Volume 1

Terceira Cova: Ladrão de Túmulos

CAPÍTULO 1

A toupeira havia cavado uma armadilha muito profunda; e dentro dela, pegou um corvo estranho, o qual parecia uma criança.

Mesmo que Corvo tenha lhe dado o capacete, Muoru ainda o enganou, fazendo com que caísse dentro da armadilha. Ele percebeu que a decepção ia contra seu código moral, mas não tinha outra escolha.

Não havia tempo.

Quanto tempo Mélia ainda tem? E quanta dor mais o coração dela precisa suportar?

Não havia uma ferramenta no mundo que poderia medir isso, mas mesmo que existisse, provavelmente seria melhor não a usar.

Por isso, esta seria a segunda vez que discutiria sobre a dor que ela não precisava sofrer.

— Muito bem então, por que não conversamos? — perguntou Corvo.

Olhando para o corvo que capturou, Muoru fez suas perguntas.

— Tá bom, primeiramente..., gostaria que me dissesse quem você realmente é. A máscara que mostrou quando nos vimos pela primeira vez é falsa?

— Não — disse Corvo, olhando para cima com uma expressão inocente e, novamente, pegando a máscara de algum lugar de seu corpo.

— É verdadeira. Consegui-a de meus “amigos caçadores”.

— Como assim? Quer dizer então que não é um daqueles “caçadores”?

— Sua intuição é mais afiada que qualquer garra, Toupeira-kun. — Corvo largou a máscara e provocou Muoru da mesma forma que fazia normalmente. Então, deu de ombros: — Peço perdão por mentir. Pensei que tornaria as coisas mais fáceis..., mas é um pouco complicado explicar minha posição.

— Não tem problema se é difícil, apenas me diga, ou te enterrarei. Estou falando sério! — Muoru pegou um pouco de terra e segurou sobre o buraco.

Podia ter sido uma ameaça, mas se Corvo continuasse de brincadeira, ele estava preparado para enterrá-lo até a metade.

Fazendo beiço, como se dissesse “me dê um tempo”, Corvo falou com relutância:

— Muito bem... sou um “representante da associação de vítimas”, por assim dizer.

Muoru balançou a pá e alguns torrões de terra caíram no centro do buraco.

— Ei, ei, pode parar! Estou falando sério agora.

— Bem, parecia que estava de brincadeira. Mas se não, me diga, de que tipo de sofrimento está reclamando?

— Dos demônios, é claro. Existe algo mais?

— Se está falando a verdade sobre ser um representante, então devem haver outros — disse Muoru, considerando as palavras de Corvo como sendo apenas mais uma piada. No entanto...

— Sim, existem outros. Dez no total — respondeu Corvo rapidamente com um sorriso esguio. — Por que está perguntando sobre isso? Você já os encontrou.

— Está falando de Mélia? — Muoru perguntou com pressa. Não conseguiu pensar em ninguém mais. — Ela também é um membro de sua associação de vítimas imaginária?

— Ela é qualificada — respondeu —, mas é diferente..., ela ainda não é um membro.

— Como assim? Mélia...

Não havia alguém que sofrera mais do que aquela imortal guarda sepulcral nas mãos daqueles monstros... e mesmo se houvesse, já estariam mortos há muito e, provavelmente, sepultados.

 — Infelizmente, nossos movimentos são limitados durante o dia. Já que a garota não pode aparecer no cemitério durante o dia, nunca nos encontramos. Porém, não posso te afirmar com toda certeza que não sei nada sobre ela. — Corvo estava sendo vago e falando de uma maneira indireta.

Muoru queria saber mais sobre o que ele queria dizer, mas antes que pudesse fazer outra pergunta...

— Mas conhecia bem Maria. Com certeza mais do que qualquer outra pessoa hoje em dia. — Corvo disse algo que ele não poderia ignorar.

A pessoa que Muoru não conhecia, a guarda sepulcral que Mélia considerava uma irmã mais velha.

Por que esse nome saiu da boca do Corvo? Quero dizer, ele parece conhecer bem o cemitério, por isso não é tão estranho saber disso, mas ainda assim...

Em uma tentativa de esconder sua preocupação, desviou o olhar da pessoa de cabelo chanel dentro do buraco e sentou-se.

Então, quando se moveu para sentar-se de pernas cruzadas, ouviu Corvo dizer:

— Por que acha que Maria morreu?

Ele rapidamente se virou. Um segundo atrás, não, menos que isso, Corvo estava dentro do buraco. No entanto, agora, estava de pé ao seu lado; sua voz soava como se estivesse perto o bastante para apoiar o queixo no seu ombro.

Como você fez isso?

­               — Guardas sepulcrais não deviam morrer. Mas como Maria conseguiu?

— Ela provavelmente queimou sob o sol.

— O quê, te contaram isso? — Corvo parecia surpreso, piscando para a resposta que saiu da boca de Muoru. — Pois é, isso mesmo que você disse. Bem, não é como se ela tivesse fritado como um ovo jogado no asfalto ou algo parecido. Este mal-entendido posso deixar esclarecido — disse ele. — Não há como matar A Escuridão. Na verdade, desde o princípio, o conceito de morte não lhes é aplicado. Tenho certeza que odeiam a luz, mas se forem tocados por ela, seus movimentos só vão parar. Não morrerão. E quando a noite vem, começam a se mover mais uma vez... e continuam a matança dos humanos.

Fez uma pausa, então, continuou:

— No entanto, apensar de o fato da luz do sol ser necessária para humanos, os guardas sepulcrais que roubaram o poder deles morrem caso sejam tocados por ela. Você não acha isso estranho? Por que acha que isso acontece?

— Não tem como eu não ter percebido isso. O que quero saber é... — Muoru começou de forma brusca, mas parou, sendo incapaz de conseguir dizer as palavras que realmente queria..., estava completamente confuso, incerto de como devia tentar continuar, o que devia tentar perguntar.

Corvo suspirou.

— Humanos que consomem uma parte da Escuridão tornam-se guardas sepulcrais. Por isso, mesmo que Mélia ainda seja humana, ao mesmo tempo, parte dela é “A Escuridão”. Estes dois aspectos estão ligados e não podem ser separados. E ambos possuem um efeito igual nela. Então, se a luz a atingir, seu corpo de guarda sepulcral para. O que significa morte para um humano.

Muoru inclinou a cabeça para o lado.

— Parar é morrer?

Corvo cutucou o peito do garoto com o dedo indicador.

— Você pode parar seu coração?

Muoru riu.

— Idiota, seu eu fizesse isso...

Eu morreria... né? Então é isso que ele quer dizer.

— Isso mesmo. Porém, não é apenas seu coração, mas também sua respiração, cérebro, sistema nervoso e tudo mais... Entenda, o corpo humano está, de certa forma, sempre em movimento, desde o momento em que está no útero da mãe até os últimos momentos de vida. Mesmo quando se está dormindo, desmaiado ou inconsciente, o corpo nunca para. Em outras palavras, o conceito de parar é, precisamente, como humanos são capazes de perceber a morte.

Muoru agarrou o peito.

— Hmm, então, se a parte monstro fica incapaz de se mover, o coração, pulmões e, basicamente, todas as partes humanas do guarda sepulcral também param de se mover. E, como resultado, morrem..., é isso o que está querendo me dizer?

— Exatamente — assentiu Corvo.

O garoto mordeu os próprios lábios.

Muitos pensamentos passaram pela sua cabeça. Mas, em grande parte, pensava sobre até onde poderia confiar nas palavras de Corvo.

Toda esta conversa duvidosa não era nada mais que suposição. Mas então, novamente, quem não ficaria incomodado ao colocar seu peso em uma ponte suspensa, a qual podia ser uma possível armadilha?

Ainda assim, Corvo tinha um objetivo; e, talvez, a única razão para ter se aproximado de Muoru foi para completá-lo.

Certo... não há outra forma... precisarei fazer isso... com ela... com minhas próprias mãos...

— Toupeira-kun, quero saber o quão determinado você está. — Corvo olhou diretamente para Muoru. — Você pode não acreditar em mim, mas realmente gosto de você, Muoru. E tenho uma ideia de algo que você pode fazer por Mélia, uma forma de ajudá-la. Então me diga, o quão longe está disposto a ir por ela?

Muoru não teve problema algum em responder.

