Sonhar Brasileira

Autor(a): Caetano F.


Volume 1

Capítulo 22: Estábulo

Ezkiel analisou a aba à sua frente. As informações explicavam detalhes importantes sobre o caminho que os Profanados, conhecidos como Outros, caminhavam. Parecia um tipo de maldição que se espalhava pelo sangue, esse mesmo sangue com cheiro de canela e outras especiarias orientais. O avanço disso explicava detalhes da contaminação da forma dos Profanados.

“Acho que estou começando a entender. Existe uma diferença entre formas e raças. Essa criatura virará um Profanado de Sangue se continuar se alimentando disso; entretanto, sua forma não poderá ser humanoide. São tipo zumbis invertidos? Sei lá se essa comparação faz sentido.”

Tentando colocar nos padrões do seu mundo, Ezkiel criou sua hipótese. Se ao devorar carne de Profanado, você se torna um, era apenas manter distância, mas parecia diferente disso. Entretanto, o garoto sabia o que era passar fome — não ele próprio, mas seu corpo — e se compadecia do rato à sua frente.

Em um golpe veloz da adaga, ele terminou o serviço. Tirando a dor do pequeno rato que lutava para não se perder.

“O fragmento do seu sonho será útil, ratinho. Me desculpe.”

Essa compaixão vinha do seu corpo, mas Ezkiel nunca teve pena de matar animais; afinal, seu avô e seu pai eram caçadores. Nasceu vendo animais sendo caçados e mortos, até sua mãe se opor.

O último rato sobrevivente, ao ver o assassinato de seus dois companheiros, correu em fuga para o portão de metal. Ezkiel tentou persegui-lo, mas sua perna falhou pela dor. Observou em dor o animal desaparecer, fundindo-se na escuridão.

Antes que pudesse enraivecer-se, a energia dos ratos mortos adentrou seu filtro de sonhos. Os fios se uniram retirando sua fadiga, as feridas antigas refrescaram-se como películas de orvalho tocando terra quente. Uma paz adentrou o seu corpo, em uma mistura de prazer. Os músculos se remexeram, recebendo nutrientes após tantos anos.

O sentimento era muito diferente de se alimentar, mas o gozo era o mesmo. Mesmo que Ezkiel sempre sentisse fome como o prisioneiro, notava que suas energias eram preenchidas, melhorando devagar o corpo em desenvolvimento. A coleta de fios parecia focar na melhoria de seu corpo em todos os sentidos. Agora que recebeu dois fios de uma vez, o sentimento foi mais nítido, como se aperfeiçoasse o corpo, retirando defeitos antigos e o levando para a sua melhor versão.

Assim que a euforia da coleta passou, sua barriga roncou. A fome, que havia sido levemente superada após se alimentar com Lavia, voltava com força. Ezkiel encarou os ratos mortos no chão; um nojo vindo da mentalidade do seu mundo de origem vinha em sua mente. Porém, seu corpo babava pela carne fresca.

Usando todo seu conhecimento básico de observar seu pai limpando carne de caça, Ezkiel tentou repetir. Obviamente não chegava nem perto do trabalho de seu pai, e destrinchou a carne por completo. Retirou os ossos maiores, a pele e os órgãos. O pouco que sobrou da carne foi devorado cru. O gosto forte da carne se misturava com o condimento específico e fraco de canela que vinha dos Profanados. Ezkiel teve um leve temor disso, o medo da profanação o assolava. Após comer todo o primeiro rato enquanto encarava o filtro de sonhos, não houve qualquer modificação em seus status.

“Não posso conter a fome, preciso comer se quiser sobreviver. Vou tentar evitar o máximo possível comer carne de Outro, mas esses seres que estão lutando contra a Profanação parecem ser possíveis. Se tiver oportunidade, também irei evitar.”

Ele comeu o segundo roedor enquanto encarava a escuridão da noite. A lua brilhava no céu, similar à do seu mundo, mas tão diferente ao mesmo tempo. Toda a aparência era similar, mas havia um grau de estranheza; a forma como os raios lunares passavam pelo seu corpo tinha um mistério único e ela, a essa distância, parecia um pouco menor. Era bela de se analisar, estava cheia, preenchendo a escuridão com sua falsa luz. Ezkiel não se conteve ao pensar em sua vida do lado de fora. As coisas que estava perdendo. O estado em que seus pais estavam. Como Maeve lidaria com tudo isso.

“Será que ela ligou para o pai dela? Ela deveria ligar... Ela está sempre fugindo dele.”

