente sombrios passaram, de alguma forma, depois de muito esforço, as pessoas foram capazes de se reunirem e juntarem informações para o futuro.

Muoru tinha uma objeção sobre a última parte, mas permaneceu em silêncio. Parecia que a longa história do Corvo estava prestes a acabar.

— Mudanças na forte relação entre humanos e demônios começaram a acontecer, mas isso foi há trezentos anos. Então, os humanos descobriram por acaso uma forma de derrotar os imortais. E, por causa disso, nos últimos duzentos anos, o mundo começou a florescer de uma forma ou de outra. Na verdade, agora mesmo estamos nos aproximando de uma era de prosperidade nunca vista antes.

A sensação geral de Muoru sobre a história do Corvo era um pouco vaga, ou, talvez, devesse dizer que suas palavras precisavam de tempo para serem digeridas.

Provavelmente isso já era esperado. Para um prisioneiro, que não passava de um jovem garoto e filho de um pobre escultor, humanos, civilização, demônios, inimigos naturais e assim por diante estavam além de sua compreensão. Infelizmente, suas expressões faciais revelavam este fato. Mas antes que o Corvo pudesse perceber sua expressão, ele disse:

— Resumindo… — Muoru tocou a pouca barba. — Pessoas como vocês derrotaram com sucesso aquele monstro. É isso que está tentando dizer?

Corvo sorriu com satisfação.

— Você entendeu mesmo. Hmm, parece que tem um pouco de cérebro, não é apenas músculos.

— Pare de palhaçada. Ah, e a propósito, é verdade que pássaros esquecem de respirar depois de três passos?

— Ei! Isso foi maldade. Além disso, você está enganado.

Enquanto observava o Corvo se sentindo ofendido, não conseguiu ver nada além de características de um jovem. Mas provavelmente não havia razão para pensar que o povo jovem da cidade viria para um lugar desses e teria uma conversa igual a deles. Além do mais, havia aquela máscara. Qual o significado dela?

Entretanto, antes que pudesse perguntar sobre as cidades próximas, Corvo disse:

— Te vejo outra hora. — Foi como se tivesse terminado tudo o que queria conversar.

Como um pássaro levantando voo, o Corvo pulou da lápide e, como uma criança, acenou, então partiu. E desta forma, desapareceu, como se tivesse dissolvido no ar.

O garoto suspirou e apoiou seu queixo no cabo da pá que havia fincado no chão. Enquanto olhava para o pôr do sol pensava nas palavras do Corvo.

Três dias depois do anúncio de que morreria por fuzilamento, Muoru imaginava se havia algum tipo de mudança psicológica na mente do Preso do Corredor da Morte 367. Porém, agora era tarde demais e não havia como saber se era verdade ou não.

Mas Muoru realmente havia descoberto uma coisa ao vê-lo de perto.

Não importa o quão difícil uma tarefa seja, humanos serão capazes de preparar o coração se tiverem tempo o suficiente. Pelo menos foi isso o que o homem conseguiu fazer.

Aos olhos das pessoas fixadas apenas em seu fim, talvez parecesse não ser nada além de complacência inútil.

De qualquer forma, algumas pessoas provavelmente pensariam que, se o indivíduo está prestes a morrer, essa preparação não faria uma diferença considerável.

Entretanto, o prisioneiro caminhou por vontade própria até a área de execução com seu peito estufado orgulhosamente e cabeça erguida, da mesma forma que andava normalmente? Ou foi arrastado aos poucos pelo corredor, se mijando enquanto gritava e chorava… essa gama de possibilidades provava que a preparação poderia realmente fazer uma diferença.

Mas não era preciso dizer que, para Muoru, a situação do Preso do Corredor da Morte 367 era muito mais preferível. Claro, aqueles monstros não eram algo que toupeiras como ele fossem capazes de lidar. Mas mais do que isso, sua inquietação vinha do fato de que não havia nada capaz de os matar.

E a cova não era uma jaula inescapável.

“Isso mesmo… O que devo fazer?”

Esta era a única coisa importante.

Mesmo que soubesse da existência daqueles monstros, como a visão de um cemitério que nunca mudava, apenas saber de coisas como o nome do monstro e sua história provavelmente não mudaria a realidade.

“O que eu faço? O que devo fazer?”

 

CAPÍTULO 4-2

— Pata… — A garota ordenou e, em resposta, o cachorro preto estendeu o antebraço, o qual tinha quase o mesmo tamanho do dela, sobre sua palma branca.