 

CAPÍTULO 2

O ar noturno estava cruelmente frio, fazendo Muoru esfregar as mãos nos braços.

Uma brisa úmida soprava e acima de sua cabeça as folhas uivavam. Poucas nuvens cobriam o céu e, ainda mais alto do que isso, havia a lua perfeitamente circular, cercada por uma neblina.

A grande e espessa quantidade de folhas bloqueava o luar, impedindo-o que chegasse às raízes da árvore. Estar sob aquela sombra oscilante o fazia se sentir como se saísse do mundo humano e entrasse no domínio da escuridão.

Ele tirou seus sapatos esfarrapados, enfiou os dedos em um desnivelamento do tronco da árvore e, contando apenas com sua força física, começou a escalar. Seus membros não estavam acostumados com estes movimentos, e ele agarrou-se à árvore como um sapo, subindo até o topo de forma lenta. Teria achado mais fácil se suas mãos pudessem agarrar o lado de trás do tronco, mas a árvore com “o monstro gigante” enterrado era enorme. Era tão grande que, se abrisse os dois braços e tentasse agarrá-la, seus cotovelos não ficariam nem um pouco dobrados.

Muoru percebeu que não era bom em subir em árvores, porém, dentre as coisas que precisava fazer, esta, com certeza, poderia ser considerada a mais fácil.

Achei...

Então, conseguiu alcançar um dos galhos que saía da árvore. Mesmo sendo apenas um, era mais grosso que o tronco de uma árvore comum. Era tão enorme que quando Muoru, com sua grande estatura, apoiou todo seu peso nele, não teve medo de cair. Depois, enfiou a cabeça nas densas e escuras folhas.

Cercado pelas folhas, as quais pareciam absorver o luar, mal conseguia ver alguma coisa. Na verdade, sentia que tentar encontrar algo no meio delas ia ser mais difícil do que achar uma agulha em um palheiro.

Não importava o quanto forçasse a visão, continuava sendo inútil.

Deixado sem opção, começou a procurar apenas com suas mãos e instintos. Não podia ter pressa. De ponta a ponta, a quantidade total de galhos da árvore gigante poderia encher completamente a mansão nos limites do cemitério. Além disso, ele precisava procurar a partir de sua posição sem se movimentar muito.

Determinado, Muoru abriu caminhou cegamente pelas folhas espessas e galhos. Era como se tivesse mergulhado em um oceano escuro e estivesse vagando de forma randômica na água. Os galhos pontudos e afiados arranhavam suas bochechas e lóbulos das orelhas. E as malditas folhas dificultavam muito a respiração, sem contar o fato de que não conseguia ver nada.

De repente, as solas de seus pés suados escorregaram.

— Tsk.

Ele agarrou um galho mais novo rapidamente e seu corpo balançou, colocando quase toda a força usada para sustentar seu peso apenas na mão esquerda. Um calafrio lhe percorreu o corpo. O chão estava a mais de dois metros abaixo e, caso quebrasse o pé ou algo do tipo em um momento crucial como este, ele acabaria sendo o maior idiota do mundo.

Com cuidado, colocou seus dois pés no galho de novo e recuperou o equilíbrio.

Então, Muoru estendeu a mão direita para dentro da escuridão acima... e puxou uma fruta.

Não conseguia vê-la, mas mesmo no escuro, sabia que era a fruta que estava procurando. No momento em que a agarrou, ela contorceu-se em sua palma, era como se tivesse pego um peixe vivo.

De forma lenta, trocou de posição e ficou dependurado no galho com um braço. Então saltou. Quando pousou no chão, uma onda de dor lhe percorreu as pernas, a qual entorpeceram-nas um pouco.

No entanto, não conseguiu ter sensação alguma de êxito apenas com a primeira tarefa.

Mas a próxima...

Muoru timidamente levou as mãos ao luar. Nelas, viu a coisa que mudaria sua vida.

A parte dos monstros.

A fruta negra.

A colheita dos ladrões de túmulos.

Era um meio termo entre uma maçã e um pêssego em termos de forma geral e tamanho. Mas, com uma inspeção mais aproximada, também parecia um coração com grandes artérias, algo assim. Quanto a cor, parecia ter sido pintada de preto com tinta de lula. E mesmo sendo uma parte dos monstros, nenhuma garra ou algo do tipo saltou repentinamente e o atacou enquanto ela estava em sua mão.

Essa coisinha realmente garante a imortalidade aos humanos, mas, como consequência, torna-os incapazes de ficar sob o sol?

Entretanto, Muoru havia tocado algo muito similar à fruta em suas mãos. Era muito semelhante ao saco de carne do monstro que empurrou antes; não era quente; não era fria; não era macia; não era rígida, parecia ser idêntica a um órgão de um cadáver.

Já que não conseguia ver nada, o fato de que tinha agarrado a fruta no meio da escuridão o deixou instintivamente desconfortável. E ao expô-la à luz, esta sensação se intensificou. O desagrado que sentia em seu interior era semelhante a ter que vomitar algo das profundezas do corpo.

A vontade que tinha era de jogá-la em uma direção aleatória. Todavia, ao invés disso, uivou para a lua e abriu bem a boca, como se fosse um animal carnívoro.

Depois, mordeu a fruta.

Imaginou que teria um gosto amargo, semelhante ao de café, mas na realidade, não tinha sabor algum. Não possuía suco e nem aroma como uma fruta normal, e ele mal conseguia sentir sua textura. No momento em que ela entrou na boca, fosse em sua língua ou descendo pela garganta, tudo o que sentiu foi algo como uma lama pegajosa expandindo-se. Era como se sua boca estivesse cheia de cola sem gosto.

Então, um solavanco de terror lhe deu arrepios.

Os conteúdos em sua boca se contorciam como uma minhoca.

Uma forte onda de tontura atacou Muoru e seus instintos imediatamente o alertaram. Em um esforço para fazer com que o dono idiota do corpo deles cuspisse a substância estranha, o sistema imunológico de Muoru forçou sua garganta a convulsionar.

Com desespero, ele cobriu a boca com a mão para parar a regurgitação. Foi demorado, mas enquanto resistia ao desconforto, aos poucos... bem aos poucos, os restos em sua boca começaram a desaparecer. Porém, não estavam totalmente descendo pela garganta, mas sim esgueirando-se pelas paredes de sua boca e entrando em suas células sanguíneas.

Logo, a primeira mudança ocorreu, entretanto, não foi em seu estômago. Foi em seus pés.

Eles pareciam diferentes.

E, antes que percebesse, suas pernas tornaram-se terrivelmente pesadas.

Caso ficasse de pé como sempre, suas pernas não eram impedidas de forma alguma. Todavia, quando tentava caminhar, seus tornozelos pareciam estar agrilhoados por uma corrente de ferro, ou como se alguém tivesse agarrado suas pernas e estivesse puxando-o para baixo.

Ao pensar nisso, lembrou-se que Mélia sempre esteve da mesma forma. Ele não conseguia se lembrar de tê-la visto correndo.

Será que essa é a sensação de ter A Escuridão dentro do corpo?

Ele olhou para os próprios pés.

A sombra que se estendia deles parecia ficar cada vez maior... e espessa. E, a partir do que devia ser sua sombra no chão — ou melhor — usando a sombra como um condutor, ele parecia sentir uma presença gigante vindo de um local muito profundo.

É isso.

Era exatamente igual ao medo que sentiu na primeira vez que veio ao cemitério às cegas. O medo de estar andando sobre cadáveres e caminhando sobre algo muito maior abaixo deles.

E agora, uma parte de seu corpo havia se transformado em um fragmento disso. Caminhar ou levantar as pernas não podia cortar a conexão que sentia. E, para piorar a situação, teve uma alucinação na qual seu ser e coração eram puxados para baixo, em direção àquela escuridão... Assim como quando os membros de Mélia foram arrancados e voltaram de forma automática ao seu corpo e se reconectaram a ela, Muoru sentiu como se seu corpo quisesse voltar ao corpo do monstro sob seus pés.

Ele estava hesitando. Muito além do que queria, se arrependia do fato de não poder voltar atrás no que fizera.

Porém, para Muoru, não era grande coisa para se estar confuso.

Não importava quantos sinais, indicações e assim por diante, se ficassem em seu caminho, consideraria como lidar com eles depois. E, caso não fossem um obstáculo, não seria hora para ter medo.

