Spirit Gate Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 1: O Último Dia Livre do Nosso Verão foi Mais Problemático do que Deveria I

— May, sempre… estarei… ao seu lado… —  balbuciava Brendan enquanto dormia.

O sonolento Luster foi forçado a abrir os olhos pelo som estridente do despertador de seu smartphone. 

A luz solar que atravessava as cortinas esquentava seu corpo e o encorajava a se desvencilhar das cobertas. Rapidamente, esticou o braço esquerdo para desligar o som irritante.

Ele pretendia voltar a dormir. Não sentia mais dor e estava cheio de energia, mas isso não o impedia de aproveitar mais o sono. 

Não tinha certeza, mas acreditava que não dormira a quantidade habitual nessa última noite.

Um leve e discreto limpar de garganta pôde ser ouvido pelo garoto, fazendo sua atenção se voltar para a direção do som. Aquela ação foi claramente intencional, e Brendan sabia exatamente quem era a responsável por isso.

— Ara, ara, enfim o ser mais preguiçoso desse planeta decidiu acordar — dizia uma bela garota. 

Sem tirar os olhos do livro em suas mãos, ela perguntou: 

— Qual a dificuldade de se levantar pela manhã como pessoas normais?

Brendan apenas observava a jovem. Ao vê-la lendo em sua escrivaninha, sentiu seu coração aquecer. 

Cada uma das características que ele tanto admirava na infância havia se polido com o tempo. Sentia que nada neste mundo poderia competir com a beleza dela.

O rapaz se sentou na cama para observá-la com mais clareza. Seus olhos não se encontraram, e ele se perguntava o motivo. 

Observando aquele lindo rosto, notou uma leve coloração avermelhada nas bochechas da moça.

— Bom dia para você também, May — disse Brendan.

Ele notou um leve tremor na sobrancelha da amiga. Mesmo com o sinal de alerta, continuou: 

— Se estava tão incomodada, era só me acordar. Mas vejo que você ficou muito entretida lendo esse livro idiota.

Assim que aquelas palavras deixaram seus lábios, o garoto compreendeu seu erro. Ele conhecia aquela garota como ninguém e sabia que, quando irritada, May poderia ser bem cruel. 

May marcou a página do livro, o fechou e colocou-o na escrivaninha.

Em seguida, caminhou em direção a Brendan com passos firmes e elegantes, mantendo, no entanto, toda a graciosidade e delicadeza que uma figura tão deslumbrante como ela exibia.

Brendan sabia que estava em apuros; as broncas de May sempre eram longas e severas. Muitos descreveriam a fúria da jovem como uma avalanche implacável.

Mas ele não podia deixar de reparar como seus cabelos negros — que, atualmente, chegavam até seu quadril — se movimentavam ao caminhar. O contraste com sua pele clara, iluminada pela luz do exterior, e o brilho gélido em seus olhos eram, de acordo com o garoto, fascinantes.

Ao parar na frente da cama onde o rapaz estava sentado, a garota colocou suas mãos no quadril. Seu olhar pousava sobre Brendan de um ângulo elevado.

Respirando fundo, ela esbravejou:

— Qual é o problema com essa noz que você chama de cérebro?! Será que de tanto ficar inativo, ele deixou de funcionar?! Seu idiota, ao menos colocasse o celular para despertar em um horário apropriado!

A cada palavra proferida pela jovem, a fúria desaparecia de seu olhar enquanto encarava o rapaz. Ela continuava sua bronca, mas seu tom ficava cada vez mais passivo.

— Você se lembra quem foi que me pediu ajuda para comprar o material escolar? Se tivesse ao menos definido um horário específico, eu teria vindo no horário combinado e não tão cedo por receio de te atrapalhar… Francamente, você teve todo o verão para isso; como pôde deixar para o último dia? Vá se aprontar logo, eu não quero que peguemos um fluxo muito grande de pessoas lá.

O Luster não sabia mais se aquilo era uma bronca ou não; a garota estava com as bochechas coradas e desviava o olhar sempre que seus olhos se encontravam.

— Certo, eu errei. Vou tomar um banho, me trocar e vamos.

