Volume 1
Capítulo 24: Marcha Fúnebre
Um cheiro intenso de especiarias emergiu pelo ambiente. Os cavalos mortos vazaram seus órgãos contra o solo, fundindo-se com a lama antiga. A carruagem havia parado de se mover e, catatônico, Ezkiel permanecia parado. Todo o seu corpo o alertava de um perigo genuíno e sua mente não conseguia responder à cena à sua frente. O som do ambiente havia desaparecido e uma calmaria estranha tomou conta da cena.
O silêncio parecia ter durado horas, mas apenas alguns segundos haviam se passado. Um terror se aproximava. Ezkiel podia sentir em seus ossos, mesmo que nada na cena alarmasse isso. O ser que havia matado os cavalos parecia nem mesmo existir. Porém, ele sabia: assim que fizesse um movimento, a tempestade começaria.
Ele observou a cena novamente. A carruagem rachada, os cavalos mortos, a corda que parecia resistente o suficiente para aguentar decapitar animais, o cheiro intenso de especiarias e a descrição dos animais.
Ezkiel gostaria de virar a cabeça para a direita e encarar o casarão que se erguia após os estábulos, mas não tinha coragem de se mover. Entretanto, ele tinha uma rota, e foi isso que fez.
Ao dar o primeiro passo para a corrida, quebrando a inércia do momento, a carruagem se destruiu em milhares de pedaços. A madeira voou em sua direção, cortando as suas costas; pedaços menores arranharam sua cabeça lisa e ombro esquerdo.
Um ser de 2,5m de altura se erguia da carruagem. Sua forma lembrava um humano corcunda; usava um colete branco transpassado, banhado em vermelho pela especiaria, e outras diversas coleções de tecidos bordados e rendas deterioradas compunham uma capa da noite e um cachecol. Porém, todas estavam completamente rasgadas, como um adulto vestindo roupas infantis. Na parte de sua grande corcunda, podia-se ver um tecido branco, de renda trançada linha a linha, bordado com fios metálicos em uma tapeçaria impecável. Elas cobriam uma grande porta de madeira que se fundia com suas costas, como parte da sua corcunda. A carne pulsava, anexando-se ao material; vinhas de um vermelho-carmesim o tornavam um só. Daquela porta, ele notou o ponto final das cordas que prendiam os cavalos.
Isso explicava a resistência das cordas, ao fazerem parte do ser.
Com o corpo horrendamente forte, similar a competidores de levantamento de peso, porém extremamente anabolizados a um ponto desumano, a criatura começou a se mover. Ezkiel não parou por um segundo de seguir em direção ao casarão, que por sorte estava tão perto quanto imaginava; seguia a menos de 100 metros do estábulo, para um corredor aberto que parecia ter um jardim de inverno morto, que deveria ter sido belo em sua época.
— AAHHHH!! MEEER! — O monstro, que um dia foi humano, gritou.
Ezkiel subiu a escadaria e despejou toda a sua força na porta para abri-la. Estava trancada. Mas, no seu desespero atual, não fazia diferença. Jogou seu corpo com toda força para frente até romper o trinco. Ao ouvir o grito da criatura, todo seu corpo se arrepiou de uma forma absurda. Um medo genuíno surgiu em seu ser. O corpo uivava para frente em uma velocidade que nunca sentira antes. A soma dos fios de sonho, mais o impulso do corpo do prisioneiro, pendiam para dentro da mansão.
O objetivo de entrar na casa era simples: diminuir o espaço para a enorme criatura não conseguir passar. Assim que entrou no corredor principal, observou o poder do tempo em pequenos vultos de objetos: quadros destruídos, tapetes desmantelados, castiçais envelhecidos, entre outras milhares de peças de decoração destroçadas contra o solo.
O ambiente lembrava filmes de terror; os detalhes em tom verde escuro, com um leve tom florestal, harmonizavam com a madeira castanha escura. A ruína disruptiva da beleza natural trazia um ar fúnebre em que milhares de memórias eram esquecidas.
