Sonhar Brasileira

Autor(a): Caetano F.


Volume 1

Capítulo 21: Ratos

O sol estava se pondo pelas ruelas da vazia cidade de Markshal. Em um beco quebrado após uma luta sangrenta, o prisioneiro acordava em meio a barulhos de mastigação em seus ouvidos.

Ainda atordoado, Ezkiel se mexeu devagar, sentindo todo seu corpo destruído e a dor que permanecia nele. Olhou para o seu corpo e os últimos raios de sol da tarde, que logo levariam à escuridão da noite.

“Sinto como se um caminhão tivesse me atropelado.”

O cansaço havia saído de seu corpo, mas a dor lhe causava fadigas únicas. As costas ardiam. Os braços doíam, inchados entre as correntes. Os dedos das mãos estavam roxos e sem unhas, completamente banhados no vermelho-carmesim do Outro contra quem havia lutado. Entretanto, uma nova dor surgia aos poucos, quase perdida pelas maiores: beliscões leves repousavam sobre os seus pés. Ao encarar a cena, notou que quatro ratos do tamanho de ratazanas brigavam pelos seus dedos. Alguns já mostravam a carne viva de tanto serem devorados.

No susto, Ezkiel deu um pulo para trás, batendo a cabeça em uma das pedras desmoronadas, sentindo a dor em seu crânio, quase esquecida, voltar como um choque.

“Filhos da puta! Filho da puta de sonho!”

Os ratos, que olhando melhor mais pareciam ratazanas magras, guincharam para ele em raiva. Estavam transtornados porque seu alimento havia voltado dos mortos. Os olhos vermelhos brilharam e começaram a se mover. Pareciam tão desesperados pela fome que iam contra os seus instintos e pularam em direção ao prisioneiro para terminar o serviço. Começaram a escalar pelo corpo do garoto, que mal conseguia se mexer no espaço pequeno.

Diferente da luta anterior, Ezkiel se sentiu desesperado contra os ratos no espaço pequeno. As patas minúsculas arranhavam sua carne enquanto subiam em direção ao seu rosto. Tateou o chão com velocidade enquanto procurava sua adaga no solo. Ao achá-la, a ratazana mais voraz já estava mordendo sua bochecha, enquanto as outras cortavam a pele do seu pescoço com os dentes de roedor.

Ezkiel segurou a criatura magra e longa com a mão direita e jogou-a contra o solo. O ser se remexia loucamente, arranhando sua mão já machucada e mordendo seu polegar até alcançar o osso. Puxou a adaga com a mão esquerda e enfiou com toda a sua força na cabeça do rato à sua frente. O rato não teve tempo de se mexer quando já estava morto. O sangue esguichou pela ferida e o cheiro de ferro comum tomou o ambiente.

O prisioneiro retirou a adaga do corpo do rato, mas os animais espertos, ao perceberem a facilidade com que o outro da sua espécie foi morto, fugiram o mais rápido possível para mais adentro da construção desmoronada. Irritado, Ezkiel tentou se pôr de joelhos para continuar sua vingança, mas ao tocar com a perna direita como apoio, tombou de queixo contra o solo, se segurando para não gritar de dor. Lembrou-se automaticamente da canela quebrada.

Um sentimento de vergonha e raiva imbuiu sua mente ao ver os ratos fugirem facilmente. O constrangimento de ter se desesperado ao ver os ratos lhe fez corar de raiva. Após a última luta que teve, deixar-se ser ferido pelas criaturas e elas ainda fugirem era patético.

Quando estava pronto para esmurrar o chão de raiva e decepção pelas suas ações até agora no sonho, sentiu uma sensação prazerosa adentrar o seu corpo. Um sentimento de saciação e poder fraco apoderou-se dele. Os seus olhos brilharam em um leve relance púrpura. Antes que pudesse compreender completamente o que estava acontecendo, o filtro de sonhos se abriu pelo pensamento subconsciente de dúvida.


Nome: Ezkiel Arcs

Raça: Coletor de Sonhos

Corpo: Humano

Classe: –

Fios de sonho: 1/1000

Estágio: Sem alma

Grau: –

Talentos:『Torturado』『Falha do Importuno』

Habilidades:『Coletar Sonhos』『Analisar de Sonhador』

Sonhos Coletados: 『Anátema do Prisioneiro』

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A modificação na aba era simples, apenas a mudança de um dígito. Ele havia ganhado 1 fio de sonho. E esse simples fio estava aprimorando seu corpo. Ezkiel conseguia se sentir mais refrescado, as feridas doíam menos, o corpo se movia menos rígido. Era complicado de explicar, mas se sentia diferente, não o suficiente para ser nítido aos outros, mas ele conseguia notar.

