Volume 1
Capítulo 3: Crianças Problemáticas I
O corpo congelado da criatura despedaçou-se ao colidir com o solo, estilhaçando-se em fragmentos gelados que se espalharam com um som seco, e juntaram-se a outros restos de carne congelada ao redor de Shiori Hayami.
A mulher havia perdido a noção do tempo passado ali; por mais Oniros que derrotasse, a batalha parecia interminável.
“São Fobetors… Não há cristal espiritual dentro do corpo deles.
“Eles possuem ampla vantagem neste ambiente; as árvores proporcionam a cobertura necessária para ataques furtivos e proteção…
“Continuar com essa luta eventualmente me levará à derrota por cansaço”, analisou Shiori, simultaneamente usando o ar frio de sua mão direita para congelar mais um monstro.
Decidiu, então, levar a batalha para um local mais aberto e aproveitaria a oportunidade para procurar Mariana.
A área onde a zona espiritual se instaurou já foi um antigo parque florestal; sua fisionomia era perfeita para aqueles Fobetors. As criaturas, magras e pequenas, tinham garras afiadas e crânios animalescos usados como capacete. A vantagem seria abismal, com ou sem a zona.
Perseguida por inúmeros Oniros, Shiori avançava entre as árvores. Ela já havia definido algumas teorias sobre aqueles seres, mas preferia focar nisso após se reunir com Mariana.
Apesar de trajar um kimono — devido à tradição do clã Hayami —, Shiori facilmente superava a velocidade de locomoção das criaturas.
Mesmo com a visibilidade prejudicada pela névoa, avistou um caminho de pedras que era usado por antigos visitantes do parque.
Identificou o padrão na direção em que as pedras estavam posicionadas e seguiu por ela.
Logo, Oniros surgiram de todas as direções, forçando-a a agir rapidamente. Com movimentos ágeis e elegantes, esquivou dos ataques.
Num salto preciso, alcançou um galho alto, abrindo distância de seus inimigos.
De imediato compreendeu que não faziam parte do grupo que a perseguia.
“Estão por todo o parque”, constatou Shiori.
Os Fobetors se reuniam abaixo de onde estava. Sabia que não poderia permanecer ali por muito tempo; a breve pausa lhe foi útil para organizar suas ideias.
Enquanto recitava um cântico, seu hálito frio tornava-se visível à medida que a temperatura caía e, abaixo de seus pés, o brilho azul-gélido de um círculo mágico se intensificava.
— Do branco frio ao vendaval da solidão, a vida encontra seu fim ao soprar desta estação.
O brilho desapareceu com o círculo, e dois leques surgiram em suas mãos: um preto com o kanji de inverno em branco, e um branco com o kanji em preto.
Os Oniros subiram a árvore com agilidade, suas garras extremamente afiadas facilitando a escalada.
Calmamente, Shiori agitou seu leque branco e ordenou:
— Yuzu, traga-me neve.
Com a ordem dada, bolas de neve se formaram à frente dela.
— Yu, despedace-os.
Com um movimento firme, porém elegante, de seu leque preto criou um poderoso vendaval que disparou as esferas brancas contra os monstros.
As bolas de neve atingiram os Fobetors com precisão letal, perfurando-os violentamente e causando um caos de sangue e restos mortais espalhados por todo o lado.
Shiori aterrissou de volta ao chão, observou brevemente a bagunça ao seu redor, com um sorriso satisfeito, agradeceu seus fieis ajudantes:
— Bom trabalho, Yuzu e Yu.
Ela voltou a correr em direção à área aberta.
Obviamente, não estava às cegas; conhecia vagamente o lugar e sabia que havia uma praça central no final do caminho de pedras.
Ao alcançar a área desejada, Shiori deparou-se com a imagem de um grande Fobetor deitado. Embora compartilhasse a mesma aparência dos menores que enfrentou, sua magnitude era muito maior, extremamente pesado e com estranhos buracos em cada lado do abdômen.
Das cavidades na barriga da aberração surgiam criaturas idênticas às que havia enfrentado. Essa era a peça que faltava para a Hayami montar o quebra-cabeça.
“Os pequenos são minions desse grandão”, constatou Shiori, com um sentimento de clareza se formando em sua mente.
Antes de tomar qualquer medida contra o monstro, a mulher percebeu a necessidade de resolver uma situação paralela.
Do outro lado da praça, um grande tumulto chamava sua atenção: dezenas de Oniros cercaram e atacaram uma mulher.
A figura em questão era uma mulher de pele negra, com olhos cor de mel por trás de óculos trincados e cabelos coloridos em dreadlocks. Ela enfrentava cada monstro com uma combinação de golpes pesados e velozes, destruindo-os implacavelmente.