Quando Muoru viu Mélia no cemitério, já estava anoitecendo… não, ele não a viu, ele a encontrou. Este encontro foi diferente da primeira vez, quando estava dentro da cova e era visto de cima por ela, ou da segunda, quando estava fugindo do cachorro. Desta vez, foi algo proposital.

Mesmo que a história do Corvo seja verdade, sua tarefa de abrir covas permanecia a mesma. Para Muoru não havia grandes diferenças entre abrir covas para humanos ou para monstros. E parecia que seu trabalho não mudaria até o fim de sua vida. Isso… não era brincadeira.

“Devo fugir.”

Mas em seu estado atual, sabia que o cachorro, o qual recebia carinho na cabeça, era uma ameaça muito maior que os monstros dentro dos túmulos.

Apenas ver Dephen já fazia com que sua perna doesse. Ainda que tenha sido graças a Mélia o fato de seu ferimento não infeccionar, correr ainda era algo impossível no momento. No entanto, mesmo se fosse capaz disso, os eventos da noite anterior apenas iriam se repetir.

Além do mais, só havia uma saída do cemitério, por isso, caso mantivesse o foco naquela direção, conseguiria fugir em algum momento.  Agora, se pudesse fazer um desejo, pediria por um mapa.

Mas também havia a coleira.

Não a do cachorro preto, mas sim a sua. Recentemente, havia ficado tão acostumado com ela que esqueceu por completo de sua existência, mas ainda assim, precisaria se livrar dela. Mesmo que apenas seu número de prisioneiro estivesse escrito, parecia que ela estava gritando “sou um prisioneiro!” enquanto ele andava. Era óbvio que a polícia militar e os xerifes locais o capturariam para acumularem pontos com seus superiores ou iguais. Porém, da mesma forma, não poderia sair na rua sem cuidado algum, pois as pessoas poderiam denunciá-lo.

Mesmo sabendo que seria ótimo ter a coleira retirada de seu pescoço, as pessoas que a colocavam pareciam estar bem cientes deste fato. Por este motivo, o centro da coleira de couro usava uma fibra especial, chamada de “Fio da Bruxa”. Por centenas de anos, assassinos, vigaristas e pessoas desse tipo normalmente usavam este material para vários propósitos. Era fino, mas extremamente resistente, ao ponto em que até mesmo alicates ou tesouras de alta qualidade não podiam o cortar.

E para piorar a situação, quando estavam falando que sua sentença o condenou a mais de cinco anos de prisão, também disseram que a coleira estava conectada à sua artéria carótida direita. Se qualquer prisioneiro tentasse retirá-la à força, a artéria seria cortada pelo “Fio da Bruxa” como se fosse um ovo cozido, acabando com sua vida. Já que assassinos o usavam como garrote, sua confiabilidade era alta.

Felizmente, em geral, Muoru não estava incomodado com isso, porém, havia alguns prisioneiros que não conseguiam aguentar a ameaça constante à vida, a qual estava presa aos seus vasos sanguíneos…, por isso, acabaram enlouquecendo e arrancando as coleiras. Um dos médicos carecas tentou intimidá-lo durante a cirurgia, dizendo que esta loucura tomou a vida de cinco ou seis pessoas em um ano.

Mas mesmo se a coleira fosse removida com sucesso, ainda se sentiria isolado e impotente.

Sua mãe, pai e irmãos deviam estar vivos, mas isso não significava que poderia voltar para casa. Todavia, mesmo mentindo ao dizer que não queria os ver, já fazia cinco anos que saiu de casa e não sentia saudades do lar ou algo do tipo.

Sobretudo, já que foi negligenciado quando estava sendo criado, não poderia contar com a ajuda deles, pois nunca mostraram qualquer tipo de sentimento amoroso. Mais do que isso, seu retorno ao lar agora, depois de tanto tempo, seria uma inconveniência para sua família, como também, talvez, pensariam que seria melhor nunca o ver novamente pelo resto de suas vidas.

Era estranho, mas não estava muito triste com isso. Isso podia ser devido ao fato de haver muitas coisas mais importantes em que devia pensar. Ou, talvez, poderia simplesmente ser uma pessoa fria. Entretanto, o garoto sabia que havia uma grande diferença se um terceiro se envolvesse ou não.

E o primeiro…, não, o único apoio que tinha era Mélia.

Ela era misteriosa, isso era certo. Até mesmo sua personalidade era vaga. Mas, ontem, havia lhe dado medicamentos e não evitava a área de trabalho dele, mesmo sabendo que era um prisioneiro. Com certeza não havia chance de ela ser uma pessoa ruim.

