Sonhar Brasileira

Autor(a): Caetano F.


Volume 1

Capítulo 23: Cão

Ezkiel aprendera com seus erros. Assim que o animal apareceu em sua frente, avaliou em poucos instantes se valeria a pena essa luta. E tudo se baseava em uma coisa: Recompensas.

“Analisar do Sonhador”

A aba surgiu em sua frente. O animal estava prestes a atacar. Ezkiel não analisou completamente a aba, apenas focou no detalhe mais importante:

 

Sonhos Detectados: Incompleto

Fragmentos de Sonhos: 2

 

Ao notar o número, impulsionou-se para frente em direção ao animal. Os dois alvos estavam prestes a se chocar. O canídeo, com seu couro espesso, pulou para frente para morder o pescoço de Ezkiel. O prisioneiro não era idiota; havia se acostumado com o seu corpo e com as pequenas melhorias dos fios. A ambição de adquirir mais pulsava no coração. Jogou o braço esquerdo para frente, enfiando-o na boca, num ato de jogá-la para a esquerda. O baque dos dentes com o metal uivou pelo ambiente, mas não por muito tempo. Ezkiel não esperou a criatura responder. Puxou a adaga com a outra mão, em uníssono com a primeira ação, e estocou a criatura no ar, não lhe dando tempo de se prender em seu antebraço como o Outro anterior.

Ele sabia que, mesmo que as correntes fossem indestrutíveis, a pressão dos golpes causava feridas em seus antebraços. Podia não cortá-los, mas facilmente quebrá-los.

A lâmina não adentrou tão fundo quanto esperava, mas o corte alertou o animal, que bateu contra um dos portões das divisórias, amassando o metal facilmente. O cão se levantou do solo e encarou Ezkiel. Ambos se olharam por alguns milésimos, e o animal parecia meio atônito com a reviravolta da caçada, mas novamente não teve tempo de pensar.

O prisioneiro se jogou na direção da criatura novamente, tentando encurralá-lo na divisória, porém, antes que pudesse chegar, sua perna quebrada ardeu em dor e ele desacelerou. O animal, então, teve tempo suficiente para se esquivar pela direita e preparar seu ataque. Rosnando, jogou-se contra a costela direita de Ezkiel. Em passos velozes, o prisioneiro se jogou para trás. Não gostaria de se entrelaçar ao solo com a criatura; o risco desse tipo de confronto era vislumbrado pela dor em suas memórias.

Ele se apoiou na parede do estábulo, próximo à divisória amassada, e viu o cão arranhar o solo na descida. O animal mastigou o ar com toda a vontade que pôde, enraivecido por ter errado o alvo. Ezkiel observou o inimigo aterrissar no solo e correu em sua direção; com medo da adaga ficar presa na criatura, não estocou, mas desferiu um corte no rosto da criatura. A mesma se esquivou, mas o corte prosseguiu com a investida de Ezkiel, vazando sangue por todo o lado esquerdo da criatura. Não fora muito profundo, mas o sangue vazava pela ferida aberta, jorrando contra o solo lamacento.

O animal uivou de raiva e dor; ao se mexer, o couro cortado abria mais espaço, vazando ainda mais sangue. No meio da vermelhidão, Ezkiel conseguia ver os músculos se movendo e os ossos pontiagudos que pareciam querer emergir da criatura.

Com um giro rápido, o animal arranhou a panturrilha de Ezkiel. O corte poderia ter sido muito pior, mas o garoto havia esquivado de última hora. Ele percebera que a técnica de atacar e correr parecia estar funcionando bem contra a criatura, mas não seria idiota de confiar apenas nisso. Estava completamente atento ao combate e não menosprezaria a criatura. Quando notou o sangue que escorria de sua perna, girou o corpo e cortou em direção à cabeça do cão. A lâmina desceu na vertical, transpassando o couro duro de sua pele e cortando profundamente o osso de seu crânio, até chegar em seu olho esquerdo, que explodiu com o impacto da lâmina. Antes que pudesse ter uma reação, o prisioneiro puxou a lâmina para trás e correu para a esquerda da criatura, espreitando pelo ponto cego.

De alguma forma, para Ezkiel, o combate estava diferente. Havia entrado em um estado de flow em que a única coisa que precisava fazer era vencer a criatura. Sua atenção em atacar e não ser atacado estava fazendo efeito. Uma fluidez escorria pelo seu corpo e os instintos se anexavam aos seus pensamentos.