Ele fechou as mãos lentamente, o sentimento de saciedade fugia entre seus dedos, mas a melhoria estava fixa. Apenas um fio de sonho havia modificado todo seu pensamento sobre os ratos.

“Claro! Claro! Animais também sonham! Quem diria que um maldito rato me daria mais recompensas do que matar um Outro. Esse sistema... Não importa! Eu consegui um fio!”

Feliz com seu primeiro ganho nesse mundo, Ezkiel abriu um sorriso em meio às ruínas quebradas daquela casa desmoronada.

O corpo quebrado do prisioneiro estava contido por diversas feridas, mas agora, Ezkiel conseguia imaginar um futuro em que esse corpo machucado conseguisse exercer melhor seu total desempenho. Talvez, até mesmo superá-lo. Essa progressão, após tanto sofrimento nesse sonho, era um alívio.

“Se eu conseguir mais fios de sonhos, posso me tornar mais forte e conseguir manter esse corpo seguro. Poderei ir para casa!”

A ideia de se tornar mais forte com os fios deu-lhe um arrepio de confirmação do corpo. Ambos gostavam dessa ideia. Entretanto, o sonho de segurança era distante. Ele sabia quão forte os Outros eram e que seres mais fortes viriam à sua busca. Além de ser um tesouro ambulante, em que qualquer explorador tentaria matá-lo pelas correntes, existiam os acólitos que estavam em busca do assassino do prisioneiro.

“Um fio de sonho não parece fazer tanta diferença agora. Pelo menos consegui um meio de me tornar mais forte, porém preciso pensar melhor como isso aconteceu.”

Ezkiel sabia que a chave para sair dessa situação era o filtro de sonhos. Precisava entender como esse mundo funcionava e como o filtro o afetava. Ele sabia que tinha algumas vantagens, os fios de sonho eram uma delas, mas precisava entender melhor o funcionamento do sistema para conseguir sobreviver.

“Acredito que os fios e os sonhos coletados são apenas de Coletores. A questão é se isso influencia no meu grau e na minha alma ou é um poder à parte. Por que os Acólitos parecem ter seus métodos de evoluir grau, o que significa que há várias formas diferentes de se tornar mais forte nesse mundo. Vários sistemas diferentes?”

Imaginar que existem outras formas de avanços de poder nesse mundo mexia com sua cabeça, pois afirmava que a raça: Coletor de Sonhos, tinha seu próprio processo individual e Ezkiel precisaria entender cada um de uma forma diferente. O que lhe fez pensar assim foi sua luta contra o Outro mais cedo.

“O Outro que lutei era bem mais forte que um humano comum, mesmo não tendo um grau. Significa que ele tem outro parâmetro de poder?”

O arrepio assentiu em sua espinha, causando-lhe desconforto.

“Não, talvez a raça dele influencie em como ele pode avançar.”

Ezkiel confiava de certa forma nos instintos do seu corpo agora. Ele tinha apenas duas coisas para confiar: no filtro de sonhos, no analisar do sonhador, e nos instintos do seu corpo.

“Será que toda raça tem suas formas únicas de evoluir de graus? Os Outros têm seus próprios “fios”. Se sim, isso explica muitas coisas, mas me coloca dúvida em outras. Qual é o método dos humanos? E por que não consegui um sonho do rato, apenas os fios? Talvez isso tenha a ver com a minha forma?”

O arrepio desapareceu devagar, como se o próprio corpo não tivesse respostas para todas as perguntas. Ezkiel assentiu com a cabeça, era lógico que seus instintos não explicariam tudo sobre esse mundo, precisaria buscar essas informações sozinho, com experimentação. Porém, da última vez que tentou o acerto e erro, quase morreu por nenhum benefício.

“Vou focar no que possuo atualmente. Preciso adquirir mais fios de sonhos, para aumentar a força do meu corpo. Assim, minha situação pouco favorecida fisicamente irá melhorar. Se eu tiver maior desempenho nesse corpo, não consigo nem imaginar os avanços que terei no meu talento.”

Ezkiel fechou os punhos. Pegou a adaga em mãos e olhou para o rato morto. Um sentimento estranho veio à sua mente ao olhar o roedor banhado em sangue. Estava prestes a seguir a caminho dos fujões, à procura dos outros fios, quando recuou um pouco e pegou o corpo do rato.

“Comida é comida... A que ponto estou chegando.”