Além disso, se conseguisse informações da garota conhecida como guarda sepulcral, e se a mesma fosse capaz de cooperar com ele, um pouco que seja, as chances de escapar com sucesso poderiam aumentar.

Claro, ambos eram estranhos um para o outro neste lugar. Por este motivo, se tentasse perguntar algo abruptamente, como: “Quero fugir, você vai me ajudar?”, ao invés de cooperação, provavelmente o mandaria de volta para o campo de detenção. Mas o melhor método para se aproximar era fazendo com que baixasse a guarda. Se isso acontecesse, no final, o ajudaria por vontade própria.

“Ah, como era chamado esse tipo de coisa mesmo?” Era uma palavra que não usava normalmente, mas quando lembrou, apertou o punho. “Isso, ludibriar.”

E agora que seu objetivo foi decidido, sentiu que ficou muito mais fácil agir do que ficar encolhido e pensando sobre isso. Por isso, Muoru voltou ao cemitério à noite e preparou-se para emboscá-la, a fim de surpreendê-la um pouco, porém…

— Muoru? — Agachada, a garota de cabelo castanho-claro chamou o seu nome, enquanto acariciava o cachorro ao seu lado e olhava com incerteza para o garoto.

Após ouvi-la hesitante chamando seu nome, Muoru pensou no que falar.

— Humm… isso… ah, é, nada — gaguejou o garoto e, novamente, o silêncio ficou entre os dois.

Muoru, se acalme! Então, deu uma dura em si mesmo por não ser capaz de pensar em palavras adequadas. Sua futura liberdade dependia de ser capaz de chamar sua atenção ou se ela rejeitaria.

A primeira ideia que teve foi a das conversas agradáveis que teve com seus amigos soldados ao redor da fogueira do acampamento. Mas então, lembrou que as essências daquelas piadas envolviam pilotos veteranos de blindados se gabando de quão grande eram seus rifles.

Agachada a uma distância pequena dele, a garota observava com curiosidade sua dificuldade para falar, o rosto dele ficou perplexo e sua garganta prendia as palavras.

Os olhos dela eram tão escuros quanto o mar frio, e o azul era de uma cor tão profunda que parecia sugá-lo.

Novamente, silêncio. Mas nada podia ser feito; a garota diante dele simplesmente o fazia ficar mudo.

Aqueles olhos o encaravam, esperando para que falasse, mas sua mente estava completamente branca e nenhum pensamento surgiu. Ela era totalmente diferente daqueles oficiais militares, que só faziam seus deveres com rostos rabugentos, e do Corvo, que falava tão casualmente como se fossem bons amigos.

Então, do nada, percebeu uma falha básica em sua tática anterior.

“Como eu deveria ludibriar uma garota mesmo?”

Muoru Reed, soldado E-1, mestre das toupeiras de guerra.

A qualquer momento, não importava o clima, as toupeiras eram obrigadas a cavar buracos sem parar. Com apenas as roupas do corpo, eram capazes de rastejar por mais de cinco quilômetros. Também eram capazes de desmontar e limpar seus rifles militares em instantes.

Mas ele não tinha ideia de como se aproximar da garota à sua frente…

— Mélia…

Este era o máximo que conseguia. Sua tendência de permanecer em silêncio não conseguia ir além disso.

Ele engoliu em seco. Por quanto tempo ficará nervoso? Não imaginava que apenas engolir saliva resultaria em um barulho tão alto.

Quando seus pensamentos ficaram em ordem, imediatamente disse:

— Gostaria de ser minha amiga? — Palavras essas que parecia já ter ouvido em algum lugar.

A garota piscou algumas vezes, então, perguntou:

— Como? — Sua voz estava baixa e confusa.

“Eu não devia ter perguntado isso.” Foi uma falha, pois abordou um assunto completamente errado. Seu rosto e cabeça ficaram vermelhos em um instante, como na vez em que tomou uma bebida forte em um gole só. O impulso de agarrar uma pistola, apontar para sua têmpora e explodir seus miolos idiotas brotou dentro de si.

Enquanto o garoto pensava em desmaiar de agonia por causa de sua ignorância, a garota próxima, por outro lado, parecia não ter entendido suas palavras. Mas então, com a lentidão da areia caindo em uma ampulheta, suas bochechas ficaram profundamente vermelhas.

