Spirit Gate Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 2: Ideais Inabaláveis I

A compra de material escolar de Brendan terminou, o que deveria ser positivo, mas não era. Algo estava errado, e ele não sabia o quê.

Os dois adolescentes já estavam no ônibus, fazendo o caminho que os levaria até a casa da garota. O veículo — como de costume — estava praticamente vazio, e a viagem seguia silenciosa.

Normalmente, passar um tempo tranquilo e silencioso ao lado de May seria muito apreciado por Brendan. Ambos eram assíduos apreciadores da calmaria.

Mas, dessa vez, havia algo errado; o silêncio não era confortável. Muito pelo contrário. 

A apreensão fazia com que o herdeiro da família Luster se sentisse como um réu em um tribunal. Parecia que, a qualquer momento, a água poderia transbordar.

Se fosse qualquer outra pessoa, ele ignoraria, pois já estava acostumado com o desprezo alheio. 

Mas May era diferente. Brendan não podia permitir que algo assim ficasse entre eles. 

Reunindo coragem, decidiu perguntar o que estava acontecendo.

A menor menção de dizer algo fez a garota reagir. May o empurrou contra a lateral do veículo, com os olhos marejados e queimando de raiva. Ela gritou:

— Você realmente ia perguntar?! Você não pensa em mais ninguém, não é, Bren-chan?! — May segurava a nova camisa de Brendan com força.

Ela era menor que ele, e não era necessário ser um gênio para perceber quem era mais forte.

No entanto, diante aquela expressão tristonha no rosto da menina, o garoto se sentiu impotente.

— Você deixou aquele Oniros te matar! Se não sabe, foi isso o que você fez, baka! — esbravejou May.

Por mais que não houvesse muitos passageiros, ainda havia alguns, além do próprio motorista. 

O Luster olhou preocupado, observando o entorno viu algumas leves distorções no espaço. A Hayami havia levantado uma barreira para isolar o som.

“Então é por isso que ela estava tão quieta”, constatou Brendan.

— Você não entende, não é? — A garota soltou a camisa do rapaz e desviou o olhar. — Eu odeio isso, com todas as minhas forças, eu odeio isso. Eu não quero que você morra… mas… para você tanto faz, não é? Você não pensa em como Kaasan se sentiria? Você não pensa em como eu ficaria se… se eu perdesse você?

Aquilo o atingiu como um soco.

"Eu sou um idiota, essa é uma das poucas certezas que tenho na vida. Como um idiota, estou acostumado a fazer coisas das quais me arrependo. Na maioria das vezes eu relevo e rio da minha própria idiotice…

“Mas ver a May dessa forma, demonstrando tristeza e com lágrimas nos olhos, me faz pensar que eu deveria me esforçar um pouco mais para não ser tão idiota”, refletiu Brendan.

May mantinha seu olhar fixo em suas mãos sobre o colo. O brilho naqueles olhos cor de safira, normalmente fortes e confiantes, desaparecia pouco a pouco.

Ver aquela cena fazia o coração do menino bater alto. Sua respiração acelerava,  enquanto as imagens da luta contra o Fântaso voltavam a ele.

O erro que cometeu era óbvio; seu poder em muito superava o do rank B. Se tivesse lutado a sério desde o início, o confronto terminaria rápido e sem feridos.

“Posso contar nos dedos de uma mão a quantidade de pessoas que genuinamente se importam comigo. E mesmo assim, não sou capaz de retribuir o mínimo… Que péssimo amigo eu sou”, pensava Brendan.

Mesmo depois de um ano separados, a garota não pensou duas vezes em ajudá-lo — sendo que o pedido foi feito de última hora. Não apenas isso, Brendan sabia muito bem que ela fizera muito mais…

Eles esperaram muito para se reencontrarem; estavam ansiosos para isso.

E agora, o rapaz sentia que tinha estragado tudo.

Brendan respirou fundo e, aceitando seu erro, disse:

— Me desculpa, May. Eu fui um idiota de novo. Vou levar meu trabalho mais a sério da próxima vez.

— Quantas? — perguntou May, sem olhar para ele.

Brendan levantou uma sobrancelha com o questionamento da garota.

Ao perceber a demora da resposta, May virou-se para ele e indagou:

— Quantas mortes essa semana?

Com isso, o rapaz encontrou uma forma de tentar acalmar a garota.

— Apenas uma — respondeu Brendan.

Após um suspiro, o brilho no olhar da jovem retornou.

— Ao menos isso. E que não se repita; a Benção de Bastet fica mais fraca com o passar dos anos, você não deve confiar tanto nisso — disse May, com a voz firme e um olhar sério no rosto.

O herdeiro dos Luster sabia que a garota tinha razão.

A Benção de Bastet era a principal habilidade dos membros da família Luster.