Deitado contra o solo, arrastou-se para dentro dos escombros em busca dos animais. Precisava exercer muita força nos braços para complementar a perna machucada, e as correntes pesadas não ajudavam muito no processo de furtividade. Cada batida no chão efetuava um barulho metálico que alarmava sua entrada. Após alguns minutos se estreitando pela ruína, conseguiu ouvir o barulho dos roedores novamente, um cheiro forte de ureia impregnava suas narinas e pelas brechas da construção conseguia notar o brilho leve do luar surgindo e a escuridão tomando conta. Por sorte, Ezkiel estava mais adaptado à escuridão, após tanto tempo andando na prisão, sua visão se acostumara com facilidade. Não era visível como na luz do dia, mas era melhor do que para a maioria.

Os raios do luar aumentavam e ele notou que estava saindo da estrutura desmoronada. Havia um espaço mais amplo à sua frente, em céu aberto. O barulho e o cheiro dos ratos haviam aumentado. Ao colocar sua cabeça para fora, notou uma pequena vila, rodeada pelo que um dia foram casas. Todas estavam desmoronadas, fazendo com que o pátio principal da vila virasse um local fechado, com quase nenhum meio de acesso. Um abrigo perfeito para fugir dos Outros.

“Os ratos são espertos. Não conseguiriam se proliferar nas ruas e encontraram esse lugar. Por isso o Outro que matei queria entrar aqui, estava atrás deles.”

Se escorando na parede, Ezkiel conseguiu se manter de pé. A praça central da vila era maior do que imaginava. Havia algumas barracas de comércio destruídas, onde a madeira velha ainda poderia ser usada. Um poço centralizado, mais similar a uma fossa. Até mesmo pequenos bancos destruídos.

“O local deveria ser bonito antes da destruição. Mas o que aconteceu para abandonarem essa cidade?”

Mais à frente havia um portão de metal alto, como uma grade, que levava a um casarão maior e aberto, similar a um estábulo. A construção não estava destruída, mas também não havia saída para a rua. Ezkiel se aproximou, mas não notou nenhuma janela próxima, apenas a área do portão que levava a uma área mais para trás na vila.

“Isso me parece uma área privada. A vila talvez fosse para os trabalhadores morarem.”

Em meio a entulhos destruídos, Ezkiel achou a porta que leva à área lateral do portão, a portaria sem janelas que levava à área privada. Entretanto, não conseguia ver o que possuía além do estábulo. A área não poderia ser tão grande, pois teria notado do alto da prisão, parecia a entrada de uma casa principal.

Estava prestes a tirar os entulhos da porta, quando viu os vultos das ratazanas passando pelo solo. Havia 3 delas se movendo em sua direção, investindo para atacá-lo por invadir o seu território. Mais calmo, Ezkiel manteve-se em postura esperando o primeiro ataque do rato. O animal subiu entre sua perna esquerda e parou para enfiar os dentes sobre a coxa. A dor da mordida subiu pelo seu corpo, mas não durou muito tempo. Um corte dividiu o rato ao meio, com suas tripas ainda presas pela adaga.

O segundo animal que estava se preparando para subir tentou fugir, mas Ezkiel estava atento a essa estratégia, pegou um pedaço de madeira e jogou na direção do animal. A ratazana parou de correr, mudando o eixo de sua fuga para a direita, porém antes que pudesse se mover, a faca perfurou sua traseira, fazendo o animal guinchar de dor, quase se partindo ao meio pela dor.

Ezkiel queria matá-lo logo, mas ao ver o animal ainda vivo teve outra ideia antes de abreviar seu sofrimento.

“Analisar do sonhador!”

Nome: —

Raça: Roedor Espreitador (Em mutação)

Forma: Roedor Espreitador

Classe: —

Estágio: Sem alma

Grau: —

Talentos: —

Sonhos Detectados: Incompleto

Fragmentos de Sonhos: 1

Informações possíveis:

Uma raça de roedores carnívoros que espreita ruínas com pouco contato com a civilização. Escondem-se muito e devoram apenas cadáveres ou pequenos animais enfraquecidos. Após comerem cadáveres de Profanados de Sangue, sua natureza mudou, transformando-se em seres selvagens que caçam suas presas entre as ruínas. Porém, alguns da ruína lutaram contra seus instintos e preferiram a fome à profanação que nasce do sangue.

Um dos poucos entre os seus que continua resistindo à fome, mas a derrota é apenas questão de tempo. Seus sonhos já foram destruídos, apenas fragmentos restaram.

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