Era normal, para quem observava de longe, achar que ele não possuía nenhuma técnica de combate e estava apenas instintivamente atacando a criatura, mas, para estar nesse estado, precisava-se ter uma falta de medo que apenas alguém que chegou perto da morte possuía. Esse espírito de combatente era comum nas ruínas; afinal, muitos daquele local sofreram com experiências de quase morte. Entretanto, para Ezkiel, esse sentimento parecia singular; o corpo uivava por despejar essa vontade de lutar para fora. Todos os anos de inércia na prisão pediam por uma liberdade de combate que nunca havia tido. Afinal, todo aquele tempo na prisão serviu de uma experiência de quase morte contínua, mesmo que Ezkiel não tivesse passado por ela. Aos poucos, ele criava uma conexão maior com seu corpo; esse era apenas o começo dos efeitos.

O grande corte estava ali, aberto, preparado para ser atingido. Ele jogou a adaga para frente e estocou para dentro da musculatura que ligava a pata dianteira. O animal uivou de raiva e mordeu pela direita, acertando no antebraço acorrentado. A dor pulsou em Ezkiel, lhe fazendo se concentrar ainda mais no combate. Por ser novo em luta, não conseguia nem mesmo pensar no próximo golpe, apenas agia por instinto, e esse era um dos problemas. O racional lhe ajudaria a não sofrer essa dor, o faria se esquivar, mas ele não tinha esse conhecimento.

Sabendo que a adaga já estava dentro do animal e que seu braço estava preso pela mandíbula da criatura, exerceu força para a direita com as duas mãos, fazendo a lâmina profunda correr entre os músculos, fincando-se ainda mais dentro da carne da criatura, mas abrindo o ferimento internamente. A ferida profunda, que havia começado na cernelha do animal, subiu pelo couro escuro até próximo do pescoço, fazendo o animal começar a sufocar no próprio sangue. Teimoso, ele não abriu a boca para soltar Ezkiel, mesmo com sangue lhe impedindo de respirar. O sangue borbulhava pela ferida e pela passagem de ar, mas o animal, contra seus instintos, começou a balançar a cabeça loucamente para retirar o braço de Ezkiel; se não fosse pela corrente, teria dilacerado por completo seu antebraço.

Agora sentia a força bruta do animal quase deslocando o cotovelo restante do braço. A dor agulhava as articulações de uma forma absurda. Pela primeira vez no combate, Ezkiel conseguiu formar palavras em sua mente.

“Ele está desesperado.”

Enraivecido pela dor, Ezkiel jogou a adaga mais para dentro da criatura, perfurando até o outro lado do pescoço. Pelo balançar de sua cabeça, a lâmina tremia, cortando de forma serrilhada todo o pescoço da criatura. Nesse momento, o prisioneiro quase perdeu o controle da lâmina, fazendo-a se soltar de sua mão presa ao corpo da criatura, mas, no último instante, em meio ao sangue gosmento, agarrou o cabo novamente. Utilizando a força de sua perna boa, Ezkiel jogou o corpo para frente, enquanto descia a lâmina pelo pescoço da criatura. Pela mordida, a lâmina desceu abrindo o pescoço do animal por completo, degolando a criatura.

Sangue escuro escorreu como uma cachoeira pelo chão do estábulo. O animal começou a parar de se mover aos poucos. As patas cederam pela dor, tombando contra a lama. As costas eretas ficaram moles. A única coisa que exercia força prévia à sua morte era sua mandíbula. O animal tentou respirar novamente, mas não conseguiu; não havia mais força em seu corpo, e a cabeça se tornou fraca, caindo contra o solo.

Ezkiel respirou ofegante. Retirou uma das mãos da adaga e abriu devagar a mandíbula da criatura. Os olhos avermelhados não tinham mais brilho. Com facilidade, desgrudou os dentes afiados dos espaços da corrente.

Cansado, ele se jogou ao solo de lama. Respirou fundo e sentiu os fios vindo dos fragmentos de sonhos do cão se unirem ao filtro de sonhos. O conforto da coleta regozijou-se em sua alma. Um alívio do fim da luta se fundiu com a adrenalina, lhe dando um prazer inesquecível.

“Melhor que a última vez. Bem melhor.”

Ele sorriu alegremente enquanto observava o corpo da criatura em sua frente. Entretanto, esse tempo durou pouco. Após a anestesia do prazer passar, voltou à realidade. Se havia um desses cães, poderia ter outros, e, mesmo que não quisesse, havia feito barulho no combate contra o animal profanado.

Levantou-se da lama depressa. Puxou a adaga da criatura e olhou novamente para a escuridão. Quase havia esquecido dos outros dois seres parados, presos em cordas a uma carruagem antiga. Deu alguns passos à frente, um pouco trêmulo pela sua negligência.

“Porra, Ezkiel! Se eles tivessem vindo em sua direção enquanto estava caído, estaria morto! Você é idiota?”

Por sorte, eles ainda estavam no mesmo lugar, paralisados. Os dois cavalos magros pareciam estátuas. As pernas finas sustentavam seus corpos magros de uma forma surreal. Quase não parecia real a cena em sua frente. Nesse momento, Ezkiel cogitava que eles haviam morrido em pé.