Normalmente, eles discutiam, mas ao ver a reação de May, Brendan preferiu não arriscar. Ele não sabia o que aquilo significava; ele mesmo não sabia lidar com os próprios sentimentos, quanto mais com os dos outros.

O rapaz se levantou e foi em direção ao banheiro interligado ao seu quarto, mas May o impediu, colocando-se à sua frente.

A jovem parecia travar uma luta interna. Com os olhos voltados para o chão, sussurrou:

— Tome café primeiro… você precisa se alimentar…

— Eu não sei se temos tempo… Se você estiver com fome, eu posso te comprar alguma coisa lá — Brendan falava sem muita convicção.

May respirou fundo, juntou toda a confiança que normalmente apresentava e levantou seu olhar para encarar Brendan. A proximidade fez seu coração palpitar como louco, mas ela estava decidida.

— Aho! Baka! Não falo por mim; eu já tomei café antes de vir — May dizia sem desviar o olhar.

A menina percebeu o vermelho surgindo no rosto do garoto e isso lhe deu a coragem de continuar. Ela não era a única naquela situação.

— A comida já está pronta. Eu fiz tudo enquanto você dormia.

  • ••

Na cozinha da cobertura de luxo, Brendan ouvia atentamente enquanto May apresentava cada prato que havia preparado, explicando os benefícios para a saúde, desempenho e qualidade de vida.

O Luster podia ver o brilho no olhar da garota; seu entusiasmo era quase contagiante.

Isso o fez lembrar de uma conversa que teve com Kaasan por chamada de vídeo no ano passado. Ela havia mencionado que May estava tentando aprender a cozinhar e que não queria que ele soubesse.

Por isso, Kaasan o pediu para guardar segredo.

Brendan não tinha com o que se preocupar. Conhecia bem aquela garota e sabia que ela era extraordinária em tudo o que se propunha a fazer.

May Hayami, a única filha da maga classe S, Shiori Hayami, nasceu no Japão, mas veio ainda jovem morar em Elysium. Ela era diligente, educada, estudiosa, esforçada e possuía um forte senso de justiça.

Brendan diria que esse é um dos muitos motivos pelos quais a garota não conseguia fazer amigos. Segundo o herdeiro dos Luster, “Essa garota é um ímã para problemas”.

Após o seminário sobre os pratos, o garoto finalmente pôde comer.

Durante toda a refeição, May não desgrudou os olhos de Brendan. A cada sinal de que ele estava apreciando o sabor, a jovem apertava o punho e exibia um sorriso discreto.

Depois de agradecer a garota pela refeição, Brendan tomou um banho e vestiu as roupas mais leves que encontrou.

Em seguida, pegou sua carteira e se preparava para encontrá-la novamente na sala de estar.

Entretanto, antes de sair, o rapaz deu uma última olhada no quarto e percebeu que algo parecia estranho.

“Eu não fiz faxina essa semana, mas a casa está estranhamente arrumada", refletiu.

Pegou o celular e verificou a hora: já eram 2:55 PM. Ele não tinha certeza, mas, apesar do seminário da May, tudo que fez depois de acordar não devia ter durado mais de uma hora.

Com essa constatação, outro pensamento surgiu: “Quanto tempo será que May passou aqui enquanto eu dormia?”

Com as bochechas queimando, Brendan foi ao encontro da garota.

  • ••

Os dois adolescentes optaram por usar o transporte público para viajar até o seu destino, o Shopping de Serenity. A escolha pelo transporte público devia-se ao problema que o nome do garoto poderia causar; por isso, os dois sempre preferiam esse meio de locomoção.

Isso não era um problema, já que, em Serenity, a capital de Perséfone, a maior parte da população não usava o transporte público com frequência, tornando pouco provável que enfrentassem algum incidente indesejado.

Claro, Brendan cogitou protestar devido ao seu problema de enjoo, mas May sempre estava lá para auxiliá-lo. A garota sempre carregava medicamentos anti-enjoo para ele, então esse problema foi resolvido rapidamente.

A viagem seguia tranquila, como o esperado. O ônibus estava vazio e a dupla podia conversar sem se preocupar com ouvidos alheios.