Ele desistiu e olhou para seu corpo.

Não parecia existir outras mudanças até agora, porém... precisava conferir.

Do bolso, pegou um pedaço de vidro. Conseguiu-o no lixo, de um pedacinho cilíndrico ou algum tipo de garrafa para líquido. Foi quebrado na extremidade oposta da boca da garrafa e era afiado e pontudo.

Sem hesitar, raspou-o nas costas da mão esquerda.

A dor era mais ou menos o que havia imaginado.

Como se tivesse cortado uma veia, um aflitivo sangue espesso e escuro jorrou e escorreu pelos dedos. Parecia ter surgido um segundo coração naquele local e uma dor enfadonha pulsava com cada uma de suas batidas cardíacas.

Muoru observou o ferimento com um olhar complexo no rosto. Ele estava começando a ter a sensação de que havia feito algo extremamente estúpido consigo mesmo.

Então, dentro de muitas batidas cardíacas, o ferimento fechou-se e desapareceu.

O corte nas costas de sua mão selou-se, voltando ao normal de dentro para fora, como um par de lábios se fechando. Não foi rápido ou chocante, sua pele simplesmente se fechou de maneira automática. E, além do sangue pegajoso e da dor ardente, não havia traço algum do ferimento.

É claro, ele sentiu-se desconfortável, porém, apesar dos resquícios de dor, seu desconforto era mais direcionado ao ferimento que ali devia estar.

Seus lábios se dobraram, formando um sorriso torto.

Mas, claro, era um absurdo pensar que um arranhão nas costas da mão era uma prova suficiente de sua imortalidade.

E ele com certeza não poderia falhar no que planejava fazer em seguida.

Por isso, outro teste mais profundo era necessário.

Ainda indeciso, estendeu um dedo, mas então, titubeou.

Era simplesmente natural ter uma resistência muito maior para o que estava prestes a fazer do que quando colocou a parte do monstro em sua boca. Ainda que tenha dito que era apenas uma confirmação, a ação era o mesmo que suicídio. Seus dedos tremeram. Toda sua mão tremeu. Ele não conseguia parar de tremer.

Ao sentir sua resolução enfraquecer, Muoru mordeu os lábios e se lembrou da sensação do pescoço de Mélia em seus braços.

Então, enfiou os dedos no lado interno de sua coleira de couro e, com toda sua força, arrancou-a.

A artéria presa ao “fio da bruxa” rompeu-se e um jorro de sangue saiu de seu pescoço cortado.

Inesperadamente, não havia dor.

Entretanto, não importava quantas vezes tentasse olhar para seu pescoço, o infinito e puro líquido vermelho saía de um lugar que ele não conseguia ver. Era, sem dúvidas, a visão de algo que faria as pessoas desmaiarem.

A metade direita de seu corpo ficou pintada de vermelho antes que percebesse, e sem pensar, Muoru pressionou sua mão direita no ferimento. De repente, sua visão começou a escurecer..., ele estava perdendo muito sangue.

Naturalmente, ao invés de usar tinta, seu corpo estava usando o sangue oxigenado, o qual devia estar fluindo em seu cérebro, para manchar todo o seu lado direito.

Isso é mal, pensou ele na área mais profunda de sua consciência.

Era diferente de todos os ferimentos que sofrera até agora. Sentia que estava prestes a desmaiar. Não conseguia enfrentar isso e nem resistir. Na verdade, os vários lugares dos quais devia estar tirando energia estavam desaparecendo. Isso fez com que se sentisse desolado.

Independente se era verdade ou não, sentia que estava afogando-se desesperadamente. E, no fim, até sua consciência começou a dissipar-se. Ele perdeu o equilíbrio e caiu sobre um joelho.

Não adianta, pensou enquanto estava aturdido.

Aos poucos, seus ombros relaxaram e, com uma guinada, desabou para um lado com a língua para o lado de fora dos lábios.

Então... notou..., sua visão havia clareado sem que percebesse.

Sua anemia desapareceu.

A fonte de sangue parou.

Seu ferimento se fechou.

Ele levantou-se de pé, sentindo-se apenas forte como sempre. Simplesmente franziu o cenho ao ver as roupas encharcadas de sangue presas à pele.

Mas depois de levantar-se com um corpo coberto de sangue, lentamente, um sorriso genuíno escapou de seus lábios.

 

CAPÍTULO 3

Muoru devia estar ciente de quão inexperiente era nesse tipo de coisa.

Em todo caso, ele era apenas uma toupeira especializada em cavar trincheiras. Não era um procurador público ou detetive, então, era apenas natural que usar seus miolos resultariam em respostas limitadas, mesmo se só tentasse supor.

Porém, desde que foi trazido a este cemitério, realmente teve muito tempo para pensar nessas coisas enquanto abria covas. Além disso, ouvira algumas histórias que haviam esclarecido sua situação.

Por isso, agora tinha novas dúvidas sobre ela, com diferentes hipóteses relacionadas a potenciais respostas vindo à mente.

Primeiro, eu gostaria de enfatizar o fato de não ter matado o Segundo Tenente, Hedger Reeve. E juro à minha velha companheira, a pá rotulada “Caso 50357: Arma perigosa A”, o item largado na área de depósito de provas da corte militar, o qual, provavelmente, é mais como uma sala de tranqueiras, não é o que parece.

O assassino é outra pessoa.

O verdadeiro assassino de Hedger Reeve.

Em algum lugar do mundo, estava a pessoa que removeu a pá de Muoru de sua área de descanso, atingiu a cabeça oca de Hedger uma vez, descartou a companheira ensanguentada de Muoru em uma pilha de lixo e, então, o acusou falsamente pelo crime.

Durante seu julgamento, ninguém havia sequer examinado de forma satisfatória seu possível motivo para o assassinato. No entanto, se a polícia militar tivesse pedido aos seus companheiros soldados por um pouco de informação, eles provavelmente teriam conseguido respostas o suficiente para apoiar a reinvindicação deles. Talvez declarassem algo como: “Muoru era rebelde, por isso, quase sempre era punido fisicamente pelo tenente”, ou “o tenente tomava a comida de Muoru”, ou “o tenente fez Muoru limpar todo o esterco de cavalo sozinho”.

Porém, eu não era o único subordinado de Hedgers chamado de bom para nada que era alvo de intimidação. Na verdade, talvez nem existisse fim para a quantidade de pessoas que guardava rancor contra o tenente. Por isso, mesmo o motivo do verdadeiro culpado podia vir de ressentimento contra ele. Muoru não possuía dúvida alguma desta hipótese.

No começo, pensou que a ideia de matar aquele homem havia vindo à sua mente apenas uma ou duas vezes. No entanto, ao pensar sobre isso agora, se perguntou: Será que foi verdade mesmo?

Será que o verdadeiro assassino de Hedger Reeve o mandou para o mundo dos mortos apenas por ressentimento?

A partir de agora, sua teoria não era nada mais que especulação. E o pensamento era meramente uma ideia “hipotética”. E se o verdadeiro objetivo do criminoso fosse utilizar o sistema de prisão para acusar falsamente uma jovem toupeira trabalhadora e fazê-la vir para cá?

Até mesmo Muoru tinha ciência do absurdo que era essa ideia.

Mas era óbvio que este cemitério com certeza não era um lugar normal. E, por acaso, o conhecimento comum do mundo externo era obscurecido. Por isso, ele só conseguia fazer um julgamento baseado no que havia visto e ouvido pessoalmente.

O que lhe trouxe ao primeiro depoimento de Corvo: “Aquele velhote é terrível. Parece que não importa quantas pessoas sejam empregadas para abrir covas, sempre que ficam incapazes de lidar com os demônios, logo se tornam inúteis.”

Até mesmo um trabalho simples como abrir covas não parecia tão fácil ali. E, se houvesse mais casos onde trabalhadores logo se tornavam inúteis, era provável que Daribedor devesse estar em busca de outras pessoas que, além de ter força física, seriam capazes de manter segredo e não causar problemas maiores em situações extremas. Isso significava que Daribedor não desaprovou a ideia de contratar uma antiga toupeira presa a uma coleira de prisioneiro.

E...

No final, a morte viria até mesmo para a guarda sepulcral que roubou o poder da Escuridão.

E, já que múltiplas pessoas não podiam ser guardas ao mesmo tempo, preparações com certeza eram importantes..., talvez Mélia fosse algo como uma suplente para Maria.