Considerada por muitos a benção mais poderosa entre as três famílias de Guardiões Espirituais, ela concedia uma quantidade ilimitada de mana e energia.

Suas principais características, no entanto, eram as habilidades de cura, regeneração super veloz e ressurreição.

Havia também algumas limitações, sendo uma delas a diminuição gradual do número de vezes que era possível reviver. Com a quantidade inicial — a partir do primeiro ano completo de vida — sendo de nove vezes por semana, esse número caía duas vidas extras a cada dez anos.

Brendan completaria dezessete este ano; ele tinha sete vidas extras por semana até completar vinte e um.

O herdeiro dos Luster entendeu o ponto de sua amiga, mas algo o incomodava na forma de pensar dela.

— Você diz que eu devo ser mais cuidadoso e que não devo contar com minhas vidas extras; porém, você só tem uma vida. Quem deveria ser mais cautelosa é você — disse Brendan.

— Ara, que tentativa fútil. Seu argumento é frágil e sem evidências para sustentá-lo. Eu nunca estive nem perto de morrer — argumentou May.

Brendan revirou os olhos divertidamente; ele sabia que a resposta dela havia sido péssima, contudo o sorriso triunfante no rosto da amiga foi o suficiente para fazê-lo aceitar a derrota.

Os dois voltaram a se calar, mas não era mais aquele silêncio opressor que outrora pairava sobre eles. Agora estavam apenas aproveitando a viagem em silêncio, apreciando a companhia um do outro.

Não demorou muito para chegarem em seu destino.

  • ••

A casa da Hayami ficava relativamente próxima ao apartamento do Luster. Embora estivessem em bairros diferentes, a casa dela era tão próxima que, se viessem do apartamento do garoto andando, não gastariam mais de quinze minutos em um ritmo lento.

A região de Serenity onde May morava era um bairro de classe média, com casas geminadas, cercas baixas e belos jardins.

O ambiente tranquilo e pacato era bem visto não só pelos moradores, mas também pelos pets da região.

Enquanto caminhavam lado a lado, Brendan teve sua atenção atraída por um pequeno gato preto dormindo na varanda de uma casa. O animal parecia tranquilo e à vontade, uma representação física da atmosfera daquela região.

A lua brilhava em todo o seu esplendor no céu sem nuvens. O rapaz apreciava a sensação da brisa fria da noite soprando sobre seu corpo, aquilo quase o fazia esquecer do calor infernal que sentira pela manhã.

Eles estavam a poucos metros da casa da jovem, e as ruas estavam praticamente vazias.

Conforme se aproximavam da residência de May, ambos diminuíram os passos ao mesmo tempo. Não era planejado, e nem mesmo precisaram fazer contato visual para isso.

Brendan olhava de canto de olho para May; os longos cabelos negros da garota voavam com a brisa noturna. Sua imagem parecia magnífica sob o brilho da lua.

“Eu queria poder capturar esse momento para sempre e guardar em um lugar onde apenas eu pudesse encontrar… 

“Mas ela não gostaria que eu a fotografasse agora.

“Já sei, vou desenhá-la, apenas preciso gravar bem essa imagem na minha mente”, os pensamentos de Brendan foram interrompidos.

— Bren-chan, poderia parar de me encarar, por favor? Sei que sou linda, mas peço que tenha modos. Isso é rude — disse May. Por mais que tentasse fingir desconforto, o sorriso travesso no rosto da menina denunciava o contrário.

— Eu não estava encarando. — Mentiu Brendan.

— Ara, ara, acho fofo como você acredita ser capaz de me enganar.

O tom alegre da conversa era sedutor e facilmente os levaria a se perderem no mundinho próprio deles.

Entretanto, Brendan não podia deixar isso acontecer; ele ainda tinha uma coisa a fazer.

— May… obrigado.

— Nande sa? Ahem, digo… Se eu não tivesse ido junto, tenho certeza que um preguiçoso como você aparecia na escola com o material do ano passado. — A surpresa inicial da Hayami foi logo corrigida por uma tentativa de desvio de foco.

“Não precisa me atacar só porque você está com vergonha”, pensou Brendan.

— Além disso, também quero agradecer pelo café da manhã que você fez, estava ótimo — ele falava um pouco sem jeito.

— Ah, certo. Obrigada, eu…

— Tem mais, quero te agradecer por ter feito uma faxina no meu quarto. Você sabe que sou um idiota e adoro procrastinar, vou tentar limpar semanalmente o meu apartamento de agora em diante.

— É… Bren-chan, pode parar com isso? — A expressão no rosto de May demonstrava certa decepção.

Aquilo deixou o jovem Luster confuso, ele acreditava estar fazendo o mínimo ao agradecer a garota.

— Parar com o que? — Brendan não entendia o porquê da reação da amiga.