As marcações brilhantes em seus membros indicavam o feitiço de fortificação corporal utilizado em seus ataques. No entanto, sua técnica não era composta apenas de poder destrutivo; a jovem mulher era visivelmente uma mestre em artes marciais.
— Vocês são persistentes, não são? Feiosos! — disse a mulher, enquanto pulverizava a cabeça de um Fobetor com um golpe poderoso.
Apesar de suas habilidades impressionantes, a respiração pesada deixava claro que sua resistência logo chegaria ao limite.
“Ah, que droga… Eu tô cansada; faz muito tempo que estou matando esses feiosos e não acaba nunca.
“Tenho que terminar aqui, matar o gordão deitado mais à frente e ainda ir trabalhar.
“Que saco… Ser adulto é uma merda”, pensou a mulher.
— Jardim de inverno! — Com um comando firme, o chão ao redor da mulher de óculos congelou instantaneamente, transformando os Oniros em estátuas de gelo.
— Isso é… — balbuciava a mulher.
— Ohayo, Mari-chan. Você cresceu muito desde a última vez que a vi — Shiori disse, ao se revelar a Mariana.
Ao reconhecer a Hayami, a Silva correu até ela com um sorriso largo no rosto.
— Shishou! Eu não pensei que a veria tão cedo, hihihih… Fico feliz de estar errada. Obrigada — disse Mariana, meio sem jeito.
A mulher de kimono fechou seu leque preto e, simultaneamente, as estátuas de gelo dos Oniros explodiram em milhares de pedaços.
Com Mariana saltitando ao seu lado, Shiori caminhou em direção ao grande Fobetor. A animação da mulher de óculos era visível no brilho de seus olhos.
— Esses Oniros não param de vir. Acho que precisamos matar primeiro o gordão. Não acha, Shishou? — A animação de Mariana era comparável a de uma criança.
— Isso mesmo. A princípio, pensei que fossem um grupo de Fobetors iguais, provavelmente de rank A. Entretanto, considerando que nenhum deles tinha cristais espirituais e que o grandão imóvel estava gerando essas unidades, podemos concluir que ele é o corpo principal, e os pequenos são seus minions.
As duas pararam a poucos metros do Oniros principal; a criatura as observava, mas não se movia e nem tentava criar mais cópias.
— Ao menos esse gordão é super lento. Fica vendo, Shishou, vou acabar com ele rapidinho — disse Mariana, enquanto se preparava.
— Mari-chan…
Sem esperar Shiori terminar, Mariana saltou; o chão que estava se quebrou com a força do impulso. No ponto mais alto do salto, um grande círculo mágico nas cores verde e amarelo brilhou atrás dela.
— Que meu desejo seja ouvido diante do mar de estrelas. — O círculo desapareceu ao mesmo tempo que uma enorme quantidade de energia mágica se concentrou no calcanhar direito da mulher. — Impacto meteoro!
Mariana caiu em direção ao monstro; sua velocidade aumentava à medida que se aproximava do alvo.
E então, com o Oniros ao seu alcance, desferiu um chute de calcanhar contra a criatura. Apesar do tamanho limitado da magia, a energia concentrada foi liberada como um verdadeiro cataclismo.
A névoa ao redor não foi capaz de reduzir o brilho intenso do golpe.
— Não… é possível… — disse Mariana, surpresa. Seu ataque estava sendo bloqueado por uma poderosa barreira de energia.
Com o choque dos feitiços, a mulher foi lançada para longe.
— Mari-chan, acredito que te ensinei a ser mais cuidadosa — disse Shiori.
— Aí… Eu não esperava que esse rank A fosse tão forte — reclamou Mariana, voltando para o lado da mulher de kimono.
— Vejo que continua tão precipitada como sempre. Você não é professora? Analise a situação antes de agir.
As palavras da Hayami eram duras, mas não pareciam afetar a Silva, que estava feliz por ouvir os conselhos de sua professora mais uma vez.
— Esse Fobetor não é um rank A. Ele é um rank S — afirmou Shiori, com os olhos fixos na criatura imóvel sob a barreira.
— Esse molenga é um S?
— Ele é muito grande e pesado, incapaz de caçar por si mesmo. Por isso, cria esses minios para fazerem o trabalho. Também podemos assumir que, como não consegue se mover com agilidade, sua defesa compensa essa fraqueza — analisou Shiori.
Vendo o olhar concentrado de Mariana, ela continuou:
— Ele não criou mais minions. Talvez não consiga mais fazê-lo devido à grande quantidade já produzida. Meu palpite é que em breve deverá partir para a ofensiva.