A conversa era animada; os dois não se viam pessoalmente há um ano. Muita coisa havia mudado e eles ainda não sabiam como lidar com essas mudanças.

Não era segredo para ninguém — nem mesmo para eles — que havia um sentimento maior do que amizade no laço entre os dois.

Após um ano separados, esse sentimento só havia se alimentado da saudade e crescido a um ponto que os assustava. Eles tinham questões a resolver antes de dar o próximo passo, e era inegável que o futuro não era muito animador.

Mesmo assim, queriam, ao menos, preservar o que tinham.

May sentia seu peito apertado; algo a incomodava desde a primeira vídeo chamada que fizeram há um ano. Ela estava triste com o que aconteceu com Brendan.

De alguma forma se sentia culpada, como se tivesse quebrado a promessa que fizeram.

A garota estava prestes a explodir e pedir um milhão de desculpas ao garoto, mas ela não teve tempo.

Sentiu a mão dele envolver a sua em um toque terno. Aquilo a aqueceu, como se o sol brilhasse para acalentar seu coração.

— Você não tem culpa de nada. Minha família e eu temos nossas questões; pense nisso como o curso natural das coisas — Brendan falou em tom calmo, olhando pela janela sem demonstrar nervosismo.

Ele se virou para olhá-la e continuou:

— Era apenas natural que eu estragasse as expectativas deles; é meu talento natural, haha. Então fique tranquila, o único culpado por eu ter sido retido no primeiro ano fui eu mesmo. Na verdade, era para eu ser expulso; ter o nome de um dos maiores contribuintes da escola tem suas vantagens, hehehe.

Brendan realmente pensava assim; ele sabia que não houve um único dia em que eles não se falaram, fosse por chamada de vídeo, ligação, mensagem ou até mesmo cartas. Não havia como aquilo ser considerado uma quebra de promessa.

May não gostava da forma como ele se menosprezava quando o assunto era a família Luster. Ela estava ciente da situação delicada que envolvia a relação familiar de Brendan.

Embora, do ponto de vista de uma família de magos, pudesse ser compreensível, a garota nunca aceitaria essa realidade.

May deitou a cabeça no ombro de Brendan. O rapaz, por sua vez, já estava completamente envergonhado.

Ele segurou a mão dela por impulso e agora não só não conseguia tirá-la, como a jovem também usava seu ombro como travesseiro.

Os dois corações permaneceram  acelerados durante toda a viagem.

  • ••

Chegaram ao shopping antes do entardecer. Sendo o maior shopping do país, era normal que estivesse sempre cheio.

Lá, sabiam que encontrariam tudo o que precisavam.

Passaram por várias lojas em busca de material escolar para o garoto.

Brendan alegava que estava bem com qualquer coisa, enquanto May defendia que deveriam comprar itens de melhor qualidade e de preferência com o melhor preço — mesmo que para Brendan, o custo não fosse um problema, já que ele era rico.

A verdade é que estavam matando a saudade um do outro; era visível a alegria no rosto dos dois, por mais que tentassem esconder. May perguntaria:

— Você prefere o caderno do Garfield ou esse incrível caderno de Chokko-Pan!

Brendan responderia com uma carranca, que mostrava seu desdém por cadernos infantis. Ele já não era mais uma criança.

Eles estavam se divertindo; aquele era o jeito deles: brigando, se provocando, discutindo e rindo. Estavam felizes só de estarem juntos.

Brendan deixou com May a responsabilidade pelas pastas, réguas e qualquer outro material que não pudesse ser estampado.

Ele temia que ela o fizesse usar algum conjunto Chokko-Pan como material.

Enquanto isso, o garoto iria comprar o restante.

Procurando por um caderno que o agradasse e que passasse pelos critérios de qualidade de May, Brendan encontrou um que poderia satisfazer esses requisitos.

Ele já desviava o foco quando agarrou um dos lados do caderno e tentou puxá-lo do balcão de exposição em que estava. Entretanto, o caderno não veio e, além disso, havia uma força o puxando para o lado oposto.

Estranhando isso, o Luster voltou sua atenção para o caderno e viu que uma mão estava puxando o item para o lado contrário.



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