— De me agradecer por essas coisas. Juro que não é um problema. Pode-se dizer que até me serve de treino — respondeu May.

— Treino? Treino para quê?

Estavam muito próximos da casa dela, mas o questionamento de Brendan o fez parar em seu caminho. May continuou com mais alguns passos à frente dele.

A garota girou em seus calcanhares e voltou-se para o garoto.

— Você verá, Bren-chan. Acredite em mim, farei o meu melhor — disse May, com um sorriso no rosto enquanto suas bochechas coravam.

Brendan sentia seu mundo congelar, seus olhos negros se dilatavam para a bela imagem a sua frente.

O rapaz já havia ressaltado a beleza da bela dama diversas vezes só naquele dia, mas a visão diante dele fazia parecer que mesmo um milhão de elogios não faria jus ao quão linda ela realmente era.

Para Brendan, May emanava um brilho tão único e puro que ofuscava a pobre lua que, até aquele momento, lutava para ser a grande estrela da noite.

O doce sorriso junto aquela expressão inocente fazia seu coração palpitar intensamente.

O jovem Luster se preocupava genuinamente com a possibilidade de sofrer um ataque cardíaco.

— Certo, então eu… Eu também farei o meu melhor — Brendan falou, assim que saiu de seu estupor.

Ela não disse mais nada, e o garoto também não tinha vontade de dizer alguma coisa. Haviam chegado à frente da residência Hayami e em breve deveriam se despedir.

— Acho que é isso. Devo voltar para minha casa agora — Brendan disse, decidindo tomar a iniciativa.

— Não! Digo… Ahem, ahem, você pode entrar se quiser. Kaasan ficaria feliz em te ver — sugeriu May.

Brendan amava Kaasan como uma segunda mãe, mas ele sabia que levaria uma bronca da mulher mais velha e queria evitar isso, ao menos por hoje.

— Vou deixar essa bronca para próxima vez, hehehe — respondeu Brendan.

— E você merece uma boa bronca mesmo. Pena Kaasan ser tão mole com você. Isso é tão injusto, você é o queridinho dela. — A Hayami cruzou os braços enquanto franzia a testa.

Uma gota escorreu pelo rosto do rapaz.

— De qualquer forma, obrigada por me acompanhar até em casa. — May evitava olhar diretamente para Brendan.

— Era o mínimo que eu poderia fazer — disse o garoto. Ele sabia que não era necessário tanto drama; no dia seguinte, iriam juntos para escola. — Bom, vou indo.

— Espera! — May segurou firmemente a barra da camiseta de Brendan.

— O que?

— Quero poder te agradecer corretamente — a garota disse em tom baixo. Ao ver a expressão de confusão no rosto do rapaz, continuou: —  Você sabe… Por ter me acompanhando até em casa. Feche os olhos.

— Oi?

— Só faça… Onegai — sussurrou May.

Ele fez como foi pedido. Fechou seus olhos e esperou o que quer que sua amiga de infância fosse fazer.

Era inegável a ansiedade crescente. May nunca tinha feito algo assim, Brendan também nunca sentiu seus sentimentos tão aflorados como agora.

“Um ano fez tanta diferença assim?”, pensou Brendan.

Nada acontecia, e Brendan só estava ciente de que May ainda estava presente por ouvir sua respiração.

O rapaz sabia que fazer com que ele ficasse parado como um idiota não fazia o estilo de humor da garota, então resistiu ao impulso de abrir os olhos.

As mãos pálidas alcançaram os ombros do mais alto, forçando-o a se abaixar. Com o rosto do menino ao seu alcance, a jovem pressionou seus lábios contra a bochecha dele.

A sensação que sentia era algo completamente novo. A respiração quente em sua orelha e o toque macio em sua bochecha duraram apenas alguns segundos, mas foi mais que o suficiente para fazê-lo se sentir nas nuvens.

Ao recobrar os sentidos, Brendan abriu os olhos e viu que May já estava na porta de sua casa.

“Quanto tempo passou desde que ela se afastou de mim?”, perguntou-se Brendan.

— Mais uma vez, obrigada por me acompanhar — May disse, enquanto destrancava a porta.

O Luster via o rosto corado da Hayami e sentia que devia dizer algo antes dela entrar.

— May, eu não vou permitir que nos separem de novo. Eu reforço minha promessa; sempre estarei ao seu lado!

Ao ouvir as palavras de Brendan, May sentiu seu coração aquecer novamente. Ela sabia que os vizinhos muito provavelmente estavam os espiando, mas realmente queria responder.

— Eu também! Prometo estar ao seu lado para sempre!

Os corações dos dois batiam freneticamente. Na cabeça de ambos, pairava o pensamento de ignorar todos os problemas vigentes e futuros e se declararem. 

Respirando fundo, Brendan disse:



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