E, depois de um tempo, desviou o olhar dele e disse:

— Não posso…

Foi a primeira vez que falou sem olhar diretamente para seus olhos. Ele conseguia ver que os lóbulos da orelha dela, aparecendo na beirada do capuz, ficaram vermelhos.

Era estranho, mas mesmo tendo o recusado com clareza, Muoru sentiu-se aliviado.

Rindo para si mesmo, perguntou:

— Por quê?

Mélia o respondeu com o rosto virado para o lado:

— Porque não entendo. Quando disse amigo, o que realmente quis dizer?

— Bem, isso… é, até eu não consigo dar uma definição exata.

Muoru também desviou o olhar, pensando por um tempo, antes de explicar algo incorretamente:

— Amigos, bem, hm… é o próximo passo depois de conhecidos… isso é… mútuo? Não, mais que isso… para se conhecerem melhor, duas pessoas ficam mais próximas… tipo isso.

Basicamente, tudo o que disse a Mélia era o mesmo que “posso me aproximar de você?”.

Transbordando de vergonha, Muoru não conseguiu prosseguir com sua explicação.

Então, como se descartasse uma ideia que teve, baixou a cabeça em silêncio. Enquanto esperava, Muoru observava, à medida em que a luz cintilante do lampião, colocado no chão, fazia a sombra da linha do queixo dela tremeluzir desordenadamente.

 Depois de um tempo, ela levantou a cabeça, mas não era para retirar a recusa anterior.

— Muoru, de onde você veio? — perguntou ela.

Depois de uma rápida hesitação, ele respondeu:

— Campo de Detenção de Rakasand.

— Rakasand?

— Ah, é no Reino do Leste. Nunca ouviu falar?

Mélia, com o rosto vermelho, assentiu profundamente:

— Nunca saí deste lugar.

Muoru ficou perplexo por um momento, então, como se espiasse por um buraco, encarou o pescoço branco dela. Não havia evidência de que ela era uma prisioneira ali, por este mesmo motivo, ficou difícil acreditar. Mas ao mesmo tempo, fazia muito sentido.

“Entendi. Ela realmente foi separada do resto do mundo.”

Havia uma coisa em que ele acreditava um pouco na história do Corvo. Antes de as máquinas a vapor serem inventadas, em outras palavras, até cem anos atrás, o melhor método de viajar sobre terra era a cavalo. Além disso, a única coisa que podia ser feita era caminhar. Naquela época, cidadãos comuns não podiam sequer pensar em viajar. Exatamente por este motivo, eles não só não participavam de campanhas militares, como também, a grande maioria, nunca deixava sua cidade natal.

Mesmo agora, se uma pessoa vivesse em algum tipo de país ou vila agrícola, provavelmente não seria incomum.

Olhando para o garoto, ela perguntou:

— Então, diga-me… como era o lugar de onde você veio?

Depois de um tempo, ambos conversavam enquanto a luz do lampião cintilava entre eles.

Mélia ouviu cada palavra dele com seriedade, mas só perguntava se algo lhe interessasse. E quando perguntava, Muoru, mesmo para seus padrões usuais, respondia grosseiramente.

Da mesma forma que ficava quando havia bebida por perto, ele estava tagarela. Contou-lhe sobre a cidade em que nasceu, sua família, o que era um blindado, a importância de trincheiras bem pensadas, suas rações favoritas, como repolhos eram cultivados…

“O que estou falando? Não falo dessas coisas para amigos ou para qualquer um que seja.”

Era fácil lidar com as perguntas dela, mas sentir o seu olhar focado nele o fazia se sentir envergonhado. Porém, ao mesmo tempo, também era um pouco assustador.

Ele usou um galho para desenhar um mapa no chão, e ao olhar para o céu, fingiu relembrar de algo, mas não olhou nos olhos da garota. Foi neste momento que, inesperadamente, entendeu como tirar algumas palavras dela.

Além de já ter um plano, Mélia parecia ser uma ouvinte incrível. Pelo fato de nunca ter saído deste cemitério, não entendia a premissa de algumas histórias. Todavia, mesmo que a explicação do garoto fosse difícil, ela mostrava uma ótima habilidade de depreender seu coração do que ele estava tentando dizer.

Mas precisou de um pouco de esforço para entender o conceito de “animal domesticado”.

Ele lhe contou como os cozinheiros da campanha prepararam um leitão assado para ele e seus companheiros durante uma comemoração de vitória. Muoru se lembrou da essência aromática da gordura animal e temperos, então, começou a perceber sua falha em notar a baba se acumulando em sua boca. Mas Mélia não estava interessada no sabor da comida ou como foi preparada; ao invés disso, mostrou interesse no que ele falou depois.