— Você é incrível, Shishou! Sou muito grata por ter tido a honra de ser ensinada por você — disse Mariana, invadindo o espaço pessoal de Shiori com entusiasmo.
A alegria nos olhos da mais nova era notória. Suas mãos estavam juntas, apertadas em pura empolgação; sua voz alegre e divertida, mas carregada de profunda admiração pela mais velha.
Shiori, por sua vez, empurrou o rosto da ex-aluna para longe enquanto, tentava esconder um leve rubor em suas bochechas alvas.
— Idiota, não é hora para bajulação…
— Owou, não esperava te encontrar aqui, Shiori-chan. — Ecoa uma voz misteriosa.
Mariana olhava para todos os lados na tentativa de encontrar o responsável. Porém, Shiori não parecia surpresa ou mesmo curiosa, calmamente olhou para o céu e disse:
— Já chega de suspense. Revele-se de uma vez, Diana!
Uma luz brilhou do céu cinzento e, de lá, uma figura semelhante a um anjo surgiu.
— Não precisa se estressar, Shiori-chan. Você já é uma mulher de idade, pode ser perigoso — dizia Diana.
A luz desapareceu e as características físicas da mulher foram reveladas.
A jovem possuía pele e cabelos de um braço etéreo, sua aparência era pura, quase mística. Suas características albinas só não eram mais chamativas que seu único olho à mostra; a cor vermelha e a pupila de forma singular eram fascinantes.
Tais características indicavam a origem nobre da jovem mulher. Ela era o orgulho de uma das três famílias de Guardiões Espirituais.
Diana Heaven pairava sobre as duas mulheres, usando asas de energia luminosa.
— Vejo que se esqueceu de como se deve tratar os mais experientes. Talvez eu deva corrigir esse comportamento, Diana — disse Shiori, com os olhos semicerrados.
Os pés da Heaven enfim tocaram o chão, em sincronia ao desaparecimento de suas asas. Com um sorriso de raposa estampado em seu rosto, colocou-se ao lado da Hayami.
— Vamos, Shiori-chan, já é hora de se aposentar, não acha? Você já está, tipo, super velha, né? Uns oitenta anos no mínimo — ironizou Diana.
Uma veia saltou da testa da mulher de kimono. Mariana e Diana sentiram a temperatura cair.
— Tenho quarenta e três anos. Não tenho a intenção de me aposentar tão cedo… Porém, Diana, se continuar com a falta de respeito, eu garanto que você não chegará a ver o dia de amanhã — declarou Shiori.
A cada palavra da mulher de olhos azuis, um arrepio era sentido pela jovem de olhos rubros.
Diana engoliu em seco; por mais que gostasse de provocar todos ao seu redor, não queria a fúria da Hayami sobre si.
— É brincadeira, brincadeira, hahah… Estou muito feliz em te ver — disse a albina, com as mãos em sinal de rendição.
Curiosa com a interação de Shiori e Diana, Mariana perguntou:
— Shishou, quem é ela?
— Francamente, devo dizer que todo mago deve conhecer as famílias de magos que atuam em seu país — advertiu Shiori. Gesticulando desinteressadamente em direção a Diana, continuou: — Ela é Diana Heaven, futura herdeira da família Heaven… e também é minha segunda e última aluna.
— Eu sei quem são os Heaven; se tivesse dito o nome da família logo de cara… — murmurou Mariana, tentando disfarçar o constrangimento.
— Shiori-chan, por que parece que você não quer falar de mim? — Diana fazia beicinho enquanto tentava, sem sucesso, simular um choro.
— Porque você é problemática… Ou melhor, se tornou problemática.
— Cruel, eu estava com tanta saudade — disse Diana, dramaticamente.
Shiori conhecia Diana e sabia que, apesar da personalidade, ela era uma boa garota.
— De qualquer modo, acredito que tenha vindo dar um jeito nesse aqui. — Apontou em direção ao Fobetor, que continuava imóvel.
— Não necessariamente… Mas a busca será mais fácil sem os minions vagando por aí — disse Diana, seu tom de voz estava impregnado pelo desinteresse.
Por mais que houvesse uma clara intenção de aparentar estar entediada, Shiori conhecia a albina o suficiente para distinguir traços quase imperceptíveis de ansiedade em sua voz.
Não era normal, entretanto, ler os verdadeiros sentimentos de um Heaven. E isso era ainda mais verdadeiro quando se tratava de Diana Heaven.
— Você está procurando alguma coisa? — perguntou Mariana.
Ao perceber que a mulher de óculos se dirigia a ela, Diana inclinou sua cabeça e fixou seu olho carmesim em resposta.
A sensação daquele olhar deixou a Silva descontável; era opressor e invasivo, como se estivesse sendo despida e seus segredos estivessem sendo revelados.