Ezkiel não conseguiu observar mais detalhes do que isso. Estava em fuga, procurando qualquer tipo de passagem para despistar a criatura. As portas pareciam levar a cômodos fechados, até encontrar uma escadaria.
Um estrondo alto soou em seu ouvido. Ezkiel olhou para trás e viu a enorme criatura quebrar a parede de entrada, passando pela porta. O corpo era tão alto que sua cabeça batia nos lustres e a corcunda arrastava no teto. Pela primeira vez, olhou para o rosto da criatura. Um formato quadrado distorcido, os olhos eram grandes com pupilas preenchidas em vermelho, e o queixo quadriculado deixava a boca humana ainda maior. O mais estranho era em sua cabeça: algo similar a uma touca de dormir e uma boina formal.
O ser o olhou e rugiu loucamente em sua direção. A casa começou a balançar, paredes rachavam a cada um de seus passos. A decoração era destruída pelos seus ombros largos, transformando por onde passava em uma ruína desmoronada.
“Merda! Merda! Merda!”
Ezkiel xingava a cada tremor da casa. Ao chegar no segundo andar, observou outro corredor retilíneo que levava até um grande salão principal. O coração do garoto estava acelerado. O medo de todo o casarão desmoronar a cada corrida da criatura só aumentava. Ele conseguia sentir abaixo dele o arranhar da corcunda contra o teto. O prisioneiro passou pela porta dupla. Um ambiente belo surgiu à sua frente: enormes prateleiras de livros cercavam as paredes largas. No centro, um piano de cauda longa estava completamente sujo e quebrado. O chão era de um tapete verde similar à grama, cheio de bordados escurecidos pela poeira. Uma grande vidraça mostrava a frente opaca pelos anos sem limpeza, mas por onde poderia ver os adornos da pequena vila e sua praça, onde Ezkiel lutou contra os ratos. Um grande lustre centralizava na sala de teto alto, complexo e feito de ouro branco. Em toda aquela beleza luxuosa, Ezkiel estava impactado com outra coisa. Não havia saída, sua rota de fuga terminava ali.
Observando os passos se aproximando, ele correu em direção à vidraça à procura de alguma abertura para o lado de fora. Conseguia ver abaixo dele o estábulo em que estava.
— AAAHHHH MEEER! — Um estrondo surgiu da escadaria.
O grito desorientador fez toda a vidraçaria tremer. Ezkiel tateava como um louco em busca de qualquer fecho ou pino para abrir alguma portinhola, mas não conseguia encontrar nenhuma abertura em meio à sujeira antiga.
Um horror começou a tomar conta. O desespero batia em sua porta. A cada passo da criatura, uma conclusão mais nítida lhe chegava. Ezkiel preparou a adaga em sua mão. O corpo não tremia, mas estava completamente arrepiado.
A porta dupla se quebrou e o gigante corcunda encarou o prisioneiro com raiva. Seu corpo enorme parecia se acomodar bem na sala espaçosa. O piano central era a única divisória entre os dois.
O cheiro de especiarias adentrou o ar. O monstro encarou o alvo. A respiração ofegava, imbuída em raiva. Olhar a criatura de perto entregava-lhe um certo tipo de desespero único. Ela emanava uma vocação assassina em sua direção. A falta de racionalidade do ser, que lembrava muito um ser humano deformado, lhe trazia outro tipo de sentimento.
Ezkiel posicionou o corpo para frente. Preparado para enfrentar a criatura. A mente assimilava a dor que preencheria seu corpo em breve.
Porém, antes que ele pensasse em se mover, a grande criatura fixou seus olhos sobre o belo piano. A mão grande tocou a superfície de madeira com ressentimento. A expressão da criatura começou a mudar e o grande vermelho de seus olhos desapareceu por um tempo.
— Ah... Mer... — O rosnado baixo saiu de sua boca. Era nítida a tristeza que repousava em sua face. Ele parecia estar se lembrando de algo.
A mudança completa do monstro deu a Ezkiel um pequeno senso de esperança de fugir do combate. Imbuído de coragem, ele abriu a boca trêmula para falar.
— Você conhece esse local. Essa é a sua casa?