Por isso, se possível, eles encontravam alguém que parecesse ser capaz de conseguir lidar com aqueles monstros. E, se por acaso a pessoa fosse capaz de tolerar o trabalho duro, seria como matar dois coelhos com uma cajadada só. Além disso, não importava se tentassem escapar, pois, com uma parte do corpo alterada pela Escuridão, não seriam capazes de sair do cemitério.

Em outras palavras, a razão pela qual vim para cá...

No fim, o motivo quase não estava relacionado à sua hipótese.

Daribedor havia feito com que cavasse, de antemão.

Foi aí que entrou a outra parte da evidência de Corvo: “Esses demônios parecem entender a própria desvantagem. Agora, não só estão evitando caçar ou atrair humanos, como também não aparecem diante deles.”

Foi só depois que terminou a cova que o monstro de carne veio ao cemitério. Então, em outras palavras, o ataque foi planejado. Como diabos eles fizeram isso, ele não tinha ideia, mas Daribedor, ou as pessoas mascaradas, provavelmente tinham uma forma de invocar as criaturas.

Claro, simplesmente invocá-los não garantiria a morte deles. Então, a rigor, chamar os monstros não era diferente de enfiar a mão de propósito dentro da boca de um leão.

Porém, neste cemitério... havia um guarda sepulcral.

Mesmo assim, Muoru não sabia por que ou sob qual pretexto eles atraiam os monstros, nem sabia se este ato colocava o cemitério ou o guarda sepulcral em perigo. Será que talvez seja pelo bem da humanidade ou é um pensamento ingênuo?

Quando perguntou ao Corvo sobre isso, ele respondeu: “Até mesmo eu ainda quero saber isso. O que sei é que as pessoas que derrotam os demônios ganham uma recompensa. E quanto maiores são, maior é a quantia. Os companheiros mascarados vivem a partir disso.”

De acordo com o Corvo, a recompensa, surpreendentemente, não vinha de um país ou da organização de um templo, mas sim da carteira de um humano. A verdadeira identidade desta pessoa era desconhecida e, até mesmo para os caçadores mascarados, estava meio coberta por mistério. Mas algumas das razões para apenas um indivíduo fornecer as recompensas eram: não haveria obrigação das partes e ele daria “um pagamento muito justo” à pessoa que acabasse com os monstros.

A órfã Mélia e os outros como ela nem mesmo tinham um registro familiar¹. Eles eram humanos que não existiam. Por isso, deve ter sido simples para Daribedor iludi-los com promessas de uma recompensa.

Até Muoru sorriu com simpatia. Era uma história muito fácil de compreender. Embora só tivesse visto o interior da mansão uma vez, ainda conseguia lembrar-se da mobília terrivelmente extravagante e das decorações.

Com uma guarda sepulcral como Mélia ali, chamar os monstros para o cemitério geraria uma grande quantidade de dinheiro para o zelador.

À medida em que esta inundação de pensamentos passava pela sua cabeça, Muoru preocupou-se com o fato de os sentimentos assassinos, que uma vez teve por Hedger, estivessem agora queimando por uma pessoa diferente. E, devido a eles, sentia como se sua nova companheira em mãos estivesse gritando para ser usada em uma tarefa muito mais produtiva do que apenas cavar buracos.

No entanto, se fizesse isso, desta vez, enfrentaria uma verdadeira sentença de morte. E, é claro, neste caso, não haveria chance de livrar seu nome da falsa acusação. Também não seria capaz de conseguir prova alguma para suas teorias anteriores. Não possuía dinheiro para suborno. Tudo o que tinha era seu corpo e seus sentimentos por Mélia.

 

CAPÍTULO 4

De repente, Muoru sentiu uma mudança na atmosfera. Ele forçou os olhos e observou com atenção o cemitério escuro, mas não pôde ver mudança alguma. Depois, olhou para o mar de lápides, então para as árvores na floresta sombria, mas, novamente, não viu o monstro estranho de rosto gigante nem viu o saco de carne com várias pernas, ou algo que pudesse ser considerado da espécie deles.

Estou tirando conclusões precipitas ou apenas estou nervoso?

Muoru olhou para a cova que abrira aos seus pés. Era tão grande que qualquer pessoa normal provavelmente não cogitaria a ideia de ser uma cova. Ela parecia mais um local de escavação de ruína ou uma trincheira subterrânea de grande escala. E ele sentia que, caso o monstro fosse mesmo grande o suficiente para caber neste buraco, qualquer um poderia reconhecê-lo, não importava a distância.

Mas este tipo de coisa realmente existe neste mundo?

Naquele momento, Muoru não conseguia pensar em nada engraçado.

— Senhor Prisioneiro — disse uma voz rouca.

O rosto do velho sem nariz estava pálido, como se tivesse perdido todo seu sangue. Ele estava segurando uma pistola preta em sua mão direita trêmula, com um dedo que parecia um galho seco no gatilho.

— Responda-me! Onde escondestes a guarda sepulcral?

Ainda que o cano estivesse apontado para ele, Muoru não deu muita atenção para onde o velho estava.

— Não a encontrou? Isso é muito ruim. — O garoto mostrou um pequeno sorriso desafiador. — Quero dizer, quantos lugares poderiam existir para se esconder aqui?

— Não é hora para brincadeiras de mau gosto. Aquela coisa está prestes a chegar! Ela irá...

— Então é isso? Bom... saber — interrompeu Muoru, virando-se para encarar Daribedor de frente. — Bem, neste caso, por que você não vai se esconder? Não creio que o monstro diferencie entre guardas sepulcrais, prisioneiros ou velhotes teimosos.

— Vossa... vossa coleira! — repreendeu Daribedor, percebendo que a coleira de Muoru havia sido tirada.

Ainda que as pernas de Muoru estivessem extremamente pesadas, ele deu um longo passo em direção ao velho. Então, um disparo seco ocorreu.

Daribedor disparou dois tiros, o primeiro atingiu à direita do umbigo de Muoru e o segundo penetrou diretamente no centro de seu estômago.

Quando isso aconteceu, ele teve uma sensação de cólica, como se alicates muito fortes estivessem o torcendo por dentro. Grunhindo por causa da dor, agarrou o pescoço de Daribedor e, da mesma forma que fez com Corvo há vários dias, jogou o homem baixinho em um buraco profundo.

Daribedor gritou. Talvez fosse por causa de seu ódio pelo homem, mas Muoru parecia hediondo. Pode ser que a queda quebre uma de suas pernas ou algo do tipo.

Muoru ficou de joelhos, agarrando seu estômago aberto com um sorriso no rosto.

— Sinto muito... você não está ferido, está?

Uma espuma ensanguentada subiu-lhe pela garganta e borbulhou para fora de sua boca. A dor parecia estar vindo das rupturas de dentro de seu corpo. Talvez, do lado de dentro da pequena abertura em seu torso, o estômago tenha sido aberto, fazendo com que os ácidos digestivos vazassem e queimassem seus órgãos.

Muoru pôde ouvir o velho gritando algumas profanidades do fundo do buraco e desejava ter algo para escalar. Porém, já que o fez com um poço de água em mente, Daribedor não seria capaz de sair dali sem algumas ferramentas para apoiá-lo.

— Ergh. — Muoru deitou-se no chão, gemendo de dor.

Provavelmente esta era a primeira vez que experimentou uma dor dessas em sua vida.

Sob circunstâncias normais, algo como uma bala teria sido o suficiente para matá-lo. Mas logo em seguida, foi capaz de se levantar e assim que suas pernas ficaram fortes o bastante para apoiá-lo, deixou o buraco para trás e partiu.

Mais uma vez o vento parecia ter ficado mais forte. E Muoru sentiu um calafrio, conforme a ventania atingia suas roupas encharcadas de sangue. As nuvens moviam-se terrivelmente depressa. O vento soprava pelas árvores, agitando os galhos e fazendo as folhas uivarem em coro.

Embora seu tempo fosse limitado, não podia fazer nada mais do que esperar.

Não me esqueci de nada, né? Pensou Muoru.

Em algum lugar distante, ouviu Dephen uivar. Corvo levou aquele maldito cachorro para algum lugar durante o dia. Ele não sabia o que Corvo usou nele, mas quando suas mãos infantis acariciaram o animal, o mesmo se tornou dócil como se tivesse sido castrado. De alguma forma, aquelas pupilas negras pareciam estar mais brilhantes que o normal.