Estava preocupado com a namorada. Ela era tão frágil, inocente, meiga. Era a pessoa mais emotiva que havia conhecido. Ela precisava de alguém para estar junto. Não conseguia sobreviver nesse mundo sozinho.

“Que irônico eu pensar nisso. Estou comendo ratos!”

Ele riu sozinho, talvez perdendo sua sanidade em meio às dezenas de feridas que sofrera nesse sonho. Ao pensar nelas, tocou devagar em seu ombro costurado; sentiu que a dor ardia muito menos agora, estava se cicatrizando bem rápido, mesmo após aberto pelos golpes. O inchaço de suas mãos e antebraços havia diminuído um pouco, mas ainda estavam roxos. A perna, que parecia o melhor, havia tido um avanço desumano. O osso quebrado ainda podia ser sentido, mas no misto de seu talento com a melhoria dos fios de sonhos, conseguia ficar em pé e até mesmo correr se quisesse.

“Se eu conseguir um pouco mais de fios, posso melhorar por completo as minhas feridas. Tenho que agradecer a esse talento; se ele tivesse um nome um pouco melhor, eu teria o amado desde o início.”

A ambição de adquirir mais fios preenchia seu corpo. Havia uma dúvida entre descansar por algumas horas ou ir atrás do último rato. A ideia passava por sua mente constantemente: se com 3 fios já estou melhor, imagine com 4.

“Notei algumas diferenças até agora, mas com certeza a minha vitalidade parece ter melhorado. Também sinto meu corpo mais forte; pouco, mas sinto de leve a diferença. Acho que também estou conseguindo ver e sentir cheiros melhor? Ainda são muito confusas essas melhorias, são muito singelas. Posso notar mais a regeneração porque estou muito ferido e parece se unir com o talento.”

Ele ficou alguns minutos sentado no chão, tocando em seu corpo e analisando suas feridas. Ezkiel passou a mão pelo cabelo devagar e sentiu que os tufos que se mantinham ali estavam caindo sobre suas mãos. O último restante de seu cabelo havia caído.

“Meu Deus, toda vez que toco em minha cabeça lembro que sou careca e feio. Bem, agora eu sou careca de verdade.”

O pensamento triste passava por sua mente. Abraçou seu corpo machucado, mas não podia negar: mesmo que fosse horrível, era extremamente útil. Não teria sobrevivido nesse lugar sem ele.

“Eu quero voltar logo para casa.”

Antes que a aba de Retorno pudesse se abrir, Ezkiel abanou a mão para frente, fazendo-a desaparecer. A sua afinidade com o filtro e suas abas estava aumentando.

“Okay, é hora de continuar a caçada.”

Ezkiel se levantou. Apertou as correntes em seus antebraços. Folgou a de seu pescoço, a amarrando em suas costas e peitoral. Segurou a adaga com a mão direita e seguiu em direção ao portão do estábulo.

O portão principal estava fechado, mas a porta lateral parecia ter sido corroída pelo tempo; com um empurrão forte com seu ombro bom, ele conseguiu quebrar a fechadura antiga.

Um cheiro forte de mofo e madeira úmida preenchia o local. Uma nuvem de poeira se levantou ao entrar. O ranger do solo emadeirado era alto. Não parecia haver muito luxo nessa porteira. Era uma cabine curta, com apenas alguns cômodos para trás em que os guardas de vigilância dormiam. Havia móveis de madeira polida, quadros quebrados contra o solo e alguns poucos utensílios de metal para comer jogados contra o solo em cima de um tapete avermelhado ralo, se desfazendo ao toque. A sala de vigia, que levava ao início do estábulo, era uma grande janela fechada, com vidros opacos de sujeira.

Ezkiel saqueou a área inicial, mas não encontrou nada de útil, além de trapos velhos em um armário próximo.

“Parece uma portaria de prédio. Bem pior, mas parece.”

A porta que levava ao estábulo estava quebrada e havia uma barricada feita às pressas com tábuas de madeira pregadas. Não havia nenhuma atuação humana nesse local por anos; os que tentaram sobreviver nesse lugar na queda de Markshal haviam fugido ou morrido há muito tempo. A porteira foi apenas um local de passagem.

O prisioneiro foi em direção à cabine principal. Adentrou o quarto pequeno em que havia poucas coisas. Uma cadeira de madeira antiga em frente a uma mesa. Um armário de armas vazio e um pequeno baú menor no solo, escancarado, em que pequenas peças de armadura podiam ser vistas.