O ser encarou Ezkiel; seus olhos não brilhavam mais em vermelho, mas refletiam um azul claro. A situação afirmava a teoria de Ezkiel. Outrora, a besta que fora um homem morou nessa casa.
O monstro continuou fazendo carinho no piano. Seus olhos trocavam entre Ezkiel e o objeto. Lágrimas saíram de seus olhos azuis, contorcendo seu rosto em uma careta abominável.
— Ah... mer...
Observando a humanização da criatura, Ezkiel continuou.
— Está tudo bem... Deve ser difícil ver a casa em que você morou destruída. Peço desculpa por ter invadido. — Uma curiosidade misturava-se com o medo. Ele queria perguntar mais à criatura, mas o terror da perseguição ainda marcava sua memória.
— Ah... mer... — Ele chorou ainda mais.
Inclinou-se para baixo e tocou nas teclas do piano; o som saiu distorcido, como um humano monstruoso que a tocava. Sua reação parecia estar revivendo memórias antigas de sua vida. Tristeza e felicidade se misturavam em seu delírio. Um sorriso se mostrou junto às lágrimas.
Ezkiel deu alguns passos para a direita, se aproximando da parede repleta de livros. Aos poucos ia se dirigindo à porta, enquanto o ser ficava entretido com os sons do teclado.
“Só preciso continuar mantendo a humanidade dele. Pense em alguma informação. Pense!”
— É uma bela música! Você é um músico? — Ezkiel tentava ser simpático, mesmo que a sinfonia fosse completamente distorcida.
O homem perdido em seus pensamentos parecia ter sido guiado pelas palavras de Ezkiel. A mão direita começou a acariciar as teclas com seus dedos grossos, tentando o máximo possível manter a melodia. Havia uma beleza melancólica na canção e, quanto mais o monstro se perdia, mais o homem que um dia fora surgia. A canção começara a criar vida, se espalhando pelo local e causando um sentimento confuso em Ezkiel.
— Ah... Me... — A voz grossa cantarolava, unindo-se à canção do piano. A música havia parado de se dessincronizar, com uma nitidez incrível para uma monstruosidade.
Uma única lágrima escorreu pelo olho da criatura. Ela encarava o vazio do piano com uma tristeza que convinha com o nome de saudade.
《 Um Sonho foi detectado 》
《『Coletar Sonho』 pode ser ativada 》
“Como? Profanados não sonham! Como isso é possível? Ele com certeza é um profanado.”
Uma dúvida abriu sua mente, após veio a curiosidade e, por último, o desejo.
Uma vontade abrupta surgiu em seus instintos de Coletor para adquirir esse sonho. Entretanto, se fosse apenas por esse impulso, ele conseguiria controlar. Mas, no fundo, estava muito curioso pelo sonho à sua frente.
“Um profanado que sonha. Nunca vi algo assim antes. Se eu pudesse usar o Analisar do Sonhador e descobrir qual sonho ele possui... mas com certeza isso irá chamar toda a atenção para mim e talvez eu perca a oportunidade de coletar esse sonho. Mas, deve ser um sonho especial. Tenho que apostar nisso.”
Ezkiel, de alguma forma, sabia que o humano dentro da criatura havia se perdido há muito tempo, mas o sonho ainda restava. O desejo subia cada vez mais dentro do seu ser, mas ele pressentia o pior se fizesse essa ação.
“Precisamos disso para sobreviver. Você me entende, não é? Sei que é uma escolha difícil e vamos sofrer com ela, mas as recompensas irão valer a pena. Precisamos de mais poder se quisermos sobreviver.”
O corpo se arrepiou, impulsionando seus instintos para frente.
“Que bom que estamos em sintonia. Lá vamos nós.”
Ezkiel respirou fundo. O corpo parou de tremer aos poucos, respondendo à sua ideia. Ele encarou o alvo e o belo sonho que transcendia pela música. O coração bateu mais rápido e, antes que pudesse relembrar a dor do seu último combate com o Outro, efetuou a ação.
“Foda-se! Coletar sonho!”
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