Surpreso, Muoru perguntou ao Corvo como ele havia o domado, mas apenas riu e pulou nas costas do cachorro. Se Muoru tivesse feito isso, era muito provável que Dephen tivesse mordido sua virilha.

O que será que ele está fazendo agora...

No fim, sentiu que Corvo havia conseguido manter sua identidade em segredo. Se pensasse sobre isso racionalmente, algo tão absurdo como “A associação de vítimas” era quase outra invenção na tentativa de enganá-lo.

Porém, para conseguir roubar o poder de Mélia — e para que ela não fosse capaz de resistir —, era necessário evitar que Dephen interferisse.

Tudo para que pudesse fazer isso... por Mélia.

O vento estava ficando cada vez mais forte.

Muoru virou a cabeça e olhou para os arredores. De repente, o mundo estremeceu, como se um terremoto acontecesse.

Mesmo tendo pensado no início que era apenas sua imaginação, de repente, a sensação aumentou de tamanho, como um gêiser prestes a entrar em erupção. Era uma sensação avassaladora, assim como a da noite em que sua pele sentiu arrepios após ver o monstro com uma infinidade de pernas pela primeira vez. Porém, independente de quando ou de onde o vento viria atacá-lo, ele estava preparado. 

Então, um guincho metálico rapidamente alcançou seus ouvidos. Não era claro e parecia repetir sem parar, como o ranger de uma engrenagem ou roda emperrada. Mas era com certeza um som terrivelmente desagradável.

O vento forte atormentou Muoru. E, enquanto seus pés cambaleavam, por um instante, sua sombra pareceu ficar borrada. Então, olhou para cima e viu algo escuro cercar a lua como se fosse um eclipse.

Muito acima, no céu estrelado, uma fenda fina nas nuvens, semelhante a uma fumaça, descia. De dentro daquela brecha nas nuvens, algo contorcia seu corpo aterrorizantemente longo de um lado para o outro enquanto voava, sem asas, pelo ar.

O vento era tão forte que Muoru sentia estar prestes a sair voando, porém, resistindo, agarrou-se em seus joelhos e encarou a existência que precisaria confrontar.

A criatura no céu era uma serpente gigante, composta por milhares de espadas.

Talvez fosse por causa da longa distância entre ele e seu oponente, mas, da perspectiva de Muoru, observar a criatura flutuar no ar parecia mais elegante do que desagradável. Seu corpo estranho parecia cobrir toda a lua. Mas então, sua descida mudou e ele se aproximava com a velocidade de uma flecha em queda livre. E à medida que a distância entre os dois diminuía, a sombra da criatura, projetada no chão, parecia crescer sem limites.

Seu corpo era como um imã largado em uma infinidade de agulhas de costura — não, não era bem isso era mais como se fosse feito de espadas de dois gumes, brilhantes, pretas e sem cabo. Ainda que, à primeira vista, se parecessem realmente com agulhas de longe, à medida em que se aproximavam, ele viu que eram lâminas tão largas que não poderia segurá-las com facilidade, mesmo se usasse as duas mãos.

Além disso, elas vibravam com algum tipo de alta velocidade, como uma motosserra, dando a impressão de se parecerem com densos cabelos humanos cobrindo um longo e gigante corpo estreito.

Enquanto o corpo do monstro deslizava de um lado para o outro no ar, de vez em quando, algumas espadas raspavam-se umas nas outras e emitiam um chiado muito agudo. Ao mesmo tempo, as violentas faíscas azuis, que pareciam eletricidade, saltavam e ficavam logo atrás da serpente gigante enquanto subiam no ar e cortavam a noite.

A visão dela descendo de cabeça em direção ao chão era como um julgamento estrondoso caindo diretamente dos céus.

E Muoru estava logo abaixo dela.

Ele era como uma toupeira pega por um tornado. E, no momento em que aquilo fez contato, todo o seu corpo ficou desorganizado, como se tivesse sido jogado em um liquidificador gigante, despedaçando sua consciência. Porém, antes que perdesse todos os sentidos de onde estava, ainda conseguiu sentir que estava sorrindo.

Era uma dor enlouquecedora.

Mas já que era a mesma que Mélia sentira antes, Muoru não pôde deixar de sorrir.

Ele a amava.

E se os dois vivessem em mundos diferentes, ele iria até o mundo dela, mesmo que isso significasse deixar o mundo de luz, o mundo no qual viveu toda sua vida. Nada disso lhe importava... apenas ela.

Apesar de toda a decepção que teve, ele e a garota estavam destinados a ficarem juntos e não havia como escapar disso. Mas ele tinha certeza de uma coisa: depois disso, não haveria mais truques e decepção.

Muoru estava realmente sorrindo, mesmo que parecesse que todos os seus métodos, objetivos e, basicamente, toda sua lista de prioridades tivessem se invertido de forma notável. A única razão para se aproximar dela no início era para conseguir fugir deste lugar. E agora escolheu permanecer, para que assim pudessem ficar próximos.

As partes de seu corpo que foram arremessadas e espalhadas estavam lentamente se reunindo. Sem ser capaz de desviar o olhar do ataque, Muoru assistiu o monstro serpente sem rosto usar seu corpo, composto por inúmeras lâminas, para transformá-lo em pedacinhos.

As vibrantes espadas de dois gumes eram terrivelmente afiadas e facilmente conseguiam cortar não apenas seus músculos, mas também seus ossos como se fossem fios. E em apenas dez segundos, Muoru foi cortado em mil pedaços. Então, seu corpo voltou ao normal depois de um tempo, para logo em seguida ser cortado de novo. E isso aconteceu de novo. E de novo...

Ele viu suas entranhas caírem sob o solo. Viu a cor de seus órgãos e a cor do sangue à distância. Viu sua espinha dorsal, seu líquido cerebrospinal e a meninge que protegiam o cérebro. Também ficou feliz por ter tirado o capacete antes da provação.

Quando seu cérebro foi aberto, por um momento, sentiu-se preso dentro de uma escuridão profunda e puramente vermelha, enquanto o tempo parecia passar de forma lenta. Mas logo após isso, a dor aterrorizante forçou-o a voltar à realidade. Era como se todos os seus dentes do siso estivessem deixando seu crânio em um ato de protesto.

No entanto, havia uma utilidade em ter essa experiência.

Muoru sorria enquanto gritava. A maioria das pessoas que experimentasse este tipo de dor jamais voltariam dela, mas Mélia com certeza passou pela mesma coisa. E por isso, talvez, esta poderia ser uma maneira de se aproximar dela. Ele sorria enquanto aqueles pensamentos bizarros passavam pela sua mente.

Então, gritava por causa do choque de ter seu corpo estraçalhado e espalhado por todo o lugar. Se ainda tivesse os pulmões ou boca para gritar, com certeza o faria, e se tivesse membros para se contorcerem, se agarraria ao chão como um louco. E se mantivesse sua consciência, pensaria em Mélia. Lembrou da cor de seus cabelos, seus sinceros olhos azuis, o gosto de quando beijou o capacete na cabeça dela, o calor de quando ela pressionou a bochecha contra ele e o som de seu coração em suas costas. Estes pensamentos o ajudaram a manter a sanidade através das feridas fatais e sofrimentos.

No instante em que seu rosto foi cortado ao meio como uma maçã, viu que algumas das lâminas do corpo da serpente haviam parado de se mover, como se estivessem mortas. Era um sinal de que, talvez, este inferno não duraria para sempre. Conforme sua consciência retornava, Muoru manteve essa esperança no coração. Ele estendeu seu braço direito totalmente recuperado e tentou parar uma das espadas que o atacavam. Quando agarrou a lâmina vibratória, seus dedos estouraram como pipoca, e a dor escorreu na diagonal de seu ombro direito até seu torso.

Preciso acelerar as coisas um pouco... pensou Muoru enquanto vomitava espumas de sangue e cambaleava no chão. Ainda restavam inúmeras espadas da serpente gigante.

Isso precisa estar terminado até o amanhecer. O sangue perdido estava fazendo sua consciência esvanecer-se. Era como se estivesse começando a adormecer. Acho que está tudo bem por enquanto, pensou Muoru. Até que a parte de baixo de seu corpo não voltasse, não poderia se mover mesmo.