Animado, ele correu em direção ao baú. Para sua surpresa, todas as armaduras estavam gastas e quebradiças, tão antigas que não poderiam ser utilizadas.

“Provavelmente já estavam quebradas antes da queda. Por isso nem levaram.”

Ezkiel remexia no baú. A única coisa útil a ser encontrada foi uma bainha para sua faca, mas o couro estava tão gasto que poderia se soltar a qualquer momento. Pelo menos não seria cortado pela faca na cintura. O armário de armas estava vazio, mas havia pedaços de armas quebradas no interior. Fios de arcos, pedaços de metal avulsos que caíam da empunhadura das armas e couros soltos. Entre os pedaços de metal, ele encontrou um brasão; a imagem suja, cheia de ferrugem e poeira, não era muito nítida. Poderia se ver uma flor estranha feita de espinhos e algumas letras que deveriam formar uma palavra, mas ele não compreendia, estavam muito apagadas.

Curioso, Ezkiel guardou o brasão em seu bolso. Um sentimento de explorador crescia dentro dele. Analisar a história com o filtro de sonho havia lhe instigado a algo e estava interessado em conhecer mais desse mundo.

A única coisa que faltava analisar no local era a mesa de guarda. Ela dava de frente para a janela que ele usaria para entrar no estábulo. Ao encarar a mesa, percebeu arranhões em todo seu entorno e marcas de sangue antigas que tingiram a madeira. No topo havia um devaneio entre papéis corroídos pelo tempo e sujeira que um dia fora um objeto identificável. Havia algumas gavetas laterais, com nada de muito útil; entretanto, na última ele encontrou um pequeno diário em couro. O objeto parecia ter sido levemente preservado. O couro estava se desfazendo e alguns papéis estavam se soltando da costura, mas ainda poderia ser lido. Ao abrir o livro ele teve uma surpresa: estava em uma língua que ele não compreendia. Os caracteres eram diferentes, rabiscos confusos que não pareciam ter coesão.

Ezkiel encarou o livro por algum tempo, tentando entender o que estava escrito, mas a caligrafia era complexa e não conseguia nem mesmo entender a cópia de letras na mesma página. Ele folheou rápido, procurando alguma imagem, mas o escritor anônimo não parecia gostar de desenhos. A vontade de levar o caderno com ele era grande, mas não havia lógica para isso; ele nem mesmo tinha uma bolsa e não tinha como guardá-lo.

“Posso achar um dicionário e tentar entender futuramente... Ah! Quem eu quero enganar, não tenho tempo e nem paciência para isso.”

Olhou para o livro uma última vez e abriu a janela para sair. Bufou e saiu; de alguma forma sentia que o conteúdo poderia lhe ajudar em algo, mas não tinha capacidade de entendê-lo.

Ao cair para dentro do estábulo, tirou a ideia do caderno de sua mente por completo. O local era um corredor que levava a um casarão. Havia 10 divisórias em cada lado para manter as montarias; feno seco se dissolvera há muito tempo no solo, formando um pequeno lamaçal. Não havia animais nas divisórias, mas podia notar-se a estrutura, como aberturas para água e alimentos, grades metálicas baixas com fechaduras e lamparinas no teto. Tudo estava destruído pelo tempo, mas ainda podia se ver sua silhueta.

Ele deu alguns passos em direção ao casarão, porém, quando estava passando pela terceira divisória à direita, viu um vulto grande de uma carruagem à sua frente. Havia dois cavalos magros em sua frente. Eles estavam em pé, quase esqueléticos; cordas longas com adornos metálicos os prendiam no corpo. Não conseguia ver muitos detalhes na distância, mas estava alerta. Pois os dois seres magros brilhavam em suas crinas com tinturas vermelho-carmesim, que subiam de suas crinas e pelugem fracas nas pernas. E os olhos brilhavam como faróis vermelhos na escuridão da noite.

“Que porra é essa?”

Ezkiel puxou a adaga para mais próximo de seu corpo, mas antes que pudesse mover, um barulho à sua direita rompeu pela grade metálica. Um canídeo de pele escura acinzentada pulou em sua frente. Ele não tinha pelo nenhum no corpo, apenas um couro duro. Os ossos eram nítidos em seu corpo, mas não parecia magro; eram tão largos que puxavam o couro para fora, formando pontas em seu corpo similares a espinhos. O crânio era completamente nítido e a boca preenchida por milhares de dentes. Os olhos eram fundos, quase imperceptíveis, mas completamente preenchidos pelo vermelho-carmesim.

“Tudo sempre tende a piorar.”

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