Confuso, não sabia se deveria dar um passo à frente ou não. Ainda estava atordoado pela cena. Entretanto, teve uma ideia.

“Se eles estiverem vivos, o Analisar do Sonhador vai mostrar isso.”

Olhando mais a fundo na escuridão, a aba surgiu em sua frente.

 

Nome: —

Raça: Cavalo Cinza-Branco (Em mutação)

Forma: Cavalo Cinza-Branco

Classe: —

Estágio: Sem alma

Grau: —

Talentos: —

Sonhos Detectados: Incompleto

Fragmentos de Sonhos: 3

 

Informações possíveis: Um belo cavalo extinto vindo das regiões de montanhas e frio extremo. Sua raça é conhecida pelas suas longas franjas que cobrem seus cascos de cor branca com leves brilhos cinza fosco e pela alta força de tração, sendo altamente resistentes para longas jornadas.

Ambos comprados, outrora, por um grande comerciante pelo luxo de sua beleza e qualidade de seu galope. Entretanto, nunca foram usados para esse feito. O verdadeiro objetivo de sua compra foi para carregar, em meio à grande cerimônia de falecimento, o corpo da pessoa mais amada de seu dono.

Após o ocorrido, foi perdido pelo tempo em uma passagem inóspita, onde a fome e o abandono lhe acompanhavam. Dois belos seres levados para fora de suas terras para sofrerem tal sentença. Solitários, como os últimos de sua espécie, seus sonhos foram devorados pela profanação ao longo dos anos.

Ezkiel finalizou a descrição, mas, antes que pudesse pensar sobre o que havia lido, o animal que fora analisado começou a se movimentar. Uma centelha de vida antiga havia ressurgido no ser que, por medo ou vontade de viver, tentou fugir do coletor.

As patas magras começaram a se levantar do chão. Os cascos puxaram lama com uma dificuldade absurda, como se estivessem enraizados no solo. A pelagem acinzentada do animal se remexeu aos seus movimentos, como espinhos grossos; o brilho maltratado mostrava a degeneração da criatura.

O animal parecia que se quebraria a qualquer momento, como um graveto seco. Ele encarou o parceiro por alguns segundos e encostou sua cabeça fraca, que vazava sangue ralo pelo movimento, para avisá-lo.

Foi a primeira vez que Ezkiel viu seres em profanação que pareciam ter sentimento. Resignado a dar um fim para a criatura, ele avançou em direção aos cavalos. Na proximidade dos animais, notou uma bela carruagem envelhecida, completamente adornada com um metal escurecido que refletia contra o solo. O belo brasão, que havia visto antes, marcava a lateral da carruagem. Diversas flores mortas saíam da madeira de alta qualidade, mas destruída pelas décadas. Podia-se ver na escuridão que toda a carruagem parecia uma bela escultura em madeira, mas mal podiam ser vistos os detalhes, perdidos entre os arranhões e a decomposição.

Ezkiel notou que a grande carruagem parecia balançar um pouco. Seus instintos apertaram contra sua nuca, descendo como um raio por toda a sua coluna, arrepiando todos os pelos de seu corpo.

O balançar aumentou loucamente ao notar o puxar leve dos cavalos. As flores mortas começaram a cair contra o solo. A madeira rangia como uma cama velha prestes a ser quebrada. O balançar aumentou mais, rachaduras surgiram em toda a superfície e nos ornamentos de metal escurecido.

Os dois animais despertados tentaram fugir da carruagem, mas as cordas presas a eles pareciam de uma alta qualidade e apenas puxaram a carruagem para frente. As rodas, que não conseguiam transpassar o lamaçal, rangeram, quebrando o eixo. Os cavalos continuaram tentando puxar a carruagem na possibilidade de romper as cordas e se libertarem. Entretanto, no momento em que a corda foi tensionada pelos puxões, uma força oposta surgiu de dentro da carruagem. A outra ponta das rédeas foi puxada com uma força tremenda; ambos os animais foram arrastados para próximo do pequeno espaço de onde as cordas saíam.

Os cavalos bufaram em desespero; a força bruta fora tanta que as patas foram quebradas ao serem arrastadas, e a pressão no pescoço começou a ser exercida pelo puxão e pela pequena abertura do condutor.

Os animais guinchavam em dor, medo e confusão. A pressão aumentou tanto que começou a sufocar as criaturas até quebrar seus pescoços; o puxão não parou até a corda resistente decapitar os dois cavalos e conseguir ser puxada para dentro. O sangue ralo vazou pela carruagem. Assim que todo o tremor parou, o silêncio se instaurou pelo ambiente.

 

 

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