Ele abriu os olhos e olhou para cima. As nuvens desapareceram sem que notasse.

E o céu estrelado estava bonito.

 

CAPÍTULO 5

— Então, diga-me... o quão longe está disposto a ir por ela?

Muoru respondeu de imediato:

— O máximo que eu puder.

Corvo riu:

— Certo. Agora sim foi uma boa resposta... obrigado. — O tom dele parecia ser surpreendentemente amigável e, comparado à sua maneira provocativa de sempre, parecia... ele se atrevia a dizer, bonito. Claro que “bonito” para Corvo tinha um significado diferente do que era para Mélia.

Inconscientemente, a boca torta de Muoru se abriu para falar:

— Você nunca me mostrou nenhum tipo de gratidão antes.

— Bem, não se incomode com isso. Acho que seu coração apaixonado é embaraçoso.

— Ora, seu... — gemeu Muoru, balançando os braços na direção de Corvo em resposta ao insulto, porém, por alguma razão, não o alcançou. Ele achava que se colocasse toda sua energia, poderia pelo menos ser capaz de acertar um único golpe. Corvo zombava enquanto Muoru exalava frustrado, então, pulou de volta para cima da lápide.

Mas o sorriso dele logo desapareceu.

— Se você está pronto para abandonar a vida como a conhece — disse ele de uma maneira cantante —, você deve roubar metade do poder da garota, metade da maldição.

— Sem problema — disse ele.

Não havia nem sequer um traço de dúvida para Muoru. Ele estava decidido no momento em que Corvo disse essas palavras. E talvez também fosse por causa de sua convicção que ele sentia um pouco de esperança.

O guarda sepulcral e a toupeira. Embora houvesse uma diferença absurda entre eles, se o mundo pensasse que não poderiam ficar juntos, algo precisava ser mudado. Ele seria o precursor desta mudança, e este método lhe garantiria seus desejos.

— Mas como faço isso? — perguntou Muoru.

— Em essência, apenas uma pessoa pode ser outorgada com o poder do guarda sepulcral, por isso, caso duas pessoas compartilhem, ele seria dividido em dois. — respondeu Corvo enquanto cruzava suas pernas finas. — Mas para fazer isso, você precisará matá-la uma vez.

Muoru não conseguia acreditar no que ouvira.

— Hein?

Do que este idiota está falando? Por um momento, ficou sem saber o que fazer, mas rapidamente se livrou da hesitação e disse:

— Você quer que eu a leve à luz do sol ou algo assim? Só lamento, não posso fazer isso.

Corvo riu:

— Bem, não me importa se ela não morrer.

— Então, como pensei...

— Você não é um completo idiota, por isso, tente usar sua cabeça. Há outra forma de bloquear o poder da Escuridão. Pode ser mais fraco do que a expor à luz, mas ainda vai funcionar, mesmo à noite. É um método que combina com este lugar, onde as almas humanas repousam. Por favor... pense bem sobre isso. Você já deve ter uma ideia

Enquanto Muoru olhava para Corvo, mordeu os lábios e começou a pensar.

Lembrou-se de toda a conversa que teve com ele.

Pensou sobre o cemitério que se expandia sob seus pés.

Então, olhou para a pá em suas mãos.

Depois, para a lápide em que Corvo estava sentado.

Mass Grave.... um cemitério compartilhado por humanos e monstros.

— Agora entendeu, não é mesmo? — perguntou Corvo, percebendo a mudança na expressão de Muoru.

Ele assentiu:

— Então, essa parte é essencial, não esqueça disso. Se fizer isso e enfraquecer o poder dela, no final... — Sem esconder seu sorriso largo, Corvo explicou o resto de seu plano.

Depois de ouvi-lo, Muoru ficou completamente vermelho e gaguejou:

— É realmente possível?

— Não deve ter problema. E acho que você ficará feliz quando isso acontecer.

Ele mordeu os lábios novamente. Era frustrante não poder contrariar a ideia de Corvo. Por isso, com sentimentos de inquietação vazando de suas palavras, perguntou:

— Está tudo bem mesmo?

— Claro, claro... bem, Mélia provavelmente não vai concordar em envolvê-lo, então você terá que fazer isso à força, só que... — Corvo parou, seu rosto se contorceu, como se tentasse mostrar algum tipo de dor. — Maria gostava muito de Mélia. Ela desejava apenas felicidade na vida de Mélia. Não há dúvidas sobre isso, de fato, apenas quando se trata disso, te falo a verdade absoluta.

Então, Corvo continuou:

— No entanto, Maria não era muito paciente. Não, é mais como se ela não tivesse uma força de vontade extraordinária. A parte demoníaca dentro dela, o desgosto, a dor de não poder morrer... tudo se provou ser muito mais do que podia lidar. E por isso acabou com a própria vida — disse ele. — Tenho certeza, é fácil pensar que um sentimento desses não podia ser evitado, porém..., no final, a única coisa de que se arrepende, é de ter deixado sua irmã mais nova com um destino tão terrível. Talvez fosse apenas covardia, mas Maria estava muito preocupada com Mélia, mesmo não sendo relacionadas por sangue — parou, para então continuar: — E este é exatamente o motivo de ela não conseguir repouso..., por isso, não importa o quê, quero garantir o desejo de Maria. Quero que Mélia seja feliz.

Sinto-me da mesma forma.

Embora tenha ido tão longe a ponto de jogar Corvo em uma armadilha para tentar conseguir extrair informações dele, esta era sua única intenção. As regras do mundo de que veio eram muito diferentes das daqueles que governavam os monstros e o guarda sepulcral. E eles pareciam algo que pessoas como ele não podiam fazer nada. Mesmo se tentasse pensar sobre como enfrentar essas regras, suas escolhas eram extremamente limitadas. Por isso, mesmo assim, não parecia provável que pudesse salvar Mélia.

Ainda assim..., ajudá-la a ganhar a felicidade provavelmente o deixaria feliz também.

Que cara ela faria se eu retirasse toda a fonte de sua dor e sofrimento?

Se fosse possível, mesmo sabendo que era excessivamente egoísta, ainda desejava por um futuro desses. E se alguém pudesse vê-lo neste momento, com certeza pensaria que um desejo desses poderia deixá-lo feliz. Mesmo estando longe de conseguir escapar, em troca, jamais seria capaz de deixar o cemitério novamente.

Será que serei feliz mesmo?

Sem mudar muito de expressão, Muoru sorriu. Era engraçado como não estava nem mesmo tentando pensar sobre todas as coisas que considerou até agora. Desde que veio a este cemitério, a única coisa que pensava era escapar, e antes disso, a única coisa que pensava todos os dias era sobre como viver mais. Porém, no passado, seu único trabalho era cavar buracos, independentemente de quais pensamentos tinha.

— Toupeira-kun, sinto muito — disse Corvo —, talvez, depois disso, você e seu corpo precisarão passar por um sofrimento terrível. — Então, abaixou a cabeça com simpatia.

— Haha. — Muoru riu fracamente, sentindo-se um pouco envergonhado com o que estava prestes a dizer. — Obrigado por se preocupar comigo, mas, para mim, estar aqui e ser incapaz de fazer qualquer coisa é ainda mais doloroso.

 

CAPÍTULO 6

As últimas estrelas desapareceram.

Muoru não conseguia mais ver sequer a lua.

No céu pálido, a estrela mais próxima, o sol, parecia estar se aproximando. Ele conseguia sentir aquela gigante esfera celestial levantando-se logo abaixo do horizonte oriental. E, certamente, a primeira luz da manhã estava chegando, com sua morte vindo logo em seguida.

Seu corpo já estava sentindo seu destino ameaçador. Era uma sensação completamente diferente da de quando o monstro rasgou e despedaçou seu corpo. Na verdade, a sensação era uma dor, a qual parecia ser uma pessoa enfiando a mão diretamente em suas costas, agarrando com força seus nervos centrais ao redor de sua medula espinhal e tronco cerebral e esmagando com firmeza.

A serpente feita de inúmeras lâminas era gigantesca e poderosa. Cada uma de suas lâminas tinha ferido o corpo de Muoru, infligido feridas fatais, então, se tornado imóvel, criando um processo de morte e renascimento que se repetiu por toda a noite.

Porém, apesar da dor que sentiu quando a última lâmina lhe perfurou o peito, quando percebeu que o sangue que saía de sua boca estava diminuindo, sentiu-se aliviado.

Consegui passar por isso.

O corpo longo e massivo do monstro estava agora dentro da cova gigante que cavou. E cada uma das lâminas da criatura, as quais estavam densamente juntas como espinhos em um ouriço, estava manchada de vermelho com o sangue de Muoru. A área que o monstro destruiu não tinha apenas goivas no chão, como se um cocho tivesse sido usado para arar o chão, como também muitos dos túmulos haviam sido arrastados no ataque.

No entanto, agora não era hora de enterrá-lo. Qualquer um poderia fazer isso e, além disso, quando o sol se levantasse, ele e tampouco o monstro seriam capazes de se mover sob a luz.

Depressa...

Com sua pá prateada em uma mão, Muoru correu.

Ele correu até o local bem ao lado do túmulo de Maria, aos pés da árvore onde o rei dos monstros dormia.

Bem... ele tentou correr.

A sombra da Escuridão dentro dele parecia extremamente pesada, como se ele estivesse arrastando uma bola de ferro gigante e uma corrente. De fato, não importava quanta energia colocasse em suas pernas, não conseguia se mover mais rápido do que um cambaleio. E tentar forçar seu corpo a ir um pouco mais rápido drenava toda sua energia. Seu corpo pesado o fez estalar a língua com frustração.

Seus arredores já estavam tão brilhantes que não havia necessidade de um lampião a óleo ou uma lanterna elétrica.

Quanto tempo até o nascer do sol?

Sua mente estava possuída por uma impaciência selvagem, como se tivesse ficado insano, mas seu corpo não seguiu o exemplo.

Esforçando-se ao máximo, Muoru se apressava e, por fim, conseguiu chegar ao seu destino. Com um único olhar, não parecia que havia algo ali. O único movimento era o das folhas agitadas no topo da árvore gigante ao lado do último local de descanso de Maria.

Mas abaixo de seus pés, havia traços definitivos de que a terra havia sido mexida...

Muoru, com cuidado, colocou a ponta da pá no chão.

E tirou a terra, e de novo...

Porém, na quinta pazada, como se não aguentasse mais a espera, jogou a pá de lado e caiu de joelhos. Então, como uma verdadeira toupeira, usou ambas as mãos para remover a terra.

Ele se lembrou da primeira vez em que se encontraram.

Não se esqueça. Não se esqueça da primeira vez que encontrou Mélia.

Ele desmaiou no meio da noite no cemitério e acordou com Mélia o enterrando na cova que acabara de terminar.

Parecia que a posição dos dois havia se invertido agora.

Seus dedos se enrolaram em alguns fios de cabelo castanho-claro, sujo por causa de toda a terra. O cabelo era a vida de uma garota, por isso não pôde deixar de se sentir culpado enquanto os segurava..., porém, comparado a tudo que fizera, sujar os seus cabelos provavelmente era o último item na lista de motivos para ela odiá-lo.

Ainda assim, talvez ela consideraria preferíveis todas as coisas que ele fez até agora do que aquilo que estava prestes a fazer em seguida.

Na fraca luz da manhã, Muoru desenterrou a garota que havia enterrado com suas próprias mãos.

Tudo isso era egoísmo.

Tudo isso para simplesmente satisfazer seus desejos egoístas.

Ele precisava do poder da guarda sepulcral e, já que mais de uma pessoa não poderia tê-lo ao mesmo tempo, precisou roubar da atual guarda, Mélia. Ela era humana, mas ao mesmo tempo, parte dela era A Escuridão. Enterrar seu corpo selava o poder e a enfraquecia, ou, em outras palavras, colocava-a em um estado de morte. Mas é claro, ele não poderia deixá-la assim.

Quando desenterrou todo o corpo, colocou as costas dela em seu colo.

— Agora, isso é essencial. O último passo... — era como se pudesse ouvir a voz risonha de Corvo.

Havia muitos traços de lágrimas nas bochechas de sua amada. Sem pensar, limpou-os, mas não importava quantas vezes repetisse o movimento com seus dedos cobertos de lama, apenas a deixava mais suja. Era como uma metáfora para sua situação atual, repetindo dolorosamente a mesma coisa várias vezes, mas sem sucesso.

Ele colocou sua mão esquerda sob o queixo dela e puxou o corpo inconsciente para mais perto do seu.

Então, como um ladrão de túmulos, Muoru roubou um beijo.

Embora estivesse com os olhos fechados quando o fez, no instante em que seus lábios tocaram nos dela, sentiu uma brilhante luz branca irradiar dentro de suas pupilas. Ele sentiu o gosto de terra e de ferro vindo do sangue. Mas também havia outro sabor, doce e azedo, como uma maçã.

Um pouco devido à sua ansiedade sobre a situação, e outro pouco devido ao seu desejo por ela, ele permaneceu nessa posição inconscientemente, beijando-a por um tempo. Então, usando sua mão direita para sustentar o maxilar inferior, Muoru, com gentileza, abriu a boca dela.

E a escuridão entrou de forma profunda e indulgente no corpo dela.

...

...

...

Aos poucos, houve um sinal de que suas pálpebras fechadas piscaram.

Enterrar Mélia no terreno em que os monstros eram selados era a primeira medida necessária para revivê-la de seu estado de morte. Depois, ele só precisava dar metade da substância que dissolveu dentro dele para o corpo que já estava acostumado com isso. Esses passos ele entendeu, e agora poderia confirmar se Corvo não estava mentindo. Mas a forma na qual precisava devolver a Escuridão era meio...

— Bom dia, Mélia.

Ela instantaneamente ficou ciente de seus arredores e se distanciou do abraço de Muoru. Os torrões de terra presos à bainha de seu manto caíram no chão. A julgar pela expressão em seu rosto, parecia que ela entedia o que ele havia lhe feito algo.

— Muoru... — Ela estava encarando Muoru com um olhar tenso no rosto, como se estivesse usando toda a força que tinha apenas para dizer o nome dele.

Então, abriu a boca novamente, mas parecia hesitar, como se não soubesse o que dizer. Logo depois, ficou vermelha, mas se era por causa do sangue correndo em seu rosto devido à raiva ou vergonha, Muoru não sabia.

No entanto, apesar de estar coberto por sangue e terra, mostrou um grande sorriso. Ele havia visto-a chorando, sorrindo, incomodada e envergonhada, mas esta talvez tenha sido a primeira vez que a viu brava.

Por que diabos também acho que ela é muito bonita quando está brava?

— Meu pescoço dói — disse Mélia com uma voz rígida.

— Sinto muito.

No momento em que ele se desculpou, Mélia abaixou a cabeça e pegou a mão direita dele.

Realmente parece que trocamos de lugar.

Na noite em que descobriu o segredo dela, quando tentou perguntar se poderiam ser amigos, ele também pegou a mão dela da mesma forma, mas era ela quem estava coberta de sangue naquela vez.

— Tudo porque estava preocupado comigo...

Quando Mélia olhou para sua mão, a qual estava totalmente na cor carmesim, mesmo não tendo ferimento algum, ela pareceu entender tudo. A raiva desapareceu de seu rosto e um olhar de tristeza a substituiu.

Realmente não quero ver isso.

Mesmo assim, um alívio extraordinário espalhava-se em seu peito.

— Muoru, eu nunca quis que você passasse por este tipo de dor.

— Não foi por você — disse Muoru com um sorriso —, foi por dinheiro.

O benfeitor lhe pagaria a recompensa por lidar com o monstro. No passado, aquele velho maldito roubou todo o dinheiro que devia ter sido de “Mélia Mass Grave”. Mas não importava quantas pessoas Daribedor contratasse, o Prisioneiro 5722 se recusava a ser colocado no mesmo lugar. E se a quantia da recompensa fosse realmente aquilo que Corvo disse, então ele poderia “comprar” sua liberdade... ou talvez ter um castelo.

Ignorando o sorriso largo de Muoru, Mélia olhou severamente para ele e beliscou sua mão, como se dissesse: “Não minta para mim!”

Não é uma total mentira, porém, é apenas 10% de toda a verdade.

Certo, não era uma grande mentira. Mas o fato de que suas ações fizeram com que a mão quente que o beliscava agora não estivesse completamente coberta de sangue era mais do que o suficiente para justificá-las. Claro, com os olhos azuis dela o encarando, ele não conseguiria dizer isso.