— Depois disso, aquele “porco” recebeu um enterro apropriado?

— Não… não lembro se usamos os ossos para fazer dashi.

— Dashi?

— Coloque os ossos em uma grande panela e cozinhe por bastante tempo. No final, se transformará em um caldo de sopa.

— Vocês comem até o cadáver? Isso é… cruel — murmurou Mélia com tristeza, parecendo decepcionada com a conversa.

“Mas no caso de animais domésticos, eles não acham que isso seja cruel, na verdade, não pensam em nada.”

Com grande esforço, tentou explicar. Tentou persuadir Mélia de alguma forma, dizendo que animais existiam para serem criados como animais de estimação para serem comidos (ou mortos), mas as palavras certas não saíram. Para ele, este era um conhecimento comum que parecia extremamente natural, mas não conseguia pensar em outras palavras para fazer com que entendesse.

A conversa escapou à tangente antes que percebesse. Algumas das perguntas loucas da garota faziam o assunto seguir uma direção completamente diferente, então, devido a mal-entendidos, a conversa mudava e, abruptamente, eles voltavam ao assunto que discutiam antes.

E se descobrisse como dizer algo, mesmo que fosse um pouco eloquentemente, acabava desviando o assunto mais uma vez… e assim por diante, até que a conversa ficasse tão empacada quanto um carro que não se movia há muito tempo. Por isso, no fim, ele não conseguiu tirar as dúvidas dela.

No entanto, graças às tangentes, a conversa dos dois continuou, sem que parasse do nada. Muoru sentia que era um grande milagre…

— Acho que entendo um pouco… — disse ela enquanto se levantava. A lua, entre as nuvens distantes, havia se movido para o centro do céu.

O perfil calmo e silencioso da garota parecia, de forma estranha, tenso. Era como se tivesse descoberto uma verdade avassaladora.

— A Escuridão, eles não existem no mundo de onde você veio, né? — A palavra que a garota disse no dia anterior saiu de seus lábios mais uma vez.

Ele estava tentando entender o significado de tal palavra.

— Sim — murmurou ele.

O garoto olhou para a garota.

Com o fraco luar, o rosto dela, escondido pelo capuz e olhando de forma desanimada para o chão, era lindo. Era algo que não imaginava pertencer a este mundo.

Encarando-a naquele momento, Muoru não conseguiu se levantar, a razão não estava relacionada ao ferimento em sua perna.

E mesmo que emoções nunca aparecessem no rosto dela, no interior de seus olhos calmos, conseguiu sentir com clareza que seus sentimentos mais internos foram abalados.

Igual ao choque que teve quando descobriu a existência daquele monstro.

Os dois eram muito semelhantes, e por esta mesma razão, eram totalmente diferentes. Assim como a lua e o sol, que nunca se chocavam, a distância entre eles era algo inevitável.

A fria brisa noturna do verão soprou sobre as inúmeras lápides enfileiradas no chão.

— Está quase na hora de eu ir — disse Muoru, levantando-se de forma brusca —, amanhã também estarei abrindo covas durante o dia todo.

Ele pôde ver Mélia acenando com a cabeça.

— Até mais… — O garoto disse, esperando vê-la acenar mais uma vez.

Mas não houve resposta.


Notas:

1 – Remador: Em japonês estava escrito (オリッド/oriddo). Mais tarde é explicado que este termo é uma gíria antiga usada para escravos remadores em Galés. É uma junção da palavra Remo (オー ル/ouru) e Escravo (どれい/dorei).

2 – Os kanjis usados significam Mélia do Mass Grave, porém, o katakana acabou estilizando seu nome sem o “do”. Ao que tudo indica, o autor queria que seu nome soasse normal, no entanto, o japonês atual faz o “Mass Grave” soar mais como um título do que um sobrenome. A propósito, Mass Grave seria algo como “Sepulturas/Túmulos Agrupadas/em Massa/Coletivas”, mas não foi traduzido pelo fato de estar assim no original também.

3 – No inglês é usado Muoru. Porém, esta é a transição fonética da palavra Mole, que significa Toupeira em inglês. Por opção da equipe, optamos por manter assim.

4 – Possível referência a drogas.

5 – Pode ser que ele acabe morrendo.

6 – Em hiragana lê-se vigarista/trapaceiro, mas em kanji lê-se bruxa.

7 – Pequeno pedaço de pau ou arrocho, us. para apertar a corda nos estrangulamentos de condenados.



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