— Você não é uma toupeira honesta mesmo.

Mélia e Muoru olharam para cima ao mesmo tempo e viram Corvo, sentado em uma lápide próxima, olhando para eles de cima.

— Uau, devo dizer que já faz tempo, ou que é a primeira vez que nos encontramos?

No momento em que Mélia reconheceu a figura de Corvo, seus olhos se arregalaram em choque.

— Vo... você... o quê...? — Ela parecia agitada, e a cor sumiu completamente de seu rosto, como se tivesse visto um fantasma ou algo do tipo.

— Não, não é a primeira vez... sua maneira de falar e a cor de seus olhos são diferentes..., mas por quê... por que você se parece com Maria?

De repente, Mélia tentou se levantar, mas por ter ficado enterrada por tanto tempo, suas pernas pareciam paralisadas e logo ela caiu no chão novamente. Então Corvo saiu de cima da lápide com um sorriso no rosto enquanto se aproximava de Mélia e oferecia uma mão.

Com um rosto coberto de confusão, Mélia tentou agarrar a pequena mão dele. Mas então, Corvo saltou de volta para a lápide, sem dar indício algum..., fazendo com que a mão de Mélia agarrasse apenas o ar. O movimento dele foi gracioso e suave, como se não possuísse peso algum. Porém, desta vez, nem Mélia nem Muoru, que estava logo atrás, conseguiram fingir estarem surpresos.

— Me desculpe, mas mesmo que eu seja Maria, também não sou Maria... sou Corvo. Todos os vários guardas sepulcrais que se suicidaram, sendo queimados sob o sol.... Sou um espírito nascido dos restos de suas almas deixadas para trás. Então de novo, sou Maria, mas também não sou ela — disse Corvo. — No entanto, não só parece que a aparência física dela se misturou com a minha, como também herdei seu coração... O que, é claro, significa que também te considero muito, Mélia, assim como ela.

Por um momento, a expressão de Mélia ficou triste quando percebeu que a pessoa diante de seus olhos não era sua irmã mais velha.

Logo, entretanto, balançou a cabeça na direção de Corvo e disse:

— Certo. Você também tentou me ajudar. — Então, um sorriso apareceu vagarosamente no rosto dela, como se os sentimentos em seu coração estivessem saindo fluindo até sua expressão.

— Isso mesmo. Este era o tipo de rosto que eu queria ver — disse Corvo, satisfeito e com um sorriso alegre.

Finalmente acalmando-se, Muoru, irritado, disse:

— Qual é, não me diga que aquela “associação de vítimas” era uma explicação decente. E a propósito, os “supostos fantasmas” não aparecem somente à noite?

Ele percebeu que suas reclamações eram um pouco toscas e irrelevantes, mas ainda estava confuso e não conseguia pensar em nada mais para reclamar.

— Pois é, também achei — disse Corvo, apontando para o próprio peito. — Eu existo a partir dos fragmentos das almas que estavam ligadas aos demônios. E todas essas almas morreram sob o sol. Talvez seja por isso... Nossas almas congelaram sob o sol e agora não podem sair a não ser durante o dia. E, como consequência, mesmo quando Maria apareceu como um fantasma, não era capaz de ver sua amada irmã mais nova.

— Tenho certeza que foi porque a Maria dentro de você estava amaldiçoada — disse Mélia, e Corvo então sorriu, como se percebesse que trouxera a punição sobre si mesmo.

Então, ele se virou para Muoru.

— Bem, corvos são cegos à noite.

— Meu deus, você é cheio dessas manias... — Ele estava prestes a praguejar, mas, de repente, uma dor forte lhe percorreu as costas e fez seu corpo dobrar levemente. A dor era diferente daquela de quando o monstro estava arrancando seus membros. Desta vez, ele conseguia senti-la no fundo do coração.

Então, Muoru virou o pescoço e viu a luz solar da manhã acertando suas costas.

Mesmo que fosse a mesma luz que via todas as manhãs quando acordava nos últimos dezesseis anos, agora, sentia que era o reflexo da lâmina de uma guilhotina.

— Não olhar para o sol também destrói os olhos de uma toupeira?

É claro que não havia esquecido aquilo. A consequência de pegar o poder da Escuridão significava que o guarda sepulcral morreria se ficasse sob a luz do sol. Porém...

Mélia gemeu levemente.

Ela também estava sob a luz. Estava olhando estranhamente para seu próprio braço direito estendido para fora da bainha do seu manto. Muoru, por outro lado, estava achando difícil permanecer assim e sentou-se devagar no chão.

Uma dor estranha e terrível lhe percorreu o corpo.

Na verdade, estava se sentindo mais desamparado do que na vez em que removeu a coleira e uma fonte de sangue jorrou de seu pescoço.

Porém, desta vez...

Mélia piscava sem parar enquanto olhava para o seu corpo.

— Está enfraquecendo?

— Bem, a Maria dentro de mim completou seu objetivo. Por isso, deixarei vocês dois a sós por um tempo. Logo precisarei acertar as contas com aquele maldito velhote. — Corvo olhou para os dois sofrendo no chão e se levantou. — Toupeira-kun, sinto muito. Parece que eu te usei.

Corvo acenou a mão e seu corpo pequeno desapareceu de verdade no ar. A sua partida foi tão repentina quanto a chegada.

Você nem precisa se desculpar... acho que usamos um ao outro.

Corvo: uma pessoa estranha que só poderia aparecer pela manhã; um fantasma nascido a partir das almas dos guardas sepulcrais mortos. A existência de Corvo, que mais parecia uma piada, foi um grande erro nos cálculos de Daribedor. Mesmo assim, Muoru imaginou que devia ter sido capaz de completar tudo sem a ajuda dele..., entretanto, se também poderia ter feito isso ou não era outra história.

Este corpo é um pouco pesado... Muoru formou um punho com sua mão direita, bem devagar, e, então, abriu-a.

A sombra no chão mudava com seu movimento. E, naturalmente, sentia-se conectado à verdadeira forma do monstro, descansando profundamente naquela escuridão. Ele odiava a luz e estava tentando fazer com que o corpo de Muoru parasse de se mover. Além disso, estava causando uma mudança anormal em seu corpo, a qual também o deixava com dificuldades para se levantar.

No entanto...

Dentro da presença abaixo dele, no monstro que parecia invocar o medo, havia algo mais, alguma coisa diferente.

Entendi... é a Mélia.

A razão para os dois ainda estarem vivos era porque compartilharam a fruta da Escuridão. Como resultado da divisão de poder, suas partes humanas estavam tentando compensar e resistir à Escuridão, a qual também revidava... pelo menos era isso o que sentia.

— Mélia... — Muoru começou a falar, mas, de repente, parou.

Mélia estava olhando para a distância vazia e, por um tempo, moveu apenas uma de suas mãos de um lado para o outro. Então, como um pêndulo que havia perdido sua inércia, sua mão parou lentamente com sua palma em direção ao sol.

Ela sorriu como se estivesse sendo pinicada pela estranheza da luz solar que não via há anos. Não era o melhor sorriso, na verdade, era um pouco desajeitado, como se não estivesse acostumada com aquela sensação. Ainda assim, ao vê-la tão feliz, seu coração se alegrou.

— Dói, mas... não me importo.

Diante do olhar atento de Muoru, a luz do amanhecer a iluminou belamente. Ela estava muito, muito mais linda do que quando a viu sob o luar escuro. Para ele, parecia que todo o corpo dela, do cabelo sujo de terra até suas bochechas e palmas, estava brilhando com um dourado fraco.

Quero vê-la sorrir sempre, desejou Muoru.

No entanto, naquele exato momento, Mélia mergulhou em seu peito e o abraçou com força, essencialmente dissipando seu desejo.

Me pergunto se há alguém que pode ver o rosto dela agora...

Enquanto sentia a doce dor do sol, passou a mão com gentileza pelos cabelos dela, deslizando-a até suas costas.

 

 


Notas:

1 – No Japão, como provavelmente em outros países, todos precisam registrar suas identidades em um suposto “registro familiar”. É basicamente um registro de cada família no Japão. É algo direcionado apenas à família, então, basicamente, o autor está querendo dizer que Mélia não possui um. O que explicaria porque é chamada de “Mélia do Mass Grave